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Capítulo 4. Zonas de acreção: o afunilamento das possibilidades teóricas

4.4. Planetas extrassolares

A tentativa de descoberta de planetas orbitando outras estrelas tem uma história que remonta ao século XIX, com algumas alegações críveis (que depois foram reveladas espúrias) tendo surgido do começo do século XX em diante.88 O primeiro caso de detecção consolidada de exoplaneta ocorreu em 1992. A alegação gerou perplexidade naquele momento, pois o planeta foi descoberto ao redor de um pulsar – uma estrela de nêutrons em rápida rotação, remanescente ultradenso de uma supernova. Os pulsares têm períodos de rotação muito precisos, e a existência do exoplaneta foi confirmada através de análise de minúsculas variações no período de rotação da estrela. Não se imaginava que planetas pudessem orbitar um objeto estelar de características tão extremas, por isso a descoberta encorajou a visão de que planetas existem ao redor de estrelas comuns, parecidas com o Sol.

A primeira detecção de um exoplaneta orbitando uma estrela de sequência principal ocorreu em 199589. O anúncio também gerou grande surpresa – nesse caso, por conta de algo relacionado às planetogonias: 51 Pegasi b é um planeta gigante (possui o equivalente a 150 massas terrestres, ou seja, aproximadamente metade da massa de Júpiter) e orbita muito próximo de sua estrela hospedeira. Como a temperatura na “superfície” desse planeta gigante é muito alta (calculada em mais de 1000 K), ele se tornou um primeiro exemplo de uma classe de planetas que não existe no sistema solar: os chamados Júpiteres quentes (hot Jupiters). Esses planetas são relativamente raros – estima-se atualmente que 1%

88 Para uma narrativa sucinta mas suficientemente abrangente dessa história, cf. o capítulo “Solar Systems

Beyond” em Life on Other Worlds (1998), do historiador Steven J. Dick. Nesta seção, me concentrarei em mostrar as articulações entre a ciência de sistemas planetários e as planetogonias.

89 O método utilizado para a detecção desse planeta foi a de medição da velocidade radial da estrela, a partir da

observação de efeito Doppler nas linhas de absorção da radiação eletromagnética emitida pela estrela. De maneira simplificada, o efeito Doppler observado permite a detecção de variações minúsculas na velocidade radial da estrela, compatíveis com a existência de uma massa planetária ao seu redor. O puxão gravitacional do planeta pode ser inferido, assim como sua massa, período orbital e distância para a estrela. O primeiro sucesso desse método de detecção de exoplanetas deu início, nos anos finais do século XX, a uma série de descobertas de exoplanetas (principalmente de período orbital curto e muito massivos).

das estrelas parecidas com o Sol hospedem um deles (DAWSON e JOHNSON, 2018, p. 177) – mas nos últimos anos do século XX eram os mais comumente detectados.

A literatura científica usa o termo confirmado para se referir aos exoplanetas que constituem a única explicação plausível para os fenômenos observados em suas estrelas hospedeiras (sejam variações na luminosidade de uma estrela, sejam movimentos radiais detectados via efeito Doppler em suas linhas espectrais). Alguns exoplanetas já foram observados por imagem direta, mas a esmagadora maioria é inferida por meio de dados coletados por vários métodos diferentes. A observação de um mesmo exoplaneta por dois ou mais métodos diferentes é um dos elementos que tornam quase inequívoca a sua existência e justificam a confiança nos métodos de detecção. Por exemplo, em 2015, o próprio 51 Pegasi b foi diretamente observado por sua reflexão da luz da estrela hospedeira, 51 Pegasi (MARTINS et al, 2015).

A existência dos Júpiteres quentes se tornou um puzzle para a astrofísica na virada do milênio, pois não se previa que um planeta com grande massa e período orbital tão curto pudesse existir.90 Nesse momento, como a formação in situ de um planeta tão massivo e próximo de sua estrela não parecia plausível, o conceito de migração planetária passou a ser incluído no esforço de desenvolvimento da teoria de acreção de planetesimais. O resultado desse desenvolvimento teórico desencadeado pelos Júpiteres quentes é que a migração planetária se revelou um conceito fundamental para compreender a própria origem do sistema solar – principalmente, a dinâmica de formação da configuração atual das órbitas dos gigantes gasosos e gelados, as crateras de impacto na Lua e o cinturão de Kuiper (vide o bem estabelecido Nice Model e a hipótese do Grand Tack).

