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Capítulo 2. Uma questão filosófica: a ciência progride?

2.5. Protestos de moderados down to earth

2.5.1. Larry Laudan

Uma das novidades epistemológicas da Estrutura é a rejeição da ideia de que casos empíricos que contradigam uma teoria devem constituir um motivo racional e suficiente para que essa teoria seja abandonada (i. e., a teoria é considerada refutada e os cientistas

8 No original (que contém nuances importantes): “[they] suggest that the world is somehow mind-dependent,

perhaps an invention or construction of the creatures which inhabit it, and in recent years such suggestions have been widely pursued. But the metaphors of invention, construction, and mind-dependence are in two respects grossly misleading. First, the world is not invented or constructed. The creatures to whom this responsibility is imputed, in fact, find the world already in place, its rudiments at their birth and its increasingly full actuality during their educational socialization, a socialization in which examples of the way the world is play an essential part. That world, furthermore, has been experientially given, in part to the new inhabitants directly, and in part indirectly, by inheritance, embodying the experience of their forebears. As such, it is entirely solid: not in the least respectful of an observer's wishes and desires; quite capable of providing decisive evidence against invented hypotheses which fail to match its behavior. Creatures born into it must take it as they find it.”

procuram elaborar novas hipóteses). Para Kuhn, essas anomalias são algo com que a ciência

normal é capaz de conviver. Nesse ponto, a crítica de Kuhn ao falseacionismo popperiano

gerou uma noção muito vaga acerca do peso das anomalias nas decisões da comunidade científica para continuar adotando ou abandonar um paradigma. Kuhn não é suficientemente claro sobre em que ponto o acúmulo de anomalias torna um paradigma inviável e ajuda a iniciar um período revolucionário. Esse é mais um dos motivos pelos quais é possível fazer uma leitura epistemologicamente relativista das descrições de Kuhn dos períodos de crise e de revolução científicas.

Em 1978, com o debate sobre o progresso da ciência já influenciado por algumas das leituras epistemologicamente relativistas da Estrutura – especificamente, a dos sociólogos do Programa Forte de Edimburgo – o filósofo Larry Laudan publicou Progress and its

Problems, obra que contém influente alternativa à concepção kuhniana de desenvolvimento

científico.

O análogo de Laudan para os paradigmas de Kuhn e os programas de pesquisa de Lakatos é o que ele chamou de tradições de pesquisa. Essa unidade de avaliação do desenvolvimento da ciência é, na definição de Laudan, “um conjunto de suposições acerca das entidades e dos processos de uma área de estudo e dos métodos adequados a serem utilizados para investigar os problemas e construir as teorias dessa área do saber” (LAUDAN, 1978/2011, p. 115).

Assim definida, a tradição de pesquisa não parece muito diferente de suas contrapartes kuhnianas e lakatosianas. As diferenças ficam mais evidentes na proposta de Laudan de critérios objetivos de avaliação da progressividade das tradições de pesquisa: a capacidade de resolução de problemas. Segundo essa proposta pragmática, é racional a mudança teórica caso a escolha esteja baseada numa avaliação do grau de sucesso da teoria na resolução de problemas. Enquanto as formulações da filosofia da ciência viam o progresso como dependente da racionalidade (i. e., haverá progresso científico se as mudanças teóricas forem racionais), Laudan propõe um modelo em que a racionalidade depende da progressividade, invertendo essa relação de dependência. A escolha pela aceitação ou desenvolvimento de uma tradição de pesquisa será racional se a tradição de pesquisa escolhida for aquela que apresenta maior efetividade na resolução de problemas – ou seja, na concepção de Laudan, a mais progressiva. O alvo de Laudan era a elaboração de uma concepção com critérios objetivos de progresso científico (evitando as armadilhas relativistas)

desvinculada da noção de progresso científico em direção à verdade (evitando as armadilhas da concepção da verdade como correspondência com o mundo).

Não me deterei nos detalhes dessa metateoria de Laudan. Considero que as formulações desse filósofo sobre o progresso da ciência são frutíferas para as análises que proporei no capítulo 5 especificamente em sua contraposição e críticas às metateorias anteriores, especialmente as de Kuhn e Lakatos. Em particular, as críticas de Laudan à filosofia da ciência que o precedeu (incluindo o falseacionismo e o positivismo lógico) são mais fecundas para a compreensão do caminho histórico trilhado pelas teorias de formação do sistema solar do que suas tentativas de formular uma normatividade epistemológica baseada numa taxa de resolução de problemas.

