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Capítulo 3. A energia elétrica no Brasil

3.4. O modelo estatal (1962 aos anos 1990)

A formação da Eletrobrás (1962) vai significar uma mudança na estrutura de organização e produção de energia elétrica no Brasil, redefinindo a política existente, que era sustentada por uma produção de energia de forma regionalizada e assistemática, e passando para um modelo com características nacionais e sistematizadas.

A Eletrobrás fez parte da Comissão de Nacionalização de Empresas Concessionárias de Serviços Públicos (CONESP), que

[...] tinha por objetivo indicar ao Poder Executivo os serviços que deveriam passar ao regime de exploração direta, negociar as condições e a forma de reembolso ou indenização aos acionistas e fixar as normas a serem seguidas no tratamento do patrimônio e dos ativos das empresas a serem nacionalizadas (PINHEIRO, 2006, p 31-32).

Cabe destacar que já havia ocorrido no Brasil um caso de encampação de empresa privada de energia elétrica, quando, em 1959, o governador do Rio Grande do Sul tornou pública a Companhia de Energia Elétrica Riograndense, subsidiária da AMFORP, pelo valor simbólico de um cruzeiro. Até o golpe militar de 1964, outros estados brasileiros encamparam empresas particulares, e as negociações entre governo federal (João Goulart) e as empresas estrangeiras eram acirradas. No governo militar (1964-1985), criou-se uma comissão envolvendo vários ministérios para negociar a aquisição das concessionárias estrangeiras controladas pela AMFORP, o que se concretizou ainda em novembro de 1964, mediante o

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pagamento de 135 milhões de dólares, pago pelo ativo não depreciado. Já em 1978, o governo federal comprou a Light por 350 milhões de dólares, e assumiu uma dívida externa de 1,2 bilhões de dólares, passando praticamente todo o setor de energia ser de responsabilidade do Estado (GONÇALVES JUNIOR, 2007).

É importante relembrar que, em 1964, ocorreu o golpe militar no Brasil, e o novo governo que se instalou também assumiu a doutrina da intervenção estatal na economia, entendendo que o setor energético, controlado pela iniciativa privada, não estava, naquele momento, conseguindo prestar serviços adequados aos consumidores de energia. Ao final dos anos 1960, a política de energia elétrica era traçada pelo Ministério de Minas e Energia (MME), executada pela Eletrobrás e normatizada e fiscalizada pelo Departamento Nacional de Águas e Energia Elétrica (DNAEE), existindo 60 empresas concessionárias de energia elétrica, sendo 6 federais, 27 estaduais e, as demais, privadas (PINHEIRO, 2006; SILVA, 2001).

As empresas federais estavam subordinadas à Eletrobrás, que era uma holding, e que agrupava empresas de geração, transmissão e distribuição de energia elétrica. A organização das empresas federais geradoras e transmissoras de energia elétrica buscava cobrir todas as diferentes regiões do país, ficando assim localizadas: Furnas Centrais Elétricas (Furnas), que abrangia as regiões Sudeste, o estado de Goiás e o Distrito Federal; Centrais Elétricas do Sul do Brasil (Eletrosul), abrangendo a região Sul e Mato Grosso do Sul; Companhia Hidro- Elétrica do São Francisco (Chesf), com atuação na região Nordeste; Centrais Elétricas do Norte do Brasil (Eletronorte), atuando na região Norte e nos estados do Maranhão e Mato Grosso. Também faziam parte da Eletrobrás as distribuidoras de energia elétrica Light Serviços de Eletricidade, com atuação na região metropolitana do Rio de Janeiro e cidades vizinhas, e a Espírito Santo Centrais Elétricas (ESCELSA) que atuava no estado de Espírito Santo. A Eletrobrás era, além disso, acionária das concessionárias estaduais de energia. Era um sistema elétrico monopolista, também chamado de vertical, estando sob controle do setor público (nacional, estadual, municipal) tanto a geração, como a transmissão e a distribuição de energia (Figura 2).

