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Capítulo 3. Um exame da história das teorias sobre a formação do sistema solar

3.3. As hipóteses do encontro estelar

3.3.4. O declínio das hipóteses do encontro estelar

52 Numa espécie de pitoresca nota de rodapé à história da velha disputa do Novo Mundo contada por Antonello

Gerbi, houve um breve período de acusações mútuas sobre a precedência das duas teorias. Em 1928, Moulton acusou publicamente os britânicos de chauvinismo nacionalista por supostamente não darem o devido crédito a ele e a Chamberlin, que tinha falecido naquele ano. Jeffreys se defendeu dizendo que havia manifestado suficiente reconhecimento pelo trabalho de Chamberlin e Moulton, embora tenha reclamado de que o geólogo estadunidense teria contribuído para o preconceito entre geólogos contra a geofísica dele, Jeffreys. O geólogo inglês também sugeriu que a ideia de encontro estelar não era nova, citando predecessores como Bickerton e Buffon. Jeans se defendeu afirmando que bem antes de 1905 já havia sugerido a possibilidade de um encontro estelar dar origem ao sistema solar (Brush diz que há apenas vagas menções a isso nos trabalhos a que Jeans faz alusão). (BRUSH, 1996c, p. 74). Jeans dá o devido crédito a Chamberlin e Moulton em seu livro de 1919 (“a mais completa forma de teoria de ação de maré”) e não alega precedência sobre os estadunidenses em relação à ideia de encontro estelar, mas também não os reconhece como pioneiros. (JEANS, 1919, p. 18).

Apesar de terem sido as cosmogonias predominantes nas comunidades científicas dos dois lados do Atlântico, a partir de meados da década de 1920 as teorias do encontro estelar encontraram objeções e críticas. O mais consistente entre seus críticos foi o astrônomo estadunidense Henry Norris Russell (1877-1957). Embora tenha inicialmente aceitado a hipótese planetesimal, já em 1925 Russell expressou reservas quanto a detalhes da teoria diretamente a Moulton (BRUSH, 1996c, p. 78).53 Suas críticas às teorias do encontro estelar, principalmente comunicadas em cartas a outros pesquisadores, foram condensadas e publicadas no capítulo final de The Solar System And Its Origin, livro publicado em 1935, um marco do rápido declínio dessas cosmogonias dualistas.

A primeira crítica de Russell é de dinâmica e conclui que o filamento de matéria arrancado do Sol por uma estrela de passagem não poderia ter produzido a distribuição de momento angular por tonelada apresentada pelo sistema, que é de ordem crescente a partir de Mercúrio até Netuno (RUSSELL, 1935, p. 113-4)54. Para produzir o momento angular por tonelada de Netuno, a velocidade com que a matéria teria sido ejetada do Sol teria produzido uma trajetória hiperbólica e escapado da gravitação do Sol para o espaço interestelar. O cenário mais plausível para um encontro estelar produzindo planetas, segundo Russell, seria o de planetas maiores mais próximos do Sol, e os menores, mais longe (RUSSELL, 1935, p. 115-6).

A outra crítica de Russell está relacionada à emergência da astrofísica. Na década de 1910 e 20, a astrofísica estava em franco desenvolvimento e teria um papel importante na composição de uma das duas críticas fundamentais elaboradas por Russell.

53 Um sintoma da instabilidade do solo em que as teorias do encontro estelar estavam alicerçadas já no final da

década de 1920 é o abandono da ideia de aproximação entre estrelas como evento gerador do nosso sistema planetário por um dos próprios proponentes da teoria de maré, Jeffreys. Em 1929, no lugar do encontro estelar, Jeffreys ressuscitou a ideia de Bickerton (uma colisão estelar de raspão) para explicar a rotação dos gigantes gasosos. (BRUSH, 1996c, p. 77). Que o próprio Russell tenha aceitado essa teoria de colisão por um curto espaço de tempo no começo da década de 1930 é ainda mais sintomático da situação de instabilidade do campo das cosmogonias nesse momento.

54 A maior parte do momento angular do sistema, se o critério for meramente os objetos celestes, está

concentrada em Júpiter. Mas se a distribuição do momento angular for analisada pela quantidade de massa, então a matéria que mais possui momento angular no sistema é a que compõe Netuno, em ordem crescente a partir de Mercúrio, obedecendo o tamanho dos raios das órbitas dos planetas. Assim as partículas de Marte têm mais momento angular do que as partículas que compõem a Terra, embora como planeta a Terra tenha conservado mais momento angular do que Marte.

O próprio James Jeans foi uma figura muito importante no desenvolvimento da astrofísica55 e se envolveu numa célebre disputa teórica com seu compatriota Arthur Eddington (1882-1944) 56. A disputa, que durou anos, era sobre a estrutura das estrelas, principalmente com relação a sua fonte de energia. Jeans rejeitava especulações sobre ainda desconhecidas fontes de energia e defendia a contração gravitacional como produtora da energia as estrelas (STANLEY, 2007, p. 62-5). Eddington, motivado pela possível relação entre massa e luminosidade nas estrelas, explorava possibilidades de “aniquilação subatômica” e “transmutação de elementos” (idem, p. 72-3). Em 1920, Eddington efetivamente propôs que nas estrelas ocorre um processo de fusão nuclear que transforma hidrogênio em hélio e libera uma enorme quantidade de energia. Essa é, basicamente, a concepção atual sobre o funcionamento da imensa maioria das estrelas.