Um dos contrastes mais acentuados entre Laudan e Kuhn é o da possibilidade de coexistência entre diferentes tradições de pesquisa numa mesma área de investigação. Para Kuhn, há apenas um paradigma orientando as pesquisas numa determinada área e não pode haver outro. Ao aceitar o paradigma e desenvolver pesquisas que constituem a ciência normal, a comunidade científica de uma determinada área de investigação não o questiona criticamente e não desenvolve outro paradigma. Em oposição a isso, Laudan propõe uma imagem do desenvolvimento da ciência em que “a coexistência de teorias rivais é a regra, não a exceção” (LAUDAN, 1996, p. 78). Um mesmo cientista pode escolher entreter ou perseguir diferentes teorias ou tradições de pesquisa sem que isso signifique uma capitulação ao irracionalismo, um estado imaturo da ciência desenvolvida em determinada área, ou mesmo a incapacidade de avaliar a efetividade de resolução de problemas de uma tradição de pesquisa. A base para essa concepção de Laudan é a própria história da ciência e, antecipo, há alguns exemplos que a confirmam no desenvolvimento histórico do campo das teorias de formação do sistema solar.

Outro ponto relevante das concepções de Laudan sobre o desenvolvimento da ciência é a superação das dicotomias crença-descrença e aceitação-rejeição nas descrições das posturas assumidas pelos cientistas em relação às teorias. Uma teoria que ainda não se mostre digna de aceitação por parte da comunidade científica pode apresentar um progresso inicial ou provisório que justifique o empenho dos cientistas em desenvolvê-la. (Laudan não parece entreter a noção de potencial de progresso e prefere falar em progresso efetivo inicial de resolução problemas, mas a avaliação intuitiva do potencial de progresso de uma teoria não deve ser descartada como um critério válido de escolha teórica em determinados contextos históricos, como procurarei argumentar no capítulo 5). Haveria, portanto, um “espectro de

modalidades cognitivas”, que inclui entreter, perseguir, trabalhar com uma ou várias teorias ainda não estabelecidas, sem que isso necessariamente signifique uma rendição à concepção de escolha teórica como essencialmente irracional (LAUDAN, 1978/2011, p. 160). É o que Laudan chama de exploração racional.

Uma concepção de Laudan que diverge de maneira muito clara da noção de paradigma kuhniano e dos programas de pesquisa lakatosianos é a forma como ele encara modificações e ajustes teóricos que visem eliminar as anomalias de uma tradição de pesquisa. Essas modificações podem fazer a tradição de pesquisa efetivamente evoluir. Ainda que consideravelmente diferente após as modificações, trata-se da mesma tradição de pesquisa (só que melhor). Vale a pena acompanhar a exposição do livro de 1978 sobre isso:

Ao longo de seu desenvolvimento, as tradições de pesquisa e as teorias que elas patrocinam vão de encontro a muitos problemas: descobrem-se as anomalias; surgem problemas conceituais básicos. Em alguns casos, os defensores de uma tradição de pesquisa se veem na impossibilidade, modificando teorias específicas dessa tradição, de eliminar esses problemas anômalos e conceituais. Nessas circunstâncias, é comum que os partidários de uma tradição de pesquisa explorem que tipo de mudanças (mínimas) podem ser feitas na metodologia ou na ontologia profundas dessa tradição de pesquisa para eliminar as anomalias e problemas conceituais enfrentados por suas teorias constituintes. Às vezes os cientistas descobrem que nem com grande quantidade de remendos em uma ou outra suposição da tradição de pesquisa se podem eliminar suas anomalias e seus problemas conceituais. Isso se transforma em uma forte razão para abandonar a tradição de pesquisa (desde que haja uma alternativa em vista). Mas, talvez, com maior frequência, os cientistas descubram que, introduzindo uma ou duas modificações nas suposições fundamentais da tradição de pesquisa, eles tanto resolvem os importantes problemas conceituais e as anomalias, quanto podem manter intacta a parte principal das suposições da tradição de pesquisa. (LAUDAN, 1978/2011, p. 138, grifos do autor).

