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Capítulo 2. Uma questão filosófica: a ciência progride?

2.3. Uma crítica pioneira e influente: Thomas Kuhn em The Structure of Scientific

Revolutions

A Estrutura das Revoluções Científicas foi publicada pelo primeira vez em 1962.

As duas décadas que se seguiram testemunharam o impacto multidisciplinar do livro e sua fecundidade. Kuhn inovou ao dar papel central à história da ciência na configuração e defesa de suas teses epistemológicas e acabou, em parte por isso, produzindo uma imagem da ciência que vai no sentido contrário do “velho deferencialismo” dominante até então. Rompe com imagem usual (e também popperiana) do cientista como sujeito cognitivo essencialmente crítico, interpretando a educação científica como uma espécie de inculcação de uma certa visão de mundo e de um modelo estruturante por meio de manuais que apagam o processo histórico em favor de uma versão simplificada e triunfalista da ciência, de suas supostas

racionalidade intrínseca e plena capacidade de progresso cumulativo. O livro também forneceu munição para a mudança de rumos na sociologia da ciência na década de 1970, a partir de uma leitura epistemologicamente relativista de seus argumentos centrais pelo Programa Forte da Sociologia da Ciência, uma das mais influentes escolas de pensamento sociológico sobre o desenvolvimento das ciências naturais. Retornarei a isso na seção seguinte, 2.4.

Examinando a tese central do livro compreende-se o significado da ruptura que ele simbolizou, em especial para os intelectuais que procuraram atacar a autoridade epistêmica da ciência. A ciência não se desenvolveria por meio de aproximação da verdade, nem por verificação ou confirmação, nem mesmo por refutação e corroboração em direção à verossimilhança. Simplificadamente, na Estrutura, Kuhn afirma que a ciência se desenvolve historicamente pela alternância de períodos de ciência normal e processos revolucionários em que diferentes candidatos a paradigmas competem pela adesão da comunidade científica, até que um se estabeleça e passe a orientar o novo período de ciência normal. Na ciência normal, o papel desempenhado pelo cientistas é o de resolver problemas e puzzles dados ou possibilitados pelo próprio paradigma.

Embora Kuhn não seja inteiramente consistente acerca disso, um paradigma, na acepção kuhniana, pode ser seguramente interpretado como um conjunto conceitual que engloba a teoria, as perguntas possíveis de serem feitas, as formas legítimas de experimentação, as entidades que comporiam a realidade, os instrumentais conceituais e teóricos com os quais serão formulados os problemas, entre outros itens. Entendido dessa maneira, um paradigma quase nunca é questionado pelos cientistas, a não ser nos períodos de crise, caracterizado pelo acúmulo de anomalias (geralmente exemplificadas por inadequações empíricas da teoria) gerado pelas pesquisas da ciência normal. Paradigmas são também incomensuráveis: não há uma métrica comum com a qual os cientistas podem avaliar racionalmente diferentes paradigmas e decidir pelo melhor com base em critérios objetivos, como o suporte empírico e evidenciário. A incomensurabilidade dos paradigmas é uma noção que Kuhn explorou para questionar a concepção positivista do progresso científico como sucessivas acumulações de conhecimento em crescente aproximação à verdade, baseadas em padrões metodológicos e linguagem observacional neutros (OBERHEIM e HOYNINGEN- HUENE, 2018). A incomensurabilidade de paradigmas se refere principalmente a

incompatibilidades conceituais e não deve ser entendida como incomparabilidade de teorias e nem permite afirmar que a ciência é irracional (ibid.).3

Para além da famosa demonstração por Margaret Masterman da inconsistência terminológica de Kuhn em relação ao que é chamado de paradigma, a Estrutura não parece ter sido projetada para a repercussão que teve, o nível de influência multidisciplinar e metodológica que teve, e especialmente o nível de detalhe e esmiuçamento das leituras a que foi submetida nesses últimos cinquenta anos4. Por isso, assim como pela riqueza de seus

insights e pela profundidade da análise, o livro foi interpretado não apenas de maneira

diversa, mas às vezes contraditória. O que, no fim das contas, não é surpreendente. Pois embora a Estrutura não seja um texto polissêmico, ou uma “máquina de gerar interpretações” – para utilizar uma maneira com que Umberto Eco define o romance de ficção – o livro contêm uma cota razoável de ambiguidades, idas e vindas, afirmações num sentido e depois noutro, além de ser insuficientemente claro em algumas das questões mais fundamentais que aborda. Uma delas é a questão do progresso da ciência, de particular interesse para o presente trabalho.

Como já mencionado, Kuhn desconstroi o a-historicismo formulado nos textbooks e inculcado nos graduandos, uma formulação que acaba gerando uma imagem completamente falsa do desenvolvimento histórico de uma ciência como mera acumulação de fatos, dados, tijolinhos no muro do conhecimento. Essa imagem chega a produzir “uma distorção drástica da percepção que o cientista possui do passado de sua disciplina ... o cientista vê esse passado como algo que se encaminha, em linha reta, para a perspectiva atual da disciplina” (KUHN, 1962/2005, p. 211). Por isso, Kuhn questiona a narrativa histórica da ciência presente nos manuais científicos, segundo os quais fatos vão sendo encontrados, observados, descobertos, e as teorias ajustam-se então a essas novidades empíricas:

Não há dúvida de que essas teorias “ajustam-se aos fatos”, mas somente transformando a informação previamente acessível em fatos que absolutamente não existiam para o paradigma precedente. Isso significa que as teorias também não evoluem gradualmente, ajustando-se a fatos que sempre estiveram à nossa

3 Feyerabend também explorou a noção de incomensurabilidade, frisando que teorias científicas podem ser

conceitualmente incompatíveis. É uma concepção mais limitada do que a de Kuhn, pois se refere apenas a teorias científicas fundamentais e universais (como a mecânica newtoniana e a relatividade geral). (OBERHEIM e HOYNINGEN-HUENE, 2018).