A consequência da resolução desse debate para a discussão cosmogônica é que o material que compõe as estrelas se encontra a temperaturas muito mais elevadas do que se pensava antes que a fusão nuclear fosse estabelecida como fonte de energia estelar. À luz da nova estrutura das estrelas, Russell estimou que o filamento de matéria que teria sido arrancado do Sol pela estrela passageira deveria se encontrar a uma temperatura média de “mais de um milhão de graus” (RUSSELL, 1935, p. 111). Era uma diferença enorme para as estimativas de Jeans e Jeffreys, segundo as quais a temperatura do material não ultrapassaria alguns poucos milhares de graus.

Essa discrepância se deveu a outra contribuição da astrofísica: em 1919, como ainda se sabia muito pouco sobre a estrutura das estrelas, a teoria de maré foi elaborada com a permissão de se pudesse imaginar o Sol primitivo com vinte vezes ou mais o tamanho do Sol atual. Nesse cenário, o material que formaria Júpiter (ou seja, a maior parte da matéria que forma os planetas) poderia ter sido arrancado da fotosfera do Sol. Em 1935, o conhecimento de astrofísica apontava para a conclusão de que o Sol primordial tinha praticamente o mesmo tamanho do Sol atual. Isso obrigatoriamente fazia com que a quantidade de matéria necessária para formar Júpiter deve ter vindo de camadas muito mais internas do Sol – logo, a temperaturas muito mais altas.

55 Jeans é creditado por muitos como o autor do primeiro livro de astrofísica teórica, Astronomy and Cosmogony,

de 1928 (SCHULZ, 2012, p. 17).

56 Matthew Stanley (2007) sustenta que a divergência entre Jeans e Eddington era ainda mais profunda:

subjacente à discussão sobre a estrutura das estrelas estavam duas concepções antagônicas acerca da metodologia da pesquisa científica. Eddington esposava uma abordagem fenomenológica e especulativa, enquanto Jeans defendia um método dedutivo em busca de certeza e completude.

A temperaturas como a estimada por Russell, quase todo material arrancado do Sol se dissiparia antes de poder se condensar e formar os planetas: “a um milhão de graus, átomos de hidrogênio têm uma velocidade média de quase mil milhas por segundo. A atração da massa ejetada não seria capaz de mantê-los por perto. Eles simplesmente se dissipariam no vácuo do espaço interplanetário quase como se não houvesse força que restringisse sua fuga” (RUSSELL, 1935, p. 112). Em 1939, esse argumento foi incrementado quantitativamente pelo físico e astrônomo Lyman Spitzer Jr. (1914-1997), um aluno de Russell, chegando basicamente à mesmo conclusão: “é improvável que qualquer parte do filamento possa permanecer [evitando dissipação] depois que a maior parte dele foi ejetada para o espaço” (SPITZER, 1939, p. 687).

Brush afirma que as críticas de Russell foram rapidamente aceitas como “fatais para todas as cosmogonias dualistas” (BRUSH, 1996c, p. 80), mas a única evidência que ele apresenta disso é o fato de que Jeffreys admitiu não conseguir responder às críticas. O fato de que Spitzer dedicou um artigo para a analisar a plausibilidade das teorias de encontro (e de colisão) estelar em 1939 mostra que a rejeição de uma classe de teorias não se deu de maneira imediata e por causa de uma única publicação. O mesmo ocorreu com a hipótese nebular no início do século XX: grande parte do livro de Jeans dedicado às cosmogonias ocupa-se da avaliação da sustentabilidade matemática e abstrata do que o físico chama de “teoria rotacional”, a parte laplaciana da hipótese nebular; isso, num trabalho publicado em 1919. O fato de que Jeans a percebe como insustentável para explicar a formação o sistema solar e propõe uma teoria alternativa no lugar não afeta o significado do esforço que ele faz para refutar a hipótese nebular já com duas décadas de século XX. Se a hipótese nebular tivesse simplesmente sido refutada por Chamberlin e Moulton, não seria necessária uma análise de dinâmica de um dos mais eminentes matemáticos e físicos do período para tentar demonstrar sua insustentabilidade.

Em vez de adotar uma simplificação histórica que apontaria para mudanças teóricas relativamente rápidas e em bloco (da hipótese nebular ao encontro estelar e de volta a hipóteses aparentadas ao que já era chamado de hipótese de Kant-Laplace), prefiro caracterizar as seis décadas entre o final do século XIX e a metade do século XX como um período de crise das teorias de formação do sistema solar. Esse período foi marcado por várias mudanças nas teorias tomadas como balizas e limites para que conjecturas cosmogônicas fossem feitas. Algumas dessas mudanças tiveram consequência direta na avaliação, proposição e rejeição de cosmogonias; outras, indiretas; mas todas elas influenciaram,

mudaram e, em certa medida, embaralharam a própria visão de mundo influenciada pela ciência. Houve uma transformação profunda na física teórica, com a emergência da relatividade e da física quântica. Houve também o surgimento do conhecimento sobre radioatividade (que impactou teorias sobre a estrutura do interior da Terra). A constituição da astrofísica como campo de saber especializado gerou o avanço enorme no conhecimento da estrutura das estrelas e seu mecanismo de produção de energia. Também houve avanços fundamentais na espectroscopia, com progresso no conhecimento da composição química das estrelas e dos planetas.

Seria esperar demais que se mantivesse estável uma área do conhecimento que depende quase completamente das balizas dadas por uma rede de teorias de diferentes áreas do conhecimento científico, cada uma das quais em processo de rápida e profunda transformação. De qualquer forma, as teorias do encontro estelar não tiveram qualquer sobrevida significativa a partir da década de 194057. Porém, como é frequente na história da ciência, nem tudo nessas teorias foi abandonado pelos textbooks e migrou somente para os livros de história: a ideia de acreção de planetesimais acabou sendo ressuscitada no século XX pelas tradições de pesquisa que se desenvolveram até hoje para constituir as mais frutíferas teorizações sobre a formação do sistema solar.