A busca pelos exoplanetas avançou rapidamente no século XXI, especialmente a partir do lançamento do telescópio espacial Kepler, em 2007, que possibilitou a detecção de mais de dois mil planetas extrassolares. Nas últimas duas décadas, com a aceleração das

90 Na década de 1950, contudo, Otto Struve já havia sugerido que objetos desse tipo poderiam existir e ser

detectados via Doppler shift, pois não via impedimentos teóricos para a existência de planetas muito massivos com órbita muito próxima de sua estrela hospedeira. “De fato, não é exatamente verdade que ninguém esperava [a existência] de Júpiteres quentes. Em 1956, Otto Struve escreveu um curto artigo indicando que a precisão das medições de [efeito] Doppler havia se tornado boa o suficiente para detectar grandes planetas, mas apenas se existissem em órbitas minúsculas. Deixando de lado a questão de como um tal planeta poderia ter se formado, ele percebeu que não há lei da física que proíbe tais planetas de existirem. Seu artigo poderia ter iniciado toda uma nova área da astronomia, mas ao invés disso definhou na obscuridade” (WINN, 2019, grifo do autor). Como já mencionado no capítulo 3, foi Struve quem primeiro estabeleceu a correlação entre a idade e a velocidade de rotação das estrelas – uma descoberta-chave para que o paradoxo do momento angular não fosse concebido como uma característica extraordinária do sistema solar, abrindo caminho para a convicção de que algum mecanismo certamente está envolvido na transferência de momento angular do Sol para o disco protoplanetário.

descobertas, vem havendo um entrelaçamento do conhecimento sobre os exoplanetas e as planetogonias. É um processo de articulação entre o que se sabe sobre o sistema solar e outros sistemas planetários e as teorias planetogônicas, num processo de aprofundamento da interconexão da rede de teorias e dados observacionais. Como afirma o autor de um amplo

handbook sobre exoplanetas, “as observações do sistema solar fornecem constraints

importantes para teorias e propriedades da formação e evolução dos exoplanetas, ao mesmo tempo em que desenvolvimentos sobre formação e evolução de exoplanetas, principalmente a migração planetária, vêm oferecendo insights sobre a arquitetura presente e a evolução do sistema solar” (PERRYMAN, 2011, p. 5).

Embora já existissem estimativas sobre a prevalência de sistemas planetários e planetas terrestres em função do número de estrelas antes das detecções de exoplanetas (e.g. POLLARD, 1979), a torrente de descobertas de exoplanetas vem permitindo análises estatísticas com parâmetros melhor definidos graças aos dados observacionais das pesquisas sobre exoplanetas. É digno de nota que muitas das estimativas anteriores à era de detecção de exoplanetas colocavam na base de sua cadeia argumentativa (implícita ou explicitamente) a teoria de formação planetária assumida como correta. Qualquer alteração na planetogonia podia gerar uma variação em ordens de magnitude no resultado final da estimativa (cf. o quadro de estimativas de frequência de sistemas planetários em DICK, 1998, p. 87; o levantamento de Pollard, citado acima, aceita tacitamente uma origem via colapso gravitacional do proto-Sol e formação planetária num “disco de nebulosa solar”; POLLARD, 1979, p. 654-5).

Agora, as estimativas são geralmente baseadas em análise estatística dos dados observacionais sobre os exoplanetas e podem (devem) produzir impactos nas teorias de formação de sistemas planetários. Um levantamento de 2015, por exemplo, apontou que deve haver em média 2,5 planetas para cada estrela anã vermelha. Anãs vermelhas são estrelas menos massivas e menos quentes do que o Sol. São também as mais comuns: há aproximadamente cem bilhões delas na galáxia. Esse estudo também apontou para a ocorrência de, em média, um planeta na zona habitável por estrela (DRESSING e CHARBONNEAU, 2015).

Além dos Júpiteres quentes, a população de exoplanetas descoberta nos últimos dez anos exibe uma alta frequência de planetas para os quais também não existem análogos no sistema solar: os chamados super-Terras (os que possuem mais de 1 massa terrestre) e sub- Netunos (aqueles com até 10 massas terrestres – ainda não há fronteira clara entre as duas

categorias). Dentre os mais de quatro mil exoplanetas descobertos atualmente, esses dois tipos são os mais comuns, embora também existam indicativos de uma população considerável de planetas de tipo terrestre (FRESSIN et al, 2013) – os métodos de detecção ainda não são favoráveis à detecção de planetas de menos de uma massa terrestre. Inevitavelmente, isso levanta uma questão sobre o motivo da inexistência de super-Terras ou sub-Netunos no sistema solar, gerando um problema razoavelmente bem definido para as planetogonias.