Ao longo de sua história, a Eletrobrás contou com o apoio de uma estrutura colegiada, com a criação de grupos e comitês que discutiam diretrizes gerais que deveriam nortear as políticas a serem seguidas pela empresa. Dentre esses colegiados podemos citar, como exemplo, o Comitê Coordenador de Operações Norte-Nordeste (CCON), o Sistema Nacional de Supervisão e Coordenação de Operações Interligadas (SINSC) e o Grupo Coordenador para Operação Interligada (GCOI). Essa estrutura colegiada era composta pelas

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concessionárias e com a inserção de universidades e centros de pesquisa. Gonçalves Junior (2006) destaca que os trabalhadores geralmente não eram convidados para participar desses espaços de discussões, nos quais, se delimitavam as políticas energéticas.

Figura 3 - Modelo de organização “vertical” – cadeia de produção da indústria da eletricidade

Fonte: Gonçalves Junior, 2007.

Até a década de 1950, o planejamento do setor elétrico estava voltado, principalmente, para o atendimento das demandas estaduais, ligando as fontes geradoras diretamente aos centros de consumo. Porém, com o avanço da industrialização brasileira favoreceu a formação de políticas de integração territorial e a construção de redes técnicas de infraestrutura, comandadas pelo governo federal. Dentro dessa perspectiva, a partir das décadas de 1960 e 1970, foi sendo superado o caráter regional do planejamento no setor elétrico brasileiro em prol de um modelo centralizado e de abrangência nacional. Isso se deu interligando as usinas existentes e as em construção, formando um mercado nacional interligado, onde os colegiados acima descritos tiveram papel importante (PEITER, 1994).

A primeira grande interconexão do sistema integrado se deu com a inauguração da hidrelétrica de Furnas (1963), no Rio Grande, na divisa de São Paulo e Minas Gerais, que integrou os sistemas desses dois estados e o do Rio de Janeiro. No final da década de 1960, fez-se a interconexão dos sistemas elétricos do Sudeste/Sul, que foi ampliada com a entrada em operação da usina de Itaipu, em 1983, agora já como integração Sul/Sudeste/Centro- Oeste61. Já a interligação Norte/Nordeste foi estabelecida, em 1981, com a energização da linha de transmissão entre Sobradinho (BA)-Imperatriz (MA)-Tucuruí (PA)-Vila do Conde

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Destacamos que Furnas abrange também o Estado de Goiás e o Distrito Federal; por isso, tem-se a interconexão S/SE/CO.

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(PA)-Belém (PA)62 (PEITER, 1994). A interligação entre os sistemas elétricos Sul/Sudeste/Centro-Oeste com o Norte/Nordeste ocorreu em 1999, com a energização chamada Norte-Sul I63, que ligava as subestações de Imperatriz (MA) e Samambaia II (DF) (ARAUJO, 2003). Com a integração de energia Norte-Sul formou-se o Sistema Interligado Nacional (SIN), que levou a ganhos energéticos expressivos por meio da circulação de fluxos de energia entre regiões que apresentam características sazonais diferenciadas, possibilitando o complemento hidrológico entre as bacias do São Francisco/Tocantins e Iguaçu/Uruguai64 (PAULA, 2005).

A Eletrobrás promovia o desenvolvimento nacional do setor, em atendimento às necessidades próprias de cada região, fazendo a gestão dos recursos federais, e às vezes, de captadora de recursos junto a agências financiadoras, tomando as decisões e coordenando as ações que eram executadas pelas empresas por ela controlada. Os recursos financeiros para o setor elétrico, que até então eram administrados pelo BNDE, passaram ao controle da Eletrobrás, que também ficou encarregada de controlar os recursos oriundos do imposto sobre o consumo de energia elétrica, que havia sido instituído ainda em 1962.

Dentre as principais obras hidrelétricas construídas nesse período podemos destacar as usinas de Tucuruí e de Itaipu, que deram uma contribuição importante para a ampliação de potencial energético nas áreas que abasteciam de energia.

No início do período em análise, a energia elétrica oriunda de hidrelétricas (72,01%), já era bem superior ao que era gerada por termoelétricas (27,99%). Essa diferença foi sendo ampliada ao longo do período, tornando cada vez menos relevante o papel das termelétricas. O setor elétrico sob o domínio do Estado tem uma significativa ampliação da geração de energia nos anos 60 até meados dos de 80, do século XX, ocorrendo uma redução posteriormente (Tabela 1).

