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3. DAS REDES AO CIRCUITO ARTÍSTICO

3.1. Desdobramentos on-line para off-line

Nos capítulos anteriores, apresentamos e analisamos aspectos constitutivos e subjetivos de trabalhos que se desenvolvem no ambiente on-line e habitam as plataformas das redes sociais, onde as artistas criam perfis com propostas de complexas tessituras entre arte e internet. O princípio da publicação dos posts ao captar a visibilidade do público usuário configuram as imagens fotográficas das personas, avatares e heterônimos no próprio objeto artístico promovido na forma de conteúdo virtual, entendido como linguagem algorítmica e sem existência material propriamente dita.

Como lugar propício ao trânsito de ideias e valores, o território virtual que opera em modos específicos de funcionamento faculta uma diversidade de desdobramentos para o plano físico ou não virtual. Como exemplos, encontramos algumas versões off-line cujos conteúdos extrapolaram a rede conectada. Levando em conta a observação desse movimento em curso é que buscamos reconhecer a emergência do circuito da arte mediada pelas redes da internet.

Neste ponto, interessa promover o processo de deslocamento, literalmente entendido como uma migração dos posts. Certamente, faz-se útil e instigante explorar quais seriam os prováveis atributos e agentes que mobilizam a passagem desses objetos virtuais (on-line) para o contexto físico ou real (off-line). Um dos principais questionamentos refere-se aos aspectos e dinâmicas que assumem os processos interativos decorrentes da mediação em redes sociais ao mudarem de contexto.

É o caso do projeto The Girls on Instagram onde Laís Pontes aproveitou mais uma vez a colaboração do público usuário. Em 2012, criou a proposta de aproximação física entre as personas e seus seguidores, por meio do compartilhamento de retratos impressos enviados pelo correio como cartões-postais. Aos espectadores interessados, mediante chamada na página do projeto no Facebook, a artista solicitava o envio de um email contendo o endereço para recebimento das fotos.

Post do projeto Born Nowhere. Disponível em

https://www.facebook.com/Project.Born.Nowhere/photos/a.373317139352879/442966212387971/?type=3&thea ter

Nas instruções para participação, a artista convidava os usuários a fotografarem os retratos inseridos em sua vivência cotidiana, como ambiente de trabalho, residência ou lazer, com a intenção de mostrar a companhia de suas ‘mais novas amigas’. O texto convidativo do post de 12 de julho de 2015 diz o seguinte: Você quer participar tirando fotos das meninas do @bornnowhere e postando no Instagram? Envie-nos o seu endereço por e-mail e nós lhe enviamos alguns postais #bornnowhere. Você também pode tirar foto em seus smartphones, como este. Envie-nos um e-mail com a foto que você tirou e nós vamos postar no @bornnowhere

Imagem tirada por @camila_tomas lais@laispontes.com. Disponível em

https://www.facebook.com/Project.Born.Nowhere/photos/a.267799843237943/1027568583927728/?type=3&the ater

Na sequência, os usuários encaminharam suas imagens para a artista que fez várias publicações no Instagram.

Imagem publicada em The Girls on Instagram

Disponível em https://www.lensculture.com/lais-pontes?modal=project-109862

Imagem publicada em The Girls on Instagram

Dessa forma, as personagens passaram a compor um mosaico de retratos em outros contextos, fotografadas novamente, como que a atestar sua presença ‘física’ em locais e situações inusitadas. O resultado pode ser visto em https://www.instagram.com/bornnowhere/

Imagem publicada em The Girls on Instagram. Disponível em

https://www.facebook.com/Project.Born.Nowhere/photos/a.580239388660652/580240235327234/?type=3&thea ter

Direcionando as reflexões para um processo de subjetivação é possível conceber as fotos impressas das personas virtuais como sua própria existência, na presença validada pelo artefato retrato. A imagem estaria retomando a concepção original que conferia ao retrato fotográfico a representação de um indivíduo, um atestado do ‘isto foi’, postulado que amparou a fotografia enquanto documento no âmbito da realidade, e não da ficção.