4 “Kuhn ficou surpreso com a recepção do livro, bem como com o seu apelo subsequente. Ele não previu e não

disposição. Em vez disso, surgem ao mesmo tempo que os fatos aos quais se ajustam, resultado de uma reformulação revolucionária da tradição científica anterior – uma tradição na qual a relação entre o cientista e a natureza, mediada pelo conhecimento, não era exatamente a mesma. (KUHN, 1962/2005, p. 181).

A forma como se produz essa visão distorcida do progresso linear e cumulativo é pintada por Kuhn com as cores e as pinceladas fortes de um libelo político, suficientemente cínico para ser concebido como uma completa fabricação histórica:

Aparentemente o progresso acompanha, na totalidade dos casos, as revoluções científicas. Por quê? Ainda uma vez poderíamos aprender muito perguntando que outro resultado uma revolução poderia ter. As revoluções terminam com a vitória total de um dos dois campos rivais. Alguma vez o grupo vencedor afirmará que o resultado de sua vitória não corresponde a um progresso autêntico? Isso equivaleria a admitir que o grupo vencedor estava errado e seus oponentes certos. Pelo menos para a facção vitoriosa, o resultado de uma revolução deve ser o progresso. Além disso, esta dispõe de uma posição excelente para assegurar que certos membros de sua futura comunidade julguem a história passada desde o mesmo ponto de vista. (KUHN, 1962/2005, p. 210-1)

Para piorar, Kuhn não vê como “totalmente inadequada” a sugestão de que “o membro de uma comunidade científica amadurecida é, como o personagem típico do livro 1984 de Orwell, a vítima de uma história reescrita pelos poderes constituídos” (KUHN, 1962/2005, p. 211).

Sem dúvida, essas passagens permitem uma leitura relativista, quiçá cínica, da

Estrutura, mas apenas se tomadas fora de contexto. Pois, por exemplo, Kuhn é inequívoco ao

diferenciar uma revolução científica (grifo dele) de outras formas de revolução. A diferença, para ele, é que numa revolução científica a autoridade não é o único “árbitro dos debates sobre paradigmas”. “Uma das leis mais fortes, ainda que não escrita, da vida científica é a proibição de apelar a chefes de Estado ou ao povo em geral quando está em jogo um assunto relativo à ciência” (KUHN, 1962/2005, p. 212). As decisões teóricas, as escolhas de paradigmas, são tomadas por um grupo muito peculiar, a comunidade científica, que não é “extraído ao acaso da sociedade global” mas é, antes de tudo, “um grupo profissional competente”. Este é o “árbitro exclusivo das realizações profissionais”, cujos membros “devem ser vistos como os únicos conhecedores das regras do jogo ou de algum critério equivalente para julgamentos inequívocos” (KUHN, 1962/2005, p. 212-3). Critérios e valores comuns de avaliação devem existir, para ele, pois de outra forma “seria admitir a existência de padrões incompatíveis entre si para a avaliação das realizações científicas” (KUHN, 1962/2005, p. 213). Por sua vez, o processo de revolução científica kuhniana, embora resulte

em descontinuidades inevitáveis, não veda a preservação de importantes aspectos do conhecimento científico constituído pelo paradigma antigo – por exemplo, sobrepujada pela relatividade geral, a mecânica newtoniana continua uma aproximação útil sobre a natureza física do mundo para uma série de aplicações tecnocientíficas.

Kuhn conclui sua exposição sobre o progresso da ciência sugerindo o abandono da noção “segundo a qual as mudanças de paradigma levam os cientistas e os que com eles aprendem a uma proximidade sempre maior da verdade” (KUHN, 1962/2005, p. 215). Ian Hacking, em Representing and Intervening, descreve muito bem esse aspecto da filosofia da ciência kuhniana:

Com cada mudança de paradigma, sugere Kuhn, chegamos a ver o mundo de maneira diferente – talvez vivamos em um mundo diferente. Também não estamos convergindo para uma imagem verdadeira do mundo, pois não há nenhuma. Não há progresso em direção à verdade, mas apenas o aumento da tecnologia e talvez progresso para “longe de” idéias que nunca mais acharemos tentadoras (HACKING, 1983, p. 66).

No lugar do progresso em direção à verdade, Kuhn apela a um processo evolutivo cujo ponto de partida é “primitivo” e que passa por “estágios sucessivos” caracterizados por “uma compreensão sempre mais refinada e detalhada da natureza” (KUHN, 1962/2005, p. 215). Isso não quer dizer, diz Kuhn, que o mesmo processo seja o de uma evolução “em

direção a algo” (grifo dele). Ao contrário, o progresso da ciência seria análogo à evolução

darwiniana, por meio de seleção natural, produzindo espécies mais adaptadas (as teorias) num processo de evolução a partir de e não em direção a um determinado objetivo (e.g., a verdade, o conhecimento indubitável etc.).

O exposto basta, no entanto, para que se compreenda a novidade das conceções kuhnianas acerca do desenvolvimento da ciência e deixa entrever para onde é que os críticos mais ferozes da ciência procuraram esticar a corda relativista inadvertidamente dada por Kuhn.