Tabela 1 - Evolução da capacidade instalada do setor elétrico (período Estatal)

Ano Hidrelétrica Termelétrica Total Aumento %

Potência Instalada MW % MW % MW 1961 4.126 72,01 1.603 27,99 5.729 - 1966 5.524 73,01 2.042 26,99 7.566 32,06 1971 10.244 80,85 2.426 19,15 12.670 67,45

62 Cabe ressaltar que essa interligação ocorreu antes da hidrelétrica de Tucuruí entrar em operação, e que a

região Nordeste cedia energia para a Norte. Quando Tucuruí entrou em funcionamento, em 1984, a situação se inverteu, passando a região Norte a ceder energia para o Nordeste.

63 Em 2004, entrou em operação a Norte-Sul II, como o circuito Imperatriz (MA)-Serra da Mesa (GO)-Brasília

(DF).

64 Chamamos a atenção para o fato de que em parte da região Norte do país ainda se encontra o Sistema

Isolado Nacional, onde predomina a energia elétrica produzida pelas usinas termoelétricas, com capacidade de importar até 200 MW da Venezuela.

106 1976 17.675 83,92 3.385 16,08 21.060 66,22 1981 30.600 89,32 3.656 10,68 34.256 62,66 1986 38.682 89,61 4.483 10,39 43.165 26,01 1991 52.376 91,65 4.770 8,35 57.146 32,28 1996 59.728 92,96 4.522 7,04 64.240 12,41

Fonte: Gonçalves Junior 2007

A crise mundial do petróleo, que vai atingir o Brasil em 1974, alterou o nível de autonomia das empresas energéticas estatais, no caso a Petrobrás e a Eletrobrás. A questão da energia passa a ser incluída na lógica de segurança nacional e a ser conduzida pelo gabinete da Presidência e pelo Conselho de Segurança Nacional até 1979, quando é criada a Comissão Nacional de Energia, que vai elaborar o primeiro plano integrado de energia, definindo, assim, o Modelo Energético Brasileiro (LIMA, 2004).

Das várias readequações administrativas e organizativas por que a Eletrobrás passou ao longo do tempo parece-nos importante citar a criação da Divisão de Meio Ambiente, que ocorreu em 1987 e que, logo em seguida, foi transformada em Departamento de Meio Ambiente (DEMA), fato que significava um ganho de importância para a questão ambiental no setor elétrico, que, cada vez mais, tinha que ser levada em conta nos projetos energéticos.

Segundo Lemos (1999), até a década de 1980, o planejamento no setor elétrico pouco levava em conta os grupos sociais atingidos e os impactos ambientais causados, o que reduzia os custos dos empreendimentos, pois os mesmos recaíam sobre uma parcela da sociedade, mais especificamente sobre os moradores das áreas atingidas diretamente pelos projetos. A discussão ocorria sobre a produção e a transmissão de energia pelos custos mínimos e buscava minimizar os efeitos das crises do petróleo, no intuito de substituir essa fonte de energia pela hidreletricidade. A maior importância atribuída à questão social e ambiental surge a partir de pressão externa, exercida pelas agências multilaterais de financiamento e por grupos ambientalistas, e das pressões internas promovidas por movimentos sociais, universidades, centros de pesquisas, organizações ambientalistas, pela legislação ambiental que vai se criando e, de forma mais difusa, pela pressão da sociedade, que se sensibiliza pela questão ecológica.

