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Capítulo 3. Um exame da história das teorias sobre a formação do sistema solar

3.5. O cenário teórico atual

3.5.1. O problema dos gigantes

A formação dos gigantes gasosos ainda é um problema em aberto, embora exista um modelo considerado padrão, ou ao menos mais favorecido, denominado acreção de

núcleo (core accretion). A hipótese alternativa é chamada de instabilidade de disco (disk instability). O modelo de acreção de núcleo foi proposto em 1986 pelos astrofísicos Peter

Bodenheimer e James Pollack (1938-1994) (BODENHEIMER e POLLACK, 1986). O artigo mais importante, em que essa teoria aparece mais bem desenvolvida com o uso de simulações computacionais, foi publicado dez anos depois (POLLACK et al, 1996). O modelo de instabilidade de disco tomado como referência atualmente foi proposto logo depois por Alan Boss (BOSS, 1997).

Ambos os modelos são desenvolvimentos de hipóteses previamente elaboradas por outros planetogonistas. Cameron já havia proposto um processo de formação de gigantes gasosos com o que chamou de instabilidade gravitacional (gravitational instability) nos anos 1970, uma hipótese que, mutatis mutandis, remonta à teoria de Kuiper do começo dos anos 1950. A hipótese foi modificada por Boss, resultando num tempo de formação mais rápido e em gigantes gasosos sem núcleo rochoso. A teoria de acreção de núcleo, por sua vez, pode ser

caracterizada como um refinamento da teoria de acreção de planetesimais de Safronov aplicada aos gigantes gasosos. Esse modelo foi originalmente chamado de instabilidade de

núcleo (core instability) por seus próprios autores.69 Uma revisão abrangente desses dois

modelos, assim como dos principais trabalhos que contribuíram para seu desenvolvimento, pode ser encontrada no artigo Giant Planet Formation (D’ANGELO, 2010). Aqui, apresento uma versão simplificada dessa discussão teórica.

Pollack e Bodenheimer desenvolveram a formação dos gigantes gasosos segundo um processo gradual “de baixo para cima”, típico da teoria de acreção de planetesimais. Simplificando, essa formulação teórica propõe que o processo começa com a formação de minúsculos corpos sólidos, passa pela formação de um núcleo planetário rochoso a partir da acreção desse material sólido (daí o nome do modelo, acreção de núcleo), até que o protoplaneta (de aproximadamente dez massas terrestres) passa a ter massa suficiente para atrair o gás (hidrogênio e hélio, a maior parte da composição dos gigantes gasosos) presente em sua zona de influência gravitacional no disco protoplanetário. É um processo relativamente lento: dependendo dos parâmetros considerados para a densidade do disco na área de formação do planeta, o processo pode durar entre 3 e 8 milhões de anos para Júpiter, e entre 3,5 e 10 milhões de anos para Saturno (POLLACK et al, 1996, p. 83-4). Na década de 1980, as estimativas de acreção do material rochoso de Júpiter resultavam em períodos de entre 10 e 100 milhões de anos (BODENHEIMER e POLLACK, 1986, p. 405).

Em comparação com a acreção de núcleo, a instabilidade de disco é um processo muito mais rápido e direto de formação de planetas, “de cima para baixo”. Simplificando a formulação teórica de Boss, o gás e a poeira do disco se contraem gravitacionalmente e formam conjuntamente o gigante gasoso num período de apenas alguns milhares de anos, sem a necessidade de formação de um núcleo rochoso muito massivo e bem definido. Esse processo precisa de um disco protoplanetário com muito mais massa do que o modelo de acreção de núcleo. O motivo: para que a instabilidade gravitacional ocorra em algum ponto, a gravidade do próprio material presente no disco deve sobrepujar os efeitos da pressão do gás e da velocidade de rotação de suas partículas no disco. Se isso ocorrer, um planeta como Júpiter se forma em pouco tempo e sem um núcleo rochoso muito bem definido, dado que os materiais sólidos e gasosos serão atraídos para o planeta simultaneamente.

69 Obviamente, algumas confusões podem emergir com o uso dos nomes originais, que repetem o termo

instabilidade. Optei pelas denominações que são as mais utilizadas atualmente na literatura científica (e.g. D’ANGELO, 2010) e evitam confusões.