Imagens publicadas no The Girls on Instagram. Disponível em

http://www.laispontes.com/the-girls-on-instagram/the-girls-on-instagram/The-Girls-On-Instagram1/

Além disso, o apelo convidativo da artista para a participação do público recorre à perspectiva dinâmica do processo de fazer arte, visto que seu exercício dispõe de situações inusitadas e inéditas, agregando um arranjo de relações que escapam ao seu domínio para configurar outros formatos de experiências em relações visuais.

Imagem publicada em The Girls on Instagram. Disponível em

Em especial, algumas das imagens com retratos derivados das personas de Laís não mostram a figura (visível) do espectador, embora ele subsista através da imagem produzida. O corpo é colocado, uma e outra vez, em duplicidade reflexiva; o corpo como uma rede de conexão produtora de experiências; o corpo da imagem e o corpo do espectador, sem o qual a arte não cumpre seu papel simbólico por meio do discurso poético.

Nessa dimensão do usuário consideramos que a experimentação reside na interação com as múltiplas identidades paralelas que terão de ser construídas e relacionadas, por meio da aproximação física para proporcionar um sentido de coerência. No caso da proposta, é como se viesse a espelhar, de repente, uma saturação generalizada das tecnologias da comunicação levando artista e usuário a extrapolar o universo da rede conectada, além da contaminação de contatos sociais resultando na diluição de qualquer fronteira, ao se tratar o virtual como fictício e o real como verdadeiro.

Imagem publicada em The Girls on Instagram. Disponível em

https://www.facebook.com/Project.Born.Nowhere/photos/a.580239388660652/580240058660585/?type=3&thea ter

Fonte https://www.lensculture.com/lais-pontes?modal=project-109862

A ideia confere ao trabalho um constante fluxo de ‘vir a ser’ enquanto potência característica da obra artística no contemporâneo. O fato é que as mulheres inventadas de Laís, já tendo conquistado certa autonomia com suas identidades virtuais, caso tivessem existência real, provavelmente, desejariam mais do que desfilar como retratos de perfis nas redes sociais. Entre outros fatores, e em consonância a tópicos citados em capítulo anterior sobre pautas e reivindicações das agendas feministas compreendemos esse trabalho como exercício de representação sobre determinados anseios comuns às mulheres.

A propósito, somando mais de 22.500 seguidores na página do Projeto Born Nowhere no Facebook, criado em maio de 2011, Laís Pontes vem colecionando participações em numerosas exposições e festivais de fotografia internacionais. No Brasil, apresentou seu trabalho em 2016 no FestFotoPoa (Festival Internacional de Fotografia de Porto Alegre), em uma rara aparição na cena artística da cidade. Na ocasião, as fotos das personas integraram o conjunto de projeções multimídia que exibiu trabalhos selecionados para a mostra de Fotografia Brasileira Contemporânea. Além disso, a artista acumula desde 2011 inúmeros projetos artísticos e dezenas de matérias em revistas, além de catálogos e livros, a exemplo desta publicação do Diário do Nordeste (agosto de 2012). Intitulada Elas e Eu, a matéria destaca o trabalho de Laís ao encarnar as vinte e quatro personagens compostas de fotografia e mídias sociais. O projeto que, para a artista, inicialmente, era uma forma de exercitar o autoconhecimento transformou-se, também, numa forma de interagir com as pessoas, pois, segundo ela, cada personagem ganha ‘vida’ a partir dos comentários na rede social Facebook.

