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Capítulo 2. Movimentos sociais

2.3. Algumas matrizes discursivas das organizações populares nas décadas de

A ascensão das manifestações da classe operária não se deu de forma homogênea; muito pelo contrário, como afirma Sader (1988), foram várias formas de experiência da condição

proletária que fizeram parte do cotidiano popular, que “em sua heterogeneidade elas podiam pronunciar movimentos, projetos e configurações valorativos bem diversos.” O autor diz,

também, que os motivos das mobilizações eram diversos, mas geralmente ligados ao cotidiano dos participantes, como:

as experiências da voragem do progresso (...); as experiências da aculturação dos migrantes na selva urbana e da mobilização das relações informais para

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enfrentar os desafios; as experiências do desemprego e do despotismo fabril, das diferenças de exploração entre profissionais e peões, jovens e velhos, homens e mulheres, já vividas carregadas dos significados culturais instituídos (SADER, 1988, p.142).

Para dar significado a suas reivindicações, os sujeitos utilizam-se de matrizes discursivas que, na maioria das vezes, não fazem parte de seu cotidiano. Recorrem a agências sociais que dão nome a seus sentimentos, que expressam em palavras, ou em outras formas de comunicação, seu espaço vivido.

Sader (1988) identifica três agências ou centros de elaboração discursiva que se destacam na década de 1970, tendo o cotidiano como ponto de partida: a) a Igreja Católica, por intermédio das Comunidades Eclesiais de Base (CEBs); b) grupos de esquerda desarticulados pela ditadura militar, que buscavam nova integração com os trabalhadores; c) o novo sindicalismo, formado por alguns grupos de oposição sindical, que buscam implementar um sindicalismo autêntico e combativo. O autor destaca, também, que essas agências passaram por crises e buscaram novas vias para reatar suas relações, bem como apresentavam diferenças no que tange à incidência social quanto à consistência discursiva.

A Igreja Católica entrara em crise pela perda de influência sobre as populações mais pobres e pela ascensão crescente de outras religiões. A esquerda marxista havia passado por um período de dispersão, devido à perseguição do regime militar. O sindicato perdeu o poder de articulação dos trabalhadores, influenciado tanto pelo Estado Novo como por ação do regime militar, que acabava cumprindo mais uma função burocrática e assistencialista.

Com o passar dos anos, essas matrizes teóricas, utilizadas pelos movimentos sociais a partir da década de 1970, vão se mesclando, transformando-se com o cotidiano e sendo modificadas. Também servem de referência para os movimentos sociais que se formam no campo e passam a ganhar visibilidade no enfrentamento ao latifúndio, na busca do reconhecimento da importância do pequeno produtor, na luta por indenizações justas pelas famílias atingidas por barragens etc.

A Igreja Católica será uma importante agência discursiva que servirá de base para organização dos trabalhadores e formação de movimentos sociais, a partir da década de 1970, no Brasil, por meio das idéias contidas na Teologia da Libertação e da ação, principalmente, das CEBs,

As referências básicas que deram sustentação às idéias de uma igreja progressista popular na América Latina foram as recomendações apontadas no Concílio Vaticano II (1962/1965) e na II Conferência do Conselho Episcopal da América Latina (CELAM) realizada em Medellin, na Colômbia, no ano de 1968.

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Segundo Mainwarig:

o Concílio Vaticano II enfatiza a missão social da Igreja; declara a importância do laicato; exige maior responsabilidade entre o Papa e os Bispos e entre os Bispos e os leigos; concebe a Igreja como povo de Deus; valoriza o diálogo ecumênico e requer uma leitura mais acessível.(MAINWARIG apud MORAES, 1994, p.135).

Ao se enfatizar a missão social da Igreja, faz-se necessária uma redefinição no papel político da Igreja e, ao se incentivar uma maior participação do laico e, por seguinte, dos leigos, percebe-se a abertura de possibilidades de um maior número de pessoas falarem em nome da Igreja. A Igreja Católica opta por trabalhar com os pobres e explorados e busca combater a pobreza e a exploração. De forma um pouco exagerada, pode-se referenciar a passagem bíblica que faz menção ao legado que coube a Moisés na libertação do povo judeu (povo de Deus), que era escravizado no Egito.

A II Conferência da CELAM visa buscar formas de colocar em prática as diretrizes do

Concílio Vaticano II. Vai destacar a importância “de se conhecer o homem latino-americano” para agir em prol dele; vai entender “o novo povo de Deus como aquele que se reúne em comunidade em torno da palavra de Deus”; vai reconhecer a religiosidade popular que se faz

presente nas diferentes culturas; vai apontar os valores morais “com a superação do egoísmo e as injustiças e o reconhecimento da dignidade, solidariedade, paz.”; e vai dar ênfase à

“denúncia das estruturas sociais que geram profundas desigualdades, exploração e miséria.”

