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Capítulo 3. Um exame da história das teorias sobre a formação do sistema solar

3.4. Rumo a um tênue consenso: o período de transição

3.4.4. O framework de Safronov

Um dos pesquisadores da escola russa de cosmogonia iniciada por Schmidt foi também um dos primeiros cientistas que podem ser chamados de especialistas em cosmogonia (na acepção referente à formação do sistema solar). Ao longo da década de 1960, Viktor Safronov (1917-1999) desenvolveu quantitativamente o aspecto dinâmico e termal do modelo de colisão e acreção de partículas sólidas para a origem dos planetas. As pesquisas de Safronov nesse período foram condensadas num livro, publicado na União Soviética em 1969. Nos Estados Unidos, a obra foi publicada em 1972 e recebeu o nome de Evolution of the

Protoplanetary Cloud and Formation of the Earth and the Planets. A planetogonia proposta

por Safronov é a maior contribuição pioneira ao estabelecimento do núcleo teórico utilizado nos modelos atuais de acreção de planetesimais em disco protoplanetário. Para Peter Bodenheimer, um dos mais influentes planetogonistas atuais, Safronov foi o primeiro a elaborar uma “teoria fundamental e útil para a acreção de objetos sólidos” (BODENHEIMER, 2006, p. 6), efetivamente operando e sofisticando o conceito de planetesimais criado por Chamberlin para um cenário planetogônico muito diferente.

Safronov não adota a ideia de captura de nebulosa, de Schmidt. Para o cosmogonista, as teorias de captura falham ao tentar explicar “por que a rotação do Sol e [o movimento de] revolução dos planetas se dão no mesmo sentido” (SAFRONOV, 1972, p. 5). O modelo de Safronov apenas favorece a ideia da formação da nuvem protoplanetária conjuntamente com a formação do Sol: “a ideia de uma formação comum é muito mais promissora do que a de captura” (idem, p. 8), mas reconhece que ainda é necessário muito progresso para que uma solução da origem da nuvem protoplanetária seja encontrada. Por isso, Safronov não busca explicar essa origem: “os estágios da evolução da nuvem protoplanetária ainda são muito obscuros devido à ausência de qualquer ideia definida sobre o mecanismo de formação da nuvem” (idem, p. 2). O modelo se aplica, portanto, apenas à formação dos planetas a partir do disco protoplanetário. A origem do Sol não cumpre papel algum no modelo: como Schmidt, Safronov não se estende até a formação do Sol e do disco protoplanetário a partir de um estado primordial simples. Voltarei adiante a esse aspecto de separação dos problemas, uma importante novidade de caráter metodológico.

A teoria de Safronov começa com uma nuvem de gás e poeira circundando o Sol. Das partículas de poeira, pequenos corpos sólidos – os planetesimais – se formam por um processo de coagulação iniciado por em regiões de pequena instabilidade gravitacional, gerada por discretas flutuações na densidade da nuvem. Esse material se concentra aos poucos num disco ao redor da estrela. Colisões parcialmente inelásticas entre esses corpos sólidos produzem mais combinações do que fragmentações. Um processo de crescimento acelerado desses corpos sólidos se dá em diferentes zonas concêntricas de acreção. Cada zona acaba sendo dominada por um desses corpos cada vez maiores, que finalmente atrai quase toda a matéria de sua “zona de alimentação” em sua órbita. Impactos muito energéticos, de alta velocidade, explicariam a estrutura interna da Terra (sabia-se que o interior da Terra deveria ser muito quente), num processo que começa “frio” e termina “quente”.

Por esse processo, a Terra se formaria em mais ou menos 100 milhões de anos. O principal problema do processo de acreção descrito por Safronov surgiu quando as equações utilizadas para a formação dos planetas rochosos foram aplicadas para a formação dos planetas externos: isso resultava num tempo de formação na ordem de 100 bilhões de anos (BRUSH, 1996c, p. 134), obviamente em contradição com as estimativas que se estabeleceram na segunda metade do século XX sobre a idade do Sol, da Terra e do próprio universo. Outro problema era o de que, nesse cenário, Júpiter não teria crescido suficientemente rápido para ser capaz de atrair matéria suficiente, “roubando” o material de regiões mais internas, de forma a fazer de Marte um planeta bem menos massivo do que a Terra e Vênus (ibid.).

O reconhecimento das pesquisas de Safronov no mundo ocidental ocorreu apenas a partir da publicação do livro de 1972. Segundo Brush, o modelo de Safronov se tornou a explicação mais popular65 para a formação de planetas terrestres (BRUSH, 1996c, p. 133), e teve papel importante no desenvolvimento de outros modelos sobre os planetas gigantes. Quase todos os estudos publicados nos EUA da década de 1970 que abordaram a teoria de Safronov continham “comentários favoráveis mesmo quando discordam de pontos técnicos específicos” (ibid.).

65 Esse termo usado por Brush é um pouco nebuloso: popular pode se referir a várias coisas, desde a teoria servir

de principal referência e ponto de partida, até ser difundida na cultura popular como a melhor explicação, ou a explicação preferida pelo público etc. Brush quase sempre se refere à primeira acepção e apenas uma vez à segunda, mas não é esse o caso.

Antes de 1970, houve poucas tentativas de modelos físicos quantitativos do processo de acreção de planetesimais. Em 1976, o astrônomo e geofísico estadunidense George Wetherill (1925-2006) utilizou simulações computacionais do modelo de Safronov e confirmou muitos dos resultados de sua teoria, embora tenha havido problemas com relação à formação da Terra e de Vênus, que não pode ser reproduzida.

Wetherill se tornou um dos principais defensores do modelo de acreção de planetesimais em disco protoplanetário nos Estados Unidos. No artigo em que apresenta os resultados das simulações, ele se refere ao modelo de Safronov como um framework de acreção de material sólido e gás em disco protoplanetários (WETHERILL, 1976, p. 3254). Dentro desse framework podem ser propostas “cadeias de eventos alternativas” (como o próprio Wetherill descreveu as suas variações do modelo de Safronov), o que pode ser entendido como alterações nas suposições sobre o estado primitivo do disco protoplanetário. Essas alternativas poderiam, então, ser avaliadas por meio de simulações computacionais e cotejadas com o conhecimento empírico do sistema solar, como a composição química de asteroides e as crateras em Marte e, principalmente, na Lua.

O modelo de Safronov “foi bem-sucedido em construir um corpo de teoria básica que se tornou útil como um ponto de partida para outros cosmogonistas” (BRUSH, 1996c, p. 135). As concepções de framework teórico e ponto de partida – interpretação exemplificada pelo própria postura de Wetherill em relação à teoria de Safronov – revelam algo muito frequente nas investigações científicas, que não é capturado pela dicotomia aceitação-rejeição teórica (muito comum nas discussões sobre o progresso da ciência): cientistas não apenas aceitam ou rejeitam uma teoria, mas com frequência escolhem perseguir, entreter ou desenvolver uma (ou mais de uma) teoria.