Imagem da publicação no Diário do Nordeste. Disponível em

https://www.facebook.com/Project.Born.Nowhere/photos/a.622296851121572.1073741826.267781766573084/6 22297021121555/?type=3&theater

Outra abordagem para as propostas off-line vem do perfil @ex_miss_febem de Aleta Valente no Instagram. A repercussão da censura obtida nas redes sociais com as séries de fotos, principalmente as denunciadas, foi tão intensa que gerou visibilidade de público e crítica, e também rendeu a circulação off-line de algumas imagens. Por conta desse movimento, selfies eróticas foram transformadas em divertidos ímãs de geladeira. O projeto foi comercializado na feira SP-Arte, ocorrida entre 11 e 15 de abril de 2018 e divulgado pela Revista seLecT nas páginas das redes sociais Facebook e Instagram.

Post com imagem do ímã de geladeira

Fonte:https://www.instagram.com/p/BhekGw9ANAt/

O formato quadrado do ímã de geladeira reproduz o mesmo modo de visualização das imagens do Instagram, o que diferencia as fotografias publicadas na plataforma dos tradicionais modos de apresentação de fotografias ou obras artísticas, comumente vistas em retrato (vertical) ou paisagem (horizontal). A conversão dessa imagem virtual para um objeto

material também nos leva a pensar sobre o aspecto do colecionismo de imagens como experiência estética. À semelhança de uma galeria virtual, o Instagram facultaria aos usuários a experiência de colecionismo, ainda que sujeito à efemeridade característica dos movimentos da rede. Neste aspecto, a era digital parece ter elevado e potencializado as possibilidades de transformações do objeto virtual, tanto na produção quanto no aspecto da circulação e do consumo.

Imagens dos ímãs de geladeira. Disponível em http://hotsta.org/media/1742252822633751133_17497973

Ainda sobre a prática de utilização do Instagram, cabe destacar o pensamento de Manovich (2017), uma das referências bastante utilizadas no meio teórico. A ideia do Instagramismo tem sido abordada pelo pesquisador em seus debates sobre a identidade cultural contemporânea. O estudo é conhecido por afirmar que a sociedade vive um processo fundamentado na estética visual que proporciona a cultura da imagem e causa mudanças na relação entre o público e as mídias, principalmente, no caso da plataforma utilizada desde 2010.

Na sequência das artistas, Andressa Ce. também desenvolve um conjunto de trabalhos off-line derivado dos posts. Os livros impressos Intimidade Miojo, do heterônimo Sam Terri e Matrioska, do heterônimo Ella A. reúnem fotografias e contos do blog Histórias Nem Tão Reais, em formato de livros de fotografia.

Livro Intimidade Miojo, de Sam Terri

Fontehttp://estudiomadalena.com.br/livrariamadalena/produto/intimidade-miojo/

Comercializado pela Editora Madalena e também disponível na seção Loja, da página do projeto no Facebook a publicação conta, em três partes, a história da relação de uma noite só entre duas pessoas: a autora, mulher, e um homem. Na primeira parte, são apresentadas fotos do homem em sua casa, onde ele se mostra bastante desconfortável com a situação, posicionando-se apenas parado ao lado dos objetos da casa. A mulher estava tentando se envolver com o rapaz, mas não conseguiu pela falta de disposição dele para tal.

Livro Intimidade Miojo

Disponível em http://estudiomadalena.com.br/livrariamadalena/produto/intimidade-miojo/

A narrativa segue na segunda parte quando o homem vai dormir e a mulher decide, no seu caminho para beber água antes de deitar, fotografar objetos que diziam algo sobre ele,

de alguma forma. A terceira parte retrata a manhã seguinte quando o homem diz que vai sair para trabalhar, mas que ela pode ficar à vontade para ir embora quando quiser. A autora decide, então, posar pelada em todos os lugares que antes fotografou, demonstrando conforto e abertura com uma nova relação, ao contrário do que demonstrara o homem.

O livro Matrioska, de Ella A., traz uma coleção de fotografias e contos bem curtos sobre o cotidiano e pessoas peculiares onde cada conto possui uma foto relacionada. O livro sugere a brincadeira de entender algo a partir do conto e, depois, ao olhar a imagem, reinterpretar e encontrar um resto de história ou até uma história diferente.