Dessa forma, algumas tendências religiosas assumem uma postura contra o capitalismo (SADER, 1988, p.153-155).

Merece, também, destaque, nas declarações de Medellin, o alerta para o fato que, para se obter a salvação, faz-se necessário agir em comunidade e não isoladamente. Essa é uma importante recomendação, que contribuirá muito para o surgimento e formação das CEBs.

Não existem rituais específicos a serem seguidos para a criação de uma CEB. Basta que se forme um grupo de discussão em torno do Evangelho ampliando, posteriormente, seu debate para temas de seus cotidianos, buscando ter uma atuação de intervenção na comunidade a que se pertence.

As CEBs utilizam o método “ver-julgar-agir” desenvolvido na Teologia da Libertação, onde o “ver” significa a percepção que cada um tem sobre o tema colocado em debate,

tentando buscar suas causas. Partindo-se de impressões superficiais, busca-se chegar a “uma

compreensão mais objetiva e que relacione o fato com suas causas”. O “julgar” significa contrastar “a realidade observada e os valores do cristianismo”, sendo que “a palavra de Deus é trazida para o plano do vivido presente” e serve de referência na tomada de decisão. O

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“agir” significa buscar práticas alternativas que poderiam ser realizadas pelos integrantes da

comunidade, na busca da superação dos problemas debatidos (MORAES, 1994, p.159). Os integrantes das CEBs deveriam perceber que não pediam favores, mas sim, buscavam direitos. Era a passagem da caridade para a libertação. A libertação significaria a superação da opressão. As comunidades, por menores que fossem, desde que organizadas, poderiam ser os sujeitos de sua própria história.

A teoria marxista foi outra importante fonte de referência para organizações populares e movimentos sociais, que passaram a se destacar a partir da década de 1970, no Brasil. Subsidiados pelo conteúdo marxista, as organizações populares faziam análise de seus cotidianos e da conjuntura política que se desenhava, tanto em escala local, como estadual, nacional e mundial.

Os atores envolvidos na disseminação das idéias marxistas apresentavam as mais diversas origens, mas tinham em comum uma forte oposição ao sistema capitalista e buscavam, com a participação da classe operária, implantar o sistema socialista no Brasil.

Sader (1988, p.176) identifica alguns grupos que se engajavam na luta popular, tendo a teoria marxista como referencial. Eram militantes com formação intelectual, que já participavam de organizações políticas que atuavam junto à população, antes do Golpe Militar de 1964. Com a desagregação dessas organizações políticas pela repressão militar, alguns de seus integrantes passaram a agir, de forma individual ou em pequenos grupos, nas áreas

periféricas das cidades, buscando ”vinculações políticas a partir de suas competências

profissionais: advogados, arquitetos, assistentes sociais, professoras”. Havia, também, os profissionais sem uma atuação política anterior, mas que, influenciados pelo marxismo,

participavam de organizações populares “a partir de questões do cotidiano, como a habitação, a saúde, a educação etc.” Um terceiro grupo era formado por células de militantes avulsos de

organizações partidárias que vão para esse trabalho de base e, aí, recriam políticas e reflexões independentes das estratégias que os enquadravam.

Essas pessoas ou grupos aproximavam-se da população utilizando-se muito do método de Paulo Freire, principalmente através de processos educativos, onde poderiam questionar e

elaborar críticas sobre as “experiências da vida individual e social dos educandos.” Dessa

forma, encontravam suporte teórico que se aproximava de outros pensadores, que não eram bem vistos pelo regime militar.

Esses militantes emitiam as falas marxistas nos variados grupos sociais nos quais estavam inseridos e atuavam na oposição sindical, em grupos de alfabetização e educação popular, associações de bairros, grupos de fábricas, movimento estudantil, pastorais religiosas

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etc. Seu referencial teórico era buscado junto a teses formuladas no Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (CEBRAP), no jornal Opinião, em cursos e debates universitários, e em autores como Gramsci (SADER, 1988).

No campo, tornou-se comum a presença de professores universitários e acadêmicos que, por meio de pesquisas ou atividades de extensão, se aproximavam-se dos camponeses e acabavam contribuindo com a organização dos mesmos. Estas ações se farão presentes na organização do próprio Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB), conforme veremos em capítulo posterior.

A emergência do Novo Sindicalismo também terá um papel fundamental na organização dos trabalhadores e na formação de seus discursos. Esse novo sindicalismo, também conhecido como sindicalismo combativo ou autônomo, que vai despontar na década de 1970 “[...] tem como âmbito grandes indústrias modernas, de cujos conflitos de trabalho

nasceram movimentos autônomos pela base” (SADER, 1988, p.182). Os descontentamentos

dos trabalhadores, principalmente, em relação às condições de trabalho e a questões salariais, geravam pressões sobre os dirigentes sindicais para que tivessem uma ação mais contundente, que não aceitassem as proposições dos patrões sem questionamentos e que tivessem propostas mais ousadas nos momentos de negociação.