As hipóteses e modificações ad hoc são geralmente tomadas pelos filósofos da ciência como sinais de que um determinado corpo teórico se encontra estagnado, em crise, degenerado. O exemplo clássico dessa concepção é o estado do sistema aristotélico- ptolomaico no século XVI, com a proliferação de epiciclos, recursos ad hoc para “salvar os fenômenos” observados com crescente precisão. Outro exemplo muito conhecido é o suposto planeta Vulcano, que existiria em órbita muito próxima do Sol, conjecturado no século XIX a partir das anomalias observadas na órbita de Mercúrio. O hipotético planeta, que salvava a mecânica newtoniana da refutação, acabou sendo permanentemente descartado após a emergência da teoria da relatividade geral de Einstein. Há, de fato, vários casos na história da ciência que justificam a desconfiança de cientistas e filósofos com esse tipo de recurso teórico. Mas o que Laudan procura defender – e é também algo que explorarei no capítulo 5 –

é que mesmo que haja modificações substanciais numa tradição de pesquisa para ajustá-la às observações e aos dados empíricos anômalos (e ainda que esses ajustes tenham caráter ad

hoc), é possível distinguir em alguns desses processos marcas do progresso científico. Para

Laudan, ainda é possível falar de uma mesma (e não de uma nova e diferente) tradição de pesquisa, ainda que profundamente modificada. É o que ele chama de “evolução natural de uma tradição de pesquisa” (LAUDAN, 1978/2011, p. 139). Relacionado a essa questão, Laudan propõe algo que incorporo nas análises que desenvolvo no capítulo 5: as diversas dificuldades encontradas pelos cientistas para explicar os fenômenos por meio de uma teoria (ou adequar a teoria aos fenômenos) podem e devem levantar dúvidas quanto aos méritos dessa teoria, mas não obrigam o seu abandono nem tornam necessariamente irracional a persistência dos cientistas em continuar desenvolvendo a teoria, apesar das possíveis inadequações desta num dado momento histórico.

Por fim, há uma concepção de Laudan sobre os objetivos da ciência que, como veremos na próxima seção, ecoará em dois filósofos moderados, também críticos de Kuhn: Susan Haack e Alan Chalmers. Ao contrário de Laudan, nenhum deles propõe uma metateoria normativa do funcionamento da ciência. Ambos, porém, partiram de constatações parecidas com as de Laudan sobre os problemas do relativismo epistemológico que pode ser lido em Kuhn, assim como compartilham com Laudan a percepção de que é preciso abandonar uma suposição do positivismo lógico que parece estar tacitamente embutida (com sinal invertido) na visão daqueles que negam toda forma de progresso da ciência. Essa percepção é a de que devemos abandonar como alvo (aim) ou objetivo (goal) da ciência noções transcendentais como a verdade (e suas variantes: a aproximação assintótica da verdade, a busca por aumentar o grau de verossimilhança) ou a certeza apodítica (certeza necessária, logicamente demonstrada) (LAUDAN, 1996, p. 78). Além de provavelmente inatingíveis, esses objetivos transcendentais são geralmente interpretados como condições necessárias para que se considere que a ciência progride. Mas há vários problemas filosóficos ligados à sustentação de que a ciência é capaz de progredir rumo a esses objetivos transcendentais. Por isso, não raramente, a conclusão de que não podemos verificar se estamos nos aproximando (ou nos distanciando) da verdade motivou o apressado diagnóstico de que a ciência simplesmente não progride. Veremos na seções 2.5.2. e 2.5.3. que, além de ecoarem muito das formulações de Laudan sobre o desenvolvimento científico, Chalmers e Haack forneceram argumentos frutíferos para contornar os problemas causados por essa concepção.

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Nas últimas duas décadas do século XX, o aumento da influência do construtivismo social nos meios acadêmicos ocidentais (principalmente nos Estados Unidos) e a estridência anticientífica do pós-modernismo geraram, previsivelmente, um backlash por parte de um numeroso e diversificado grupo de cientistas e intelectuais. Inicialmente discutidos e rebatidos dentro dos campos esotéricos da epistemologia, da filosofia e da sociologia da ciência, os ataques céticos ao status epistemológico das ciências naturais e as respostas em defesa da ciência e da racionalidade ingressaram numa arena mais ampla e reverberaram no debate público. A disputa ficou conhecida como science wars e foi travada num espesso fog of war, que alguns pensadores tentaram dissipar. Alan Chalmers e Susan Haack deram contribuições importantes para uma visão bastante moderada e sensata da ciência, mantendo distância das armadilhas localizadas nos extremos do debate.