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Uma das iniciativas que teve início no Instagram é o perfil @ex_miss_febem criado por Aleta Valente (1986, Rio de Janeiro/RJ). O principal elemento do trabalho são imagens do corpo que se configuram como potentes gestos artísticos. Sua série de autorretratos causou alvoroço nas redes sociais com os posts da polêmica persona, entre 2015 e 2017. Dotada de linguagem perspicaz e afinada com alguns dos principais tópicos das pautas feministas, como a reivindicação sobre o direito ao próprio corpo, criou o perfil @ex_miss_febem no Instagram e no Facebook.

No currículo da artista, consta que foi estudante de História da Arte na Escola de Belas Artes da Universidade Federal do Rio de Janeiro e fez o programa de aprofundamento da Escola de Artes Visuais do Parque Lage, além de ter desempenhado diversas funções no mundo da arte. Durante alguns anos, seu trabalho foi algo bem disperso, entretanto, já a interessavam algumas questões específicas de seu contexto vivencial. Não trabalhava com algum suporte específico, porém, produzia textos, instalações e performances que, efetivamente, dependiam de circunstâncias ideais para serem expostas. Seguia seu percurso na arte até o dia em que comprou um smartphone e, conforme descrito em sua biografia na web, foi quando sua vida mudou.

Post de @ex_miss_febem coletado no Google

Disponível em https://www.select.art.br/fluxos-fixos-e-fluidos/

Com o tempo, obteve intimidade com o aparelho e começou a produzir retratos e autorretratos, as conhecidas selfies. Essas imagens clicadas por Aleta poderiam, simplesmente, permanecer armazenadas na memória do celular, entretanto, começou a fazer o upload das fotos cotidianamente. Ela somente não imaginava que as mídias sociais poderiam servir como suporte para uma pesquisa artística a partir da sua própria imagem, e eis que o processo de instauração de um avatar foi tomando seu corpo virtual.

Post de @ex_miss_febem

Disponível em https://www.select.art.br/fluxos-fixos-e-fluidos/

A figura do avatar deve ser lida neste contexto como uma figura gráfica, uma máscara, um corpo digital que é utilizado pelo usuário de um sistema de rede, a fim de transportar dados dessa identidade pelo ciberespaço. A identidade criada por Aleta no Instagram adquiriu maior número de seguidores, usuários da plataforma que davam seus

feedbacks por meio de curtidas, comentários e compartilhamentos, um processo de retroalimentação característico do sistema de operações em rede. O perfil criado sob o nome @ex_miss_febem passou a ter maior visibilidade e, quando a artista percebeu, consolidava-se uma narrativa ficcional que a autorizava a falar da sua realidade. Por meio do avatar passou a transitar pelo território virtual simultaneamente aos seus percursos pela cidade. Estavam, assim, abertos os portais da Internet para que a produção de uma jovem artista, mãe, mulher, pobre e moradora da periferia, como ela se define, alcançasse uma vultosa potência poética e crítica. A repercussão acabou por mobilizar até a vigilância virtual e as políticas que regulam a exposição de imagens no sistema da rede social. No foco da proposta de Aleta, as imagens fotográficas revelavam diversas formas de representação do seu corpo físico encenado e exposto por gestos performativos diante da câmera do celular.

Imagem de @ex_miss_febem

Disponível em https://glamurama.uol.com.br/dont-touch-my-moleskine-aponta-mais-2-artistas-para-ficar-de- olho-em-2016/

Num misto de erotismo, ironia e provocação social a @ex_miss_febem converteu-se numa identidade carregada de subjetividades, adquirindo contornos feministas com o propósito de discutir os limites de representação do corpo feminino em exposição. Assim, foi realizando no Instagram a série denominada por ela de selfies eróticas, à semelhança de milhares de imagens captadas com celular e postadas na rede social, como encontramos na plataforma diariamente. Com seu olhar peculiar sobre o cotidiano e os temas que desejava provocar, Aleta foi capaz de temperar seu estilo com uma dose de exibicionismo com ironia, além da exposição da privacidade e do erotismo, e de escancarar os espaços públicos não tão belos da cidade. Definindo a si mesma como artista visual, instagrammer, mãe solteira,

feminista e suburbana, Aleta apostou em seu olhar para confrontar e subverter alguns princípios das narrativas hegemônicas sobre a representação do corpo e da imagem da mulher que, posteriormente, foi aliada a leituras e conversas com feministas sobre questões envolvendo feminismos.

Com o tempo e os posts regulares @ex_miss_febem tornou-se presença e transitou na experiência da cidade. O Rio de Janeiro com seus cenários nem tão glamurosos assim, e o bairro de Bangu onde vive formaram molduras ideais para as suas perambulações, aliás, indispensáveis a alguns processos colaborativos visíveis em determinadas proposições contemporâneas. Ao compartilhar esses gestos na galeria virtual em modo público, foi capaz de usufruir do dispositivo da rede e estabelecer um sistema de linguagem com o público, produzindo narrativas conforme seus princípios e protocolos. Exposta nesse modo fotográfico e identificada como uma imagem mais próxima do ‘real’, ou seja, do que faz parte do seu cotidiano vivido em um corpo físico, a artista subverteu e revirou alguns padrões, causando até a fúria de muitos usuários.