Um aspecto muito importante dessa disputa teórica é o fato de que ambas as alternativas fazem predições razoavelmente específicas sobre a estrutura interna dos gigantes gasosos. O modelo de acreção de núcleo prevê que Júpiter e Saturno devem ter um núcleo rochoso. Esse seria o corpo que, logo depois de formado, exerceria atração gravitacional suficiente para capturar o gás que perfaz a maior parte da massa desses planetas. O modelo de instabilidade de disco, ao contrário, resulta num gigante sem um núcleo rochoso ou metálico – ao menos, não um núcleo bem definido e delimitado. De maneira coloquial, em ambos os modelos o planeta resultante teria a mesma composição química, mas a estrutura interna varia: se formado pela instabilidade gravitacional, o material rochoso e metálico se encontraria de certa forma difuso no interior do planeta junto com o hidrogênio e o hélio. Mas, no estado atual das pesquisas, não há suficiente conhecimento da estrutura interna dos gigantes gasosos para que sirva como uma instância de teste das planetogonias. Ainda há muita incerteza sobre se Júpiter e Saturno possuem um núcleo bem definido composto de elementos pesados (na seção 5.4. haverá um exemplo de interação entre formulações teóricas planetogônicas e inferências sobre a estrutura interna dos gigantes gasosos).

Acompanhando as discussões sobre a contenda, percebo que há alguns motivos persuasivos, mas não decisivos, para que o modelo de acreção de núcleo seja em geral considerado mais promissor e frequentemente caracterizado como standard ou paradigmático (e.g. ALIBERT et al, 2004). O primeiro é o de que ele não postula processos essencialmente diferentes para a formação dos planetas rochosos, dos gasosos e dos gelados – ao menos não nos estágios iniciais de formação dos quatro planetas gigantes. A acreção gradual de planetesimais se aplicaria, portanto, a todos os planetas do sistema solar. A instabilidade de disco, por sua vez, concebe a formação dos gigantes gasosos de forma muito diferente da formação dos rochosos.

Outro fator que aparentemente dá vantagem ao modelo de acreção de núcleo está relacionado à massa mínima da nebulosa solar. A formação dos gigantes gasosos pode ocorrer via acreção de núcleo num disco com massa entre 1-2% da massa total na nebulosa solar primitiva, enquanto essa porcentagem deve estar em torno de 10% para que o disco protoplanetário possa ter instabilidades gravitacionais do tipo que podem produzir gigantes gasosos. Um disco assim tão massivo daria origem a muitos outros gigantes gasosos que precisariam ser expulsos posteriormente para que o sistema solar chegasse à estrutura planetária atual. O disco necessário para o processo de acreção de núcleo ocorrer é compatível

com as estimativas atualmente consideradas mais seguras da massa mínima da nebulosa solar (minimum-mass solar nebula).

Isso não quer dizer que o modelo de acreção de núcleo não tenha seus próprios problemas. Um recém-detectado planeta gigante orbitando uma estrela anã vermelha foi interpretado como um desafio ao modelo de acreção de núcleo e reavivou o interesse na teoria de Boss. Sublinho o fato de que Pollack e seus colaboradores alertaram que seus resultados podem não se aplicar para outros planetas gigantes além do sistema solar (POLLACK et al, 1996, p. 62). Mas, como sabemos, o objetivo do campo deixou de ser apenas explicar a formação do sistema solar e passou a englobar os outros sistemas planetários descobertos de meados dos anos 1990 em diante.

Outra questão importante, que pode vir a favorecer o modelo de instabilidade de disco, está relacionada à escala de tempo necessária para formação de gigantes. A formação de grandes núcleos rochosos (de aproximadamente 10 massas terrestres) deve durar seguramente mais de 1 milhão de anos, mas uma fração considerável das estrelas jovens pré- sequência principal têm seu disco circunstelar dissipado antes de chegarem a 1 milhão de anos de idade. Isso não chega a constituir uma incompatibilidade da acreção de núcleo com os dados sobre discos circunstelares, mas o modelo de instabilidade de disco não esbarra nesse desconforto com a escala de tempo de dissipação dos discos.

É possível que ambos os processos estejam envolvidos na formação de planetas e possam ocorrer dependendo da densidade e da assimetria da distribuição de massa nos discos protoplanetários. Independentemente de qual dos dois processos seria o responsável pela formação de gigantes gasosos, existe um consenso de que o começo da história dos planetas gigantes (tanto os gasosos quanto os gelados) deve ter tido grande influência na dinâmica dos planetesimais, na origem da água na Terra e no late heavy bombardment. Também pode ter exercido influência considerável na formação dos planetas terrestres (GARGAUD, 2011, p. 2733), principalmente com relação ao problema da formação de Marte, que é muito menos massivo do que a Terra e Vênus. O modelo de acreção de planetesimais esbarra numa dificuldade importante: o quarto planeta rochoso deveria ter massa mais ou menos parecida com seus dois vizinhos mais internos. Isso levantou uma questão sobre o que pode ter impedido Marte de ter tanta massa quanto deveria, de acordo com a teoria. Atualmente, as explicações mais promissoras para responder a essa questão recorrem ao processo de migração planetária, uma das maiores novidades das planetogonias atuais em relação a toda a história anterior.