Analisando a ação do governo ditatorial no Brasil, Gonçalves Junior (2007) diz que entre as maiores contribuições que o mesmo deu ao capital nacional e internacional, está o rígido controle exercido sobre a classe trabalhadora pelo arrocho salarial e pela violência ao reprimir as manifestações reivindicatórias dos mesmos. Ele também ofereceu insumos a baixo custo, por exemplo, repartindo a conta de energia com a sociedade para garantir maiores taxas de lucro aos empreendimentos privados, bem como unificou os interesses das classes

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dominantes, dividindo a indústria elétrica em segmentos de atuação para acumulação de capitais nacionais e internacionais. O autor se utiliza das palavras de Velloso65 para ajudar a elucidar uma dessas características:

[...] o setor público assume o ônus maior dos setores que demandam investimentos gigantescos, com longos prazos de maturação e, em geral, mais baixa rentabilidade direta. É fora de qualquer dúvida que o Brasil não tinha mantido taxas de crescimento da ordem de 10% no período até 1974, sem os maciços investimentos realizados pela ELETROBRAS, PETROBRAS, TELEBRAS, CVRD, DNER, etc. (GONÇALVES JUNIOR, 2007, p. 241).

No que tange à unificação dos interesses dos capitais nacionais e internacionais no setor elétrico, o autor coloca que, para os primeiros, o Estado organizou sua inserção na construção e manutenção do setor elétrico e, para os segundos, incentivou sua ação em empresas de consultoria e indústrias fornecedoras de tecnologias para a expansão dos sistemas elétricos. O Estado, além de possibilitar ao setor privado atuar nos setores com maior lucratividade, sem competir com o mesmo, ao assumir a responsabilidade pela expansão da eletricidade transformou-se num grande comprador de bens e serviços, pois requereria:

empresas de estudos e consultorias de projetos (áreas de negócios das empresas privadas que definiam os empreendimentos e suas respectivas escalas, os critérios e mecanismos de financiamento, o arranjo das construções, as tecnologias de construção, as máquinas e equipamentos empregados, etc.); empresas de construção; as empresas fornecedoras de materiais e as indústrias de máquinas e equipamentos para as construções e para as instalações de geração, transmissão e distribuição de eletricidade (GONÇALVES JUNIOR, 2007 p. 247).

Essa forma de usurpação do dinheiro público fica evidente em obras como a hidrelétrica de Balbina66, localizada ao norte de Manaus, com capacidade de gerar 250 MW, porém com potência firme de 50 MW, que inundou 236.000 ha e custou aproximadamente US$ 750 milhões. É uma obra de extremo impacto social e ambiental, alto custo e com uma produção ínfima de energia. Assim, construíram-se grandes obras, independentemente do rendimento econômico de quem as financiava, drenando recursos públicos para empresas de consultoria, construtoras, produtoras e vendedoras de máquinas e equipamentos elétricos e para o sistema financeiro etc. Ao mesmo tempo, vendia-se a energia por tarifas que não cobriam o preço de custo da produção, forçando a busca de novos financiamentos. Para Gonçalves Junior (2007),

“as estatais ficavam submetidas a um ciclo vicioso”, pois se viam obrigadas a aumentarem

suas dívidas e passavam a perder eficiência. A situação do setor elétrico brasileiro foi

65 Ministro de Planejamento de outubro de 1969 a março de 1979, durante dois governos militares. 66

A construção da UHE de Balbina ocorreu no período que vai de 1985 a 1989, e o empreendimento é composto por 5 turbinas com capacidade de geração de 50 MW cada.

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agravada ainda mais com o fim do Imposto Único sobre Energia Elétrica (IUEE) e com a proibição imposta pelo Conselho Monetário Nacional, de que empresas estatais obtivessem empréstimos junto ao BNDES, ambos no ano de 1988.

Os investimentos feitos em geração de energia levaram à ociosidade parte do sistema de produção elétrica, pois este não tinham demandatários para toda a energia que poderia ser produzida; por isso, Itaipu inaugurou suas últimas turbinas apenas em 2006. Nessa perspectiva, Gonçalves Junior (2007) destaca que a crise que se dará no setor elétrico representava a crise do segmento de investidores no setor elétrico, que se utilizará do Estado para obter seus lucros, contribuindo para a ocorrência de déficit na balança de pagamento.

Até a década de 1980 o sistema elétrico brasileiro organizado pelo Estado era reconhecido internacionalmente pela sua eficiência na construção das grandes obras nas usinas hidrelétricas, por meio da interconexão dos sistemas, pela sua autonomia e pela sua capacidade de intervir no território.