Livro Matrioska. Disponível em http://estudiomadalena.com.br/livrariamadalena/produto/matrioska/

Com relação à ideia dos suportes conforme observado nos trabalhos em pauta, seria possível adotarmos a ideia de remediação proposta por Bolter e Grusin (1999). Na perspectiva dos especialistas, consiste no processo através do qual surge a remodelação de ferramentas ou artefatos já existentes, de forma que pareçam novos. No sentido geral, o termo expressa a lógica formal através da qual os novos meios reformulam os meios anteriores. No caso da fotografia podemos aplicar a ideia quando observamos o atual modelo de captação e conceitualização digital que conserva muitos fundamentos postulados anteriormente quando a fotografia praticada operava no modo analógico. As fotografias eram gravadas em película fotossensível e, para serem vistas, passavam pelo processo de revelação em papel, por exemplo. Segundo o princípio da remediação, a fotografia digital atualiza novas formas ao meio quando as imagens passam a ser gravadas num sensor e armazenadas no cartão de memória para visualização no computador, e não mais através do princípio fotoquímico. Neste sentido, elaboram uma crítica às novas tecnologias digitais afirmando que os dispositivos e recursos desta era seriam nada menos do que uma nova roupagem para

equipamentos antigos, uma adaptação a partir dos princípios fundadores de algo, utilizando o suporte anterior para aparecer com funções aptas a operar no universo digital.

Na concepção, os livros fotográficos, cartões-postais e os ímãs de geladeira funcionariam como objetos remediados do ambiente on-line onde existiam como objeto virtual, de acordo com determinados protocolos para sua visualização e consumo. Assim, entendemos que as mídias já existentes antes da tecnologia digital, como a pintura, o cinema, o vídeo que se tornam códigos numéricos no ambiente digital e on-line, passam a adquirir infinitas possibilidades de recriação que podem ser compreendidas pelo princípio da remediação.

A ideia de uma escritura da arte que incorpore movimentos mais recentes e suas projeções e perspectivas diversas envolve o exercício do olhar constantemente reatualizado para novas teorizações sobre os deslocamentos e as configurações instauradas no mundo contemporâneo. “Agindo sobre novos circuitos, a arte se abre para outros formatos expressivos atuando, muitas vezes, na convergência das linguagens”, enfatiza Arantes (2015, p.30-31), pois, “para além de seu caráter objetual, incorpora a transitoriedade, a efemeridade, o tempo, a participação, a impermanência, as práticas colaborativas e relacionais em seu fazer”.

Em paralelo ao processo de remediação podemos destacar o princípio da fusão ou interfaceamento entre linguagens que, de acordo com o pensamento de Arantes (2015, p.44- 45) vem, desde anos 1970 para cá, em função de obras que transbordam para além dessas especificidades, pois, começa a se esboçar outro discurso que aponta para processos de contaminação entre as linguagens.

Assim, tanto na ideia dos retratos como cartões-postais, dos ímãs de geladeira e dos livros de fotografias, à semelhança dos álbuns de retratos, o conjunto de trabalhos sugere, também, indicativos para pensar na questão dos trânsitos e deslocamentos do corpográfico. O conceito ao qual já nos referimos para explicitar as grafias do corpo em imagens expressas na rede torna a enfatizar, do ponto de vista da relação com o espectador, uma instigante imagem íntima que não revela a identidade do usuário ao mesmo tempo em que se funde com ela ao sugerir o pensamento de que as imagens bem poderiam ser um autorretrato. Desse modo, refletem cenas de suas experiências na presença física mediada pelo dispositivo e narradas pela rede social. Dentro da perspectiva do relacionamento artista-obra-público, o indivíduo espectador não fica de fora somente a contemplar o desenvolvimento ou o produto dessas imagens, mas participa ativamente da sua configuração por meio da identificação com aspectos das narrativas íntimas.