Com o caráter de uma pesquisa em processo, Aleta e @ex_miss_febem constituem a mesma pessoa, dividindo ou compartilhando o mesmo corpo, a mesma vida. No entanto, a identidade artista criou situações para o corpo da identidade avatar e começou a agenciar esse corpo a favor de outras narrativas que ela vivia. Em realidade, ela foi capaz de criar uma ficção, um ensaio, uma projeção, o que deu ainda mais brecha para seu processo criativo. O trabalho a conduziu em um processo de autolegitimação através da difusão de imagens que partiam de seu ponto de vista do que é a cidade, a sexualidade, a moral, a política e até mesmo o que é o circuito da arte. No processo de criar algumas imagens, houve momentos em que ela parava, pensava e criava uma cena, enquanto outras composições eram fruto de pura observação do cotidiano da cidade do Rio de Janeiro. Num movimento de apropriação do território urbano as imagens expressadas na rede social também fizeram uso de algumas hashtags, como #cidadeolimpica, #cidademaravilhosa, #rio40graus, por exemplo. Dessa forma, a artista mostrava um campo da cultura popular que valoriza o periférico, retratando a luta de classes, ritos e cotidianos das classes populares, configuradas no modo de ser artista como um padrão de resistência social, composto e atestado no conjunto de seu corpo imagético. Um detalhe importante é que @ex_miss_febem nunca passou pela antiga Fundação Estadual do Bem Estar do Menor, o apelido veio da música ‘Kátia Flávia’ de Fausto Fawcett que dominou o rádio e a televisão em 1987.

A partir dos trabalhos abordados, observa-se que as narrativas artísticas mediadas por dispositivos digitais originam múltiplos desdobramentos. A constituição da ideia, no caso de

Laís Pontes, parte da premissa de incorporação da participação do público para compor as propostas. Percebe-se que o trabalho on-line estimula o uso consciente e crítico das tecnologias digitais e redes sociais, tendo como perspectiva a atuação mais efetiva das pessoas usuárias e seguidoras do projeto e mesmo na realidade social.

Neste sentido, a imagem transmitida pela rede configura e deixa à mostra inferências discursivas que não estavam explicitadas ao espectador. Incita a percepção de que o desenrolar das cenas pode ser percebido como uma narrativa projetada e inscrita na rede a partir da decisão do usuário em acessar e interagir com o objeto em questão. A esse respeito, Bulhões (2012) afirma:

Assim, objetivam acessar o espectador dentro de seu espaço privado, pela tela de seu computador, estendendo relações para além de seu território físico-geográfico. No entanto, o ciberespaço é um campo de diferentes interesses e conflitos, no qual, ao instalar-se, mesmo criando seus lugares particulares e com suas próprias relações de pertencimento, a arte interage continuamente. Desse modo, as propostas artísticas em redes sociais, muitas vezes, exploram esses conflitos e contradições. (BULHÕES, 2012, p. 50)

Tais repertórios imagéticos formam parcela expressiva da produção contemporânea absorvida na significação de visualidades que falam por si e compõem um remix de imagens, palavras, percepções. Este exercício de produção da linguagem – e aqui o conceito de linguagem funciona como qualquer coisa que seja compartilhada – cria situações que suscitam diversos tipos de experiências. Em relação à linguagem, as ferramentas de comunicação e informação como a internet ou as redes sociais têm influenciado nas formas de participação, além de promover alterações na estrutura de pensamento ativada pela interação de usuários espectadores com as máquinas ou dispositivos digitais.

Para reforçar a questão da utilização da palavra, consideramos uma reflexão da filósofa Viviane Mosé (2008), para quem a palavra tem uma potência estética, ao afirmar que “a linguagem é a grande política porque é a linguagem que nos castra, nos isola, nos separa, nos transforma em sujeito, sujeito no sentido de identidade, de que é o princípio da própria ação”. Neste sentido, e de acordo com seu pensamento:

É muita prepotência o ser humano achar que ele é o princípio de sua ação, pois, no máximo o homem participa de sua ação e essa prepotência subjetiva, essa arrogância subjetiva em relação ao mundo fez com que vivêssemos o pensamento e a palavra, mas o pensamento e a palavra racional-lógica-causal, e afastássemos a vida, as intensidades e a linguagem intensa que é a linguagem artística. (MOSÉ, 2008)

caracterizam, assim como nossas tempestades de afetos, de imagens, de sensações, pois, a estrutura da nossa linguagem tem a característica de, ao afirmar alguma coisa, estabelecer que ela é fixa, que tudo aquilo que se diz, se diz como um fato. A instabilidade da vida, ou seja, o caos constitutivo do pensamento de que se vai nascer, se vai morrer e para onde se vai, o que pode acontecer a qualquer momento, marca o nosso pensamento como uma lâmina que nos apresenta constantemente a certeza de que deixaremos de existir em um determinado momento incerto. E essa noção de instabilidade da vida não pode estar afastada da linguagem. Definitivamente, o que entendemos como digital transforma por completo a nossa relação com a representação e, portanto, modifica também a forma como representamos o mundo e como representamos a nós mesmos. Para além dos aspectos estéticos e práticos, a tecnologia influencia a arte e a sociedade, como por exemplo, a relação entre artistas e tecnologia na década de 1970, com suas leituras e manifestações tanto favoráveis quanto contrárias sobre a utilização de novos meios.

Neste ponto, a discussão não está em saber qual é a plataforma ou em qual suporte – analógico ou digital - as artistas desenvolvem seus trabalhos, sendo que o modo digital e o modo analógico podem ser correlatos a estruturas organizacionais do pensamento. O analógico entendido como um pensamento de estruturação linear responde a uma organização geral hierárquica das ideias, enquanto o pensamento digital, em muitos sentidos, funciona de maneira a relacionar essas informações e o que fazemos com elas, quais sentidos somos capazes de estabelecer e quais os vínculos dessas informações.

Por esse ângulo, Grau (2014) sustenta que as metamorfoses e a disseminação das imagens são determinadas de maneira significativa pelos usuários das redes sociais e, frequentemente, algo completamente novo surge das contradições, tensões e diferenças manifestadas visualmente.

É desse modo que diferentes maneiras de ver o mundo se encontram e são negociadas ativamente; é onde se formam os rudimentos de uma nova cultura. Contudo, se alguém quiser entender uma imagem, ao menos em parte, então ela terá que ser considerada dentro do contexto. E os contextos estão se tornando mais e mais complicados devido às diferentes mídias visuais: também é novo o fato de que, aparentemente, não há limites para a aceleração dos processos de troca visual, que não podem ser capturados ou analisados por seus instrumentos empregados pelas ciências humanas nos séculos 19 e 20, devido às suas conexões e ramificações multifacetadas. (GRAU In BEIGUELMAN & MAGALHÃES, 2014, p.105)

Nesta perspectiva, o digital afeta nossas concepções e hábitos, modificando paradigmas tradicionais que antes indagavam para que servia a imagem e qual era sua função na sociedade, assim como a questão sobre qual era o nosso papel frente a imagem fotográfica,

o que era e para que servia a fotografia. Convém ressaltar que o digital opera com um processo de atualização do termo tradicional ou clássico, a noção de fotografia, conforme Pedro Vasquez define em seu Dicionário Técnico da Fotografia Clássica sobre a imagem produzida pela ação da luz sobre um material fotossensível. Desse modo, normalmente chamamos de fotografia as imagens produzidas com o auxílio de instrumentos ópticos. O termo ‘digital’, por sua vez, é empregado para denominar tanto as informações quanto as imagens produzidas pelo sistema de codificação binária utilizado em computação. A cultura contemporânea permeada pelo digital faz com que depositemos nossa memória no território virtual, estaríamos, assim, descarregando na internet a possibilidade de preservar essas memórias. As propostas que utilizam a interface tecnológica podem indicar as pistas para desvelar aspectos dos processos estabelecidos na internet. Os trabalhos estariam num processo de investigação com imagens e não sobre imagens, elaborando protocolos de exploração e hipóteses modeladoras da produção, circulação e recepção desse repertório imagético.

Verifica-se que a web apresenta um território de criação, visibilidade e potência poética para uma diversidade de artistas dedicadas à exploração da arte e internet. Sintonizadas com os novos modos de operação instaurados pela vida digital, seus processos de criação transcorrem do movimento caracterizado pela substituição do contato visual ou da manipulação do objeto artístico para o gesto de contato com os dispositivos digitais. No ato de clicar com o mouse ou tocar a tela, a experiência visual ou estética é convertida nos procedimentos de visualização e de compartilhamento. A rede conectada entra em pauta como referência para a experimentação artística ao possibilitar o desenrolar de ações poéticas sobre a web ou que incluem elementos e temáticas da rede. Uma série de estratégias criam formas por meio de processos de produção e fluxo de conteúdos publicados em redes sociais e blogs. As realizações resultantes desse compartilhamento de experiências podem ser tanto instigantes quanto perturbadoras, caracterizando a rede como um ambiente fértil para a produção e expressão de subjetividades. O ambiente virtual configurado no sistema de dados algorítmicos sugere, sob os signos da visualidade, uma pluralidade de possibilidades para a composição de exercícios narrativos.