Outro resultado que pode tornar-se bastante significativo para a elaboração de modelos de formação de sistemas planetários foi publicado em 2017: há uma escassez significativa de planetas entre 1,5 e 2 diâmetros terrestres. Super-Terras e sub-Netunos tendem a existir em duas modalidades: em torno de 1,3 ou 2,4 diâmetros terrestres (FULTON et al, 2017). Essa bimodalidade é mais um problema a ser explicado pelos modelos teóricos. A aparente abundância de sub-Netunos e super-Terras pode ser um indício de que o sistema solar está longe de ser típico, o que pode implicar uma origem repleta de particularidades (embora a prevalência de planetas de massa igual ou menor do que a da Terra ainda dependa da sofisticação dos métodos e aparelhos de detecção de exoplanetas). Apesar disso, a existência de planetas análogos à Terra (planetas de entre 0.75 e 1.5 diâmetros terrestres com período orbital compatível com a chamada zona habitável) parece ser algo relativamente comum: aproximadamente 27% das estrelas F, G e K (ou seja, estrelas na fase de sequência principal de sua evolução) contém um planeta desse tipo (HSU et al, 2019).

No quesito de novidades observacionais que geram problemas para as planetogonias, o resultado mais desconcertante entre os levantamentos estatísticos recentes foi publicado em 2018. Os planetas existentes nos sistemas multiplanetários (com três ou mais planetas) detectados pelo telescópio Kepler são similares em tamanho. Isso levou à conclusão de que “é mais provável que cada planeta tenha o tamanho de seu vizinho do que um tamanho extraído aleatoriamente da distribuição de tamanhos de planetas observados” (WEISS et al, 2018). Além disso, os planetas se encontram espaçados com uma regularidade relacionada a seu tamanho. Isto é, quanto menores os planetas, menor é o espaço entre suas órbitas (ibid.). A pista dada pelos modelos de migração de Júpiter e Saturno sugere que a procura por planetas gigantes com grande período orbital nesses mesmo sistemas planetários analisados pode ser significativa para a compreensão da origem do sistema solar. Uma hipótese é a de que esses sistemas simplesmente não possuem gigantes gasosos. Outra, a de que os gigantes não migraram substancialmente para órbitas mais internas durante a formação planetária, pois essa migração pode alterar o espaçamento da órbitas planetárias, bem como a massa e o

tamanho dos planetas internos. Por sua própria natureza, a detecção de planetas com período orbital muito longo é muito mais rara, o que dificulta o teste dessas hipóteses.

Esses estudos recentes sugerem que a integração entre observação de exoplanetas, levantamentos estatísticos e elaboração de modelos teóricos tornou-se mais sofisticada nos últimos anos. Essa integração vem se desenhando como um potente aparato científico para que calibremos a resposta à questão sobre se o sistema solar é típico ou atípico, bem como saber quais processos de formação planetária se aplicam especificamente ao nosso sistema e quais podem ser generalizados. O aumento da articulação entre teorias de formação do sistema solar e a ciência de sistemas planetários – que ainda tem um potencial enorme de progresso na produção de novos dados observacionais – é um dos aspectos mais significativos do cenário teórico atual. Um exemplo claro dessa articulação é o que se pode inferir a partir da observação de alguns exoplanetas pelo método de produção de imagem direta. Essas observações mostraram que a órbitas de planetas conhecidos em discos de detritos (como o

Beta Pictoris b) não desviam substancialmente do plano do disco. Também foi observada a

coplanaridade entre planetas de um mesmo sistema e seu disco de detritos. Essas observações são indícios bastante sugestivos de que esses planetas se formaram a partir (e dentro) do disco protoplanetário, seja pela acreção de núcleo ou por instabilidade de disco (NIELSEN et al, 2019, p. 22).

Descobertas de exoplanetas motivaram a necessidade de desenvolver uma hipótese que já existia na década de 1980, a migração planetária. Por sua vez, a migração planetária fecundou as adaptações teóricas atuais para explicar diferentes estágios da formação do sistema solar, como o Nice Model e o Grand Tack (este último é especificamente direcionado a explicar o problema da pouca massa de Marte). A diversidade de exoplanetas impactou as planetogonias principalmente “ao identificar uma fase durante a qual a migração planetária é parte comum e inevitável dos estágios tardios de sua formação hierárquica. Por sua vez, a migração causada pelos planetesimais, quando aplicada ao sistema solar, parece nitidamente explicar certos detalhes de sua arquitetura atual e outras características” (PERRYMAN, 2012, p. 288).