Essa inquietude da base levou a alterações na organização sindical, fazendo com que surgisse, por um lado, uma forte oposição sindical aos dirigentes de sindicato que não assumiam as inquietações emergentes e, por outro, que levasse a uma transformação interna dos sindicatos, que absorveram as inquietações das bases e passaram a incluí-las em suas pautas de reivindicações.

Essa nova postura sindical exigia uma posição mais enérgica dos dirigentes sindicais frente aos patrões, já que, em plena ditadura militar, “era tão restrita a margem legal para seu trabalho que viviam entre querer evitar a insatisfação das bases e tentar manter o respeito à

legalidade” (SADER, 1988, p.182).

Inicialmente, os discursos eram de conciliação, enaltecendo as ações do Estado modernizante e suas ações em prol do desenvolvimento do país, destacando, entretanto, a importância da participação dos trabalhadores nesse feito. Eles também aproveitavam de brechas legais para cobranças mais contundentes em defesa dos trabalhadores. Os exemplos abaixo, apresentados por Sader (1988, p.182), demonstram essas situações.

No editorial de um jornal dos metalúrgicos de São Bernardo, assinado pelo presidente do sindicato, encontrava-se o seguinte fragmento de texto:

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contínua marginalização no atual processo. Não queremos nos contrapor ao Regime, Sistema Econômico ou às autoridades. O que queremos ver é reconhecido o direito de podermos participar no processo de desenvolvimento que a nação experimenta e na qual somos parte. Não queremos ser meros espectadores ou omissos (SADER, 1988, p.182).

Em outra situação, em julho de 1977, quando os sindicatos estavam em campanha pela reposição salarial, a Folha de São Paulo divulgou um relatório do Banco Mundial sobre a política econômica do governo brasileiro, no qual se questionavam os índices oficias da inflação no ano de 1973. Esse questionamento levou à revisão das contas nacionais e percebeu-se, então, que havia ocorrido manipulação dos dados estatísticos. Cabe destacar que, nessa época, os aumentos salariais estavam vinculados ao salário real médio dos últimos 24 meses e ao aumento da produtividade nacional do ano anterior, cujos dados eram fornecidos pelo Estado.

Um forte movimento de reposição de perdas salariais acaba se formando e, encontrando respaldo na mídia, o que dá visibilidade aos sindicatos e as questões de interesse dos trabalhadores, sendo que os sindicatos se firmaram como importantes locais de organização e mobilização.

Com o passar do tempo ocorreu o fortalecimento dos sindicatos e o tom do discurso de

seus dirigentes passa por mudanças, “aos poucos o discurso de conciliação vira discurso de contestação.” (SADER, 1988, p.185). As discussões sobre condições de trabalho,

indenizações, férias, política salarial se intensificaram e ampliaram-se as ações de protesto dos trabalhadores, dentro e fora das fábricas, com greves, passeatas, “operações tartaruga” que reduzem a velocidade de produção, pequenos boicotes por melhoras das refeições etc. Tem-se a polemização de igual para igual - dos sindicatos com os patrões e o Estado - a partir de discursos que surgiam das experiências dos trabalhadores, que iam se transformando com as novas experiências vivenciadas.

Essa alteração no discurso no novo sindicalismo pode ser percebida em fragmentos de um discurso de Lula, durante uma greve considerada ilegal, em 1979: “pessoalmente eu acho que é muita sacanagem com os trabalhadores – feita principalmente pelos empreendedores,

por aqueles que ganham dinheiro como ninguém nessa terra” (OSAKABE, apud SADER 1988, p.190). Também em Silva (apud SADER 1988, p.192) “(...) e agora paira sobre a

cabeça do sindicato uma intervenção. [...] porque algumas pessoas de má fé entenderam ou

querem entender que a nossa greve é uma greve política.”

O Novo Sindicalismo se estenderá ao meio rural, tendo também a igreja como principal

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trabalho da CPT, como aponta Novaes (1991).

A necessidade de se construir um movimento sindical livre e autônomo, capaz de potencializar as formas organizativas gestada pelos trabalhadores em sua experiência concreta de enfrentamento com o capital, somada à expansão do sindicalismo combativo pelo país, levou à necessidade de se criar uma entidade maior, que congregasse esses anseios e servisse como centro de referência para a discussão, no âmbito nacional, das questões mais gerais do sindicalismo. Neste sentido, é formada a Central Única dos Trabalhadores – CUT, que agregará tanto trabalhadores urbanos como rurais.