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Capítulo 3. Um exame da história das teorias sobre a formação do sistema solar

3.4. Rumo a um tênue consenso: o período de transição

3.4.5. Um consenso no dissenso

A partir da década de 1970 se formou um tênue consenso no campo das planetogonias, ainda que houvesse muitas discordâncias quanto aos diferentes estágios e processos de formação de estrelas e planetas. O rumo tomado pelo campo é simbolizado pelo título de uma conferência dedicada ao tema, a primeira Protostars and Planets, que ocorreu em 1978. Mais do que isso, no compêndio dos trabalhos apresentados, encontra-se uma sucinta avaliação do estado em que se encontrava a ciência da formação do sistema solar:

Ainda não existe uma teoria moderna unificada e bem aceita de formação de planetas, mas um corpo de trabalho em andamento que se move em uma determinada direção. Ele sugere que poeira e gás formam universalmente nebulosas circunstanciais em torno de novas estrelas. Parte da poeira pode sobreviver intacta de origem anterior em supernovas ou outros processos de ejeção estelar. De qualquer forma, é provável que o material seja afetado isotopicamente por supernovas próximas. É quase certo que novas poeiras se condensem na nebulosa circunstelar em resfriamento. O problema do desenvolvimento planetário é o problema da evolução adicional dos componentes de poeira e gás da nebulosa. (HARTMANN, 1978, p. 58).

A conferência tinha o objetivo de colocar em contato pesquisadores de formação e evolução de estrelas com planetogonistas66. Ainda não havia evidências da existência de discos circunstelares (um invólucro esférico de poeira era considerado uma alternativa plausível para a explicação do excesso de emissão de infravermelho ao redor de protoestrelas). Além disso, ainda nenhuma alegação de descoberta de exoplanetas havia sobrevivido ao exame crítico da comunidade. Não havia meios de testar a hipótese de que a formação de estrelas implicava a formação de planetas. Por isso, pode parecer um contrassenso, diante da ausência de evidências do próprio objeto (a conexão observacional entre a formação de estrelas e a de planetas), que a conferência tenha sido realizada. Penso, no entanto, que era justamente pela carência de dados observacionais que foi considerada necessária uma integração do conhecimento de astrofísica com o da astronomia planetária, na busca por entender se e como a formação de estrelas e a de planetas poderiam estar relacionadas. E por um motivo simples: a ausência de evidência sobre exoplanetas e discos circunstelares no final da década de 1970 não era interpretada como um bom motivo para considerar a situação como um todo uma evidência de ausência desses objetos. Em vez disso, havia fortes motivos teóricos e técnicos para considerar que discos circunstelares e exoplanetas existiam, só não havia tecnologia disponível para detectá-los.

Naquele momento, apesar de uma substancial indefinição teórica sobre os processos envolvidos na origem do sistema solar, haviam surgido campos inteiros de investigação científica baseados em extrapolações da hipótese de pluralidade de sistemas planetários: a astrobiologia e a SETI (Search for Extraterrestrial Intelligence). Como

66 Nas palavras do editor do compêndio da primeira Protostars and Planets, “a fertilização cruzada de

informações e conhecimento ocorrerá quando os pesquisadores familiarizados com as fases estelar e interestelar se encontrarem com aqueles que estudam as fases iniciais da formação do sistema solar.” (GEHRELS apud BEUTHER, et al, 2014, p. XVI).

sabemos, a base da calibragem da hipótese de vida extraterrestre, antes da detecção de exoplanetas, dependia de concepções cosmogônicas. O zeitgeist do período, personificado em figuras públicas da ciência como Frank Drake e Carl Sagan (proponentes e entusiastas da SETI e da astrobiologia), apontava para uma confiança razoável da comunidade científica em torno de suposições planetogônicas basilares, como a de que os planetas devem ser subprodutos da formação do Sol, formados a partir de um disco de poeira e gás ao redor da estrela. É claro que a imagem de um universo abarrotado de mundos habitados quase sempre foi sedutora, mas isso não explica a direção tomada por parte muito representativa do pensamento científico do período com relação a esse tema específico. Especialmente se levarmos em consideração que apenas quatro décadas haviam transcorrido desde o período de domínio das teorias do encontro estelar, quando a confiança na existência de vida extraterrestre provavelmente se encontrava na maior baixa de sua história. A meu ver, a direção tomada pela comunidade científica voltada à compreensão da formação de estrelas e planetas foi fundamental para a formação desse zeitgeist.

Rapidamente, nas edições seguintes de Protostar and Planets, a concepção de formação de planetas como subproduto da formação estelar, via processos de acreção de planetesimais num disco circunstelar de gás e poeira, deixou de ser apenas uma tendência e se transformou num panorama teórico dominante. O cenário teórico do período parece ser um amálgama de conceitos propostos por alguns dos mais influentes teóricos de formação de planetas no momento Safronov e Wetherill (acreção de planetesimais), Alfvén (magneto- hidrodinâmica) e Cameron (supernova e turbulência em disco). Até mesmo por isso, é possível afirmar que o consenso não se formou porque havia ocorrido a aceitação ampla de uma teoria paradigmática, mas, principalmente, porque houve um grande avanço nas observações astronômicas.