Brush finalizou sua trilogia sobre as cosmogonias no limiar da era de descoberta de planetas extrassolares. O historiador estava consciente de que a detecção de exoplanetas provavelmente mudaria alguns dos contornos em que planetogonias se desenvolvem. Até então, as maiores contribuições de definição de conhecimento de fundo, condições de contorno e constraints estava no campo da astrofísica e da cosmoquímica. Essas áreas vinham

condicionando as teorizações sobre os processos de formação de planetas com o conhecimento da evolução de estrelas, da natureza das nebulosas moleculares, das supernovas, da composição química de meteoritos e suas anomalias isotópicas. Diante desse cenário do início da década de 1990, Brush escrevia que “a ‘evidência’ astronômica [dos exoplanetas] poderá se tornar mais importante na avaliação das teorias – contanto que essas teorias tenham sido desenvolvidas o suficiente para fornecer deduções sobre as órbitas e tamanhos observáveis dos planetas” (BRUSH, 1996c, p. 174). Isso motiva uma pergunta importante: em que medida as teorias atuais produzem essas deduções? Como elas estão se saindo com relação a isso?

A ciência ainda está engatinhando rumo ao mapeamento dos sistemas planetários da Via Láctea. Embora já tenham começado a surgir análises estatísticas sobre a abundância de planetas em função de seu tamanho, massa e período orbital (e.g. HSU et al, 2019), ainda estamos longe de ter dados empíricos suficientes para tirar conclusões seguras sobre quais configurações de sistemas planetários são comuns e quais são raras. Ou, em termos mais significativos para a questão proposta: ainda não é factível avaliar com clareza a abundância relativa de sistemas planetários “normais” (cuja existência pode ser prevista ou explicada por uma dada teoria) e “anômalos” (que são possíveis instâncias de refutação de teorias ou contraexemplos a serem explicados por hipóteses ad hoc e modificações teóricas).

A possibilidade de teste de teorias de formação planetária frente aos dados estatísticos e observacionais de sistemas planetários ainda está no começo de seu desenvolvimento, em parte porque os próprios métodos e tecnologias de detecção de exoplanetas ainda estão em franco processo de aprimoramento. Seu estado atual produz um viés observacional que dificulta a tarefa de desembaraçar as abundâncias típicas dos planetas existentes e a dos que apenas podem ser observados – especialmente com relação a planetas de massa menor do que a da Terra e com período orbital relativamente longo. Mas dado o número de estrelas na galáxia e sua variedade, não é descabido concluir provisoriamente que a fauna de exoplanetas e sistemas planetários deve ser constituída com uma grande diversidade de espécies. Os levantamentos atuais já sugerem uma diversidade significativa, ao passo em que o sistema solar vem sendo visto como possuindo uma configuração muito peculiar. O fato é que simplesmente ainda não temos meio seguro de calibrar nossos juízos sobre se o sistema solar é típico ou atípico. Mas isso pode mudar muito em breve com os resultados da missão TESS (a serem anunciados por completo em meados de 2020) e de outros projetos em curso.

Mesmo diante de tudo isso, algo pode ser dito sobre o teste de teorias a partir das deduções que elas produzem e dos sistemas planetários que vêm sendo descobertos. Uma das consequências dedutíveis do modelo de acreção de núcleo é que o processo de formação de Júpiter e Saturno duraria entre 1 e 8 milhões de anos. O artigo de 1996 em que a acreção de núcleo foi proposta deixa claro que essas estimativas resultam das propriedades do sistema solar e “não necessariamente se aplicam a planetas gigantes em outros sistemas planetários” (POLLACK et al, 1996, p. 62). Como vimos, o problema é que o tempo da formação de gigantes gasosos segundo esse processo é desconfortavelmente compatível com um dado empírico e estatístico sobre discos protoplanetários: em geral, eles duram no máximo 10 milhões de anos, com metade deles se dissipando em até 3 milhões de anos. Isso gera um incômodo com a teoria, embora não seja motivo suficiente para descartá-la ou mesmo modificá-la. Por outro lado, a descoberta de um gigante gasoso ao redor de uma anã vermelha (MORALES et al, 2019) lançou dúvidas sobre a hipótese de acreção de núcleo e reavivou o interesse da comunidade científica pela instabilidade de disco como o processo responsável pela formação de gigantes gasosos.

Outra dedução extraída do modelo de acreção de núcleo é a escassez de planetas gigantes de massa intermediária. Mas há um número relativamente alto de planetas gigantes de massa intermediária, inferido a partir de detecções via microlente gravitacional. “Essa tensão indica que a formação de gigantes gasosos pode envolver processos que até agora podem ter sido ignorados pelos modelos existentes de acreção de núcleo ou que o ambiente de formação da planetas varia consideravelmente em função da massa da estrela hospedeira” (SUZUKI et al, 2018).