Em 1984, a detecção de emissões no infravermelho características de discos de poeira e gás ao redor de estrelas relativamente próximas do sistema solar foi interpretada como a primeira evidência observacional de sistemas planetários em processo de formação. Dois anos depois, um disco de características parecidas foi observado ao redor da estrela HL

Tauri (uma T Tauri, estrela jovem de tipo solar)67. Essas observações inéditas, embora ainda

67 Essa estrela foi observada novamente em 2014 por meio do ALMA (Atacama Large Millimeter/submillimeter

Array). Pela primeira vez na história, os astrônomos conseguiram observar o que é interpretado como as linhas de acreção em disco protoplanetário. A imagem detalhada do disco de HL Tauri, produzida com o ALMA, pode

ser acessada no site oficial do European Southern Observatory (ESO):

não constituíssem evidência inequívoca de sistemas planetários em formação, reforçaram o apelo das teorias que concebiam a formação de planetas pela acreção de poeira e gás num disco protoplanetário compreendido como subproduto da formação do Sol. Em parte por conta disso, na segunda Protostars and Planets, ocorrida 1985, emergiu o seguinte quadro:

Hoje, a formação simultânea de uma estrela e um sistema planetário é entendida como consequência natural e combinada do colapso de uma nuvem interestelar de gás molecular e poeira. As ideias propostas para explicar a existência do sistema solar parecem geralmente aplicáveis à formação de estrelas em todo o universo. Se esse é realmente o caso, os sistemas planetários devem estar presentes em grande número por todo o universo. Até as características estruturais gerais do sistema planetário no sistema solar parecem ser o resultado de processos quase determinísticos, e não o resultado do acaso; muitos sistemas planetários em todo o universo podem se assemelhar a ele (LEVY, 1985, p. 3).

É uma avaliação um tanto otimista. O consenso planetogônico forjado nas décadas de 1970 e 80 é tênue. É o que chamo de consenso no dissenso: embora houvesse um acordo em torno da ideia de que os planetas se formam em um disco de acreção que por sua vez é um subproduto da formação estelar68, havia também um profundo desacordo sobre os variados processos de formação planetária.

É importante frisar a fragilidade desse consenso: não houve acordo duradouro sobre a causa do colapso gravitacional da nebulosa solar. Não se sabia quais eram os processos mais importantes na transferência de momento angular da estrela para o disco. Não havia consenso sobre a formação dos gigantes gelados: no cenário de acreção de planetesimais de Safronov, Netuno demoraria um tempo maior do que o da existência do próprio sistema solar para se formar, a não ser que determinadas suposições sobre o estado inicial da nebulosa solar fossem adicionadas arbitrariamente aos modelos testados em simulações computacionais, como realizado por Wetherill.

É importante ressaltar que vários dos problemas presentes na década de 1980 perduram ainda hoje, com maior ou menor grau de indefinição, embora a tendência de convergência teórica tenha se acentuado. A diferença entre o consenso desse período com o atualmente apresentado é que as formulações teóricas atuais estão ancoradas em um profusão 68 Todo acordo ou consenso científico tem seus “outsiders” e “mavericks”. O consenso mínimo formado nesse

período têm como exceção honrosa o cientista australiano Michael Woolfson. Desde meados da década de 1960, Woolfson propôs a chamada de Teoria de Captura, postulando um encontro primordial entre o Sol e uma protoestrela difusa. Essa teoria tem interesse muito circunscrito e quase nenhuma aceitação. Em revisões sobre a ciência da formação do sistema solar deste século (exceto as escritos pelo próprio Woolfson), a teoria sequer é mencionada. Woolfson chama os modelos formulados por Safronov e Wetherill de Solar Nebula Theory (SNT) e afirma que a SNT constitui um paradigma na área das planetogonias (WOOLFSON, 2014).

de dados observacionais sobre objetos cuja existência no início dos anos 1980 era controversa (discos protoplanetários), incerta (exoplanetas) ou especulada (o cinturão de Kuiper). De lá para cá, também houve um refinamento do conhecimento de cosmoquímica sobre composição de meteoritos e asteroides, além do aumento das informações coletadas por sondas robóticas sobre o solo marciano, asteroides, cometas e objetos transnetunianos. As planetogonias continuam se desenvolvendo em articulação com teorias astrofísicas sobre estrutura, formação e evolução de estrelas e nebulosas moleculares. Em certo sentido, houve o que chamo de afunilamento das possibilidades teóricas e uma melhor definição dos problemas considerados centrais (assunto que será abordado nos próximos capítulos). Na próxima seção, apresento o cenário atual.