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Capítulo 3. A energia elétrica no Brasil

3.5. A crise do modelo estatal e a idéia de reestruturação do setor elétrico brasileiro

Nos anos de 1980, o setor elétrico será afetado pela crise financeira que se instaura em

escala mundial e sofrerá as consequências econômicas gerais da denominada “década perdida”. A política energética brasileira tinha nos financiamentos externos um importante

pilar de sustentação. As crises do petróleo (1973 e 1979) levaram o governo a investir mais em hidrelétricas e termoelétricas, num momento em que os juros internacionais se ampliavam. As tarifas foram utilizadas como arma inflacionária, mantendo os reajustes dos preços abaixo da inflação, fazendo com que as receitas de algumas empresas estatais não cobrissem seus investimentos, necessitando recorrer a novos empréstimos, que com a Moratória do México, em 1982, tornou-se mais difícil sua obtenção e com juros maiores.

O setor financeiro internacional, buscando beneficiar seus aliados econômicos no setor

elétrico, passou a fazer “empréstimos casados”, vinculando os financiamentos a um

porcentual de gastos na compra de equipamentos importados, e chegando muitas vezes a definir os empreendimentos a serem instalados. Segundo Gonçalves Junior (2007), mesmo durante a crise, o setor financeiro se beneficiava com os altos juros cobrados, ao passo que as empresas de consultoria e engenharia e a grande indústria de máquinas e equipamentos mantinham suas atividades e a indústria em geral se beneficiava pelo baixo preço cobrado pela energia consumida, principalmente o do setor industrial eletrointensivo.

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recursos se destinavam a investimentos, ficando os demais para o serviço da dívida, enquanto que, em 1989, tem-se uma completa inversão do quadro, sendo que 74% eram utilizados para pagamentos de dívidas e somente 26% eram direcionados para investimentos. Também a partir de meados de 1980, devido às pressões sociais, tornam-se necessários maiores investimentos relativos às questões sociais e ambientais, ao se construírem empreendimentos energéticos, o que aumentou seu preço de custo e obrigou até a redefinição de alguns projetos já previstos. Continuou-se investindo em infraestrutura e modernização tecnológica, embora o Estado apresentasse sua capacidade financeira praticamente esgotada, além de investimentos feitos de forma inadequada, devido a disputas por concessões de hidrelétricas e linhas de transmissão entre as concessionárias públicas e/ou interesses políticos locais, e pressões de grupos vinculados às empresas construtoras. A política de equalização tarifária67 a ser seguida por todas as empresas públicas de energia elétrica como forma de incentivar a industrialização fora do Sudeste68 (predomínio de eletrointensivas) propiciava o deslocamento de capitais de algumas empresas estatais mais rentáveis para outras menos rentáveis, o que ajudava a ampliar a crise do setor (PEITER, 1994; SILVA, 2001; PINHEIRO, 2006). Em 1985, a Eletrobrás elaborou um Plano de Recuperação de Energia Elétrica para o período de 1985 a 1989, porém não o manteve ativo, pois, a partir de 1990, as tarifas de energia passaram a ser utilizadas, novamente, como instrumento de controle da inflação.

Diante do desequilíbrio financeiro do setor elétrico estatal, a passagem do modelo energético existente para um modelo privado69 passa a ser justificado como uma ação natural, já que o primeiro havia se configurado em um momento histórico já esgotado70 e, na atualidade, novas realidades71 estavam postas, exigindo, portanto, novas formas de gerenciamento72.

No início dos anos de 1990, segundo Peiter (1994), existia uma variedade de propostas para o setor elétrico, sendo que, num extremo, encontravam-se grupos que defendiam a

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As tarifas equalizadas, implantadas em 1974, pelo II Plano Nacional de Desenvolvimento - PND, mantiveram-se até março de 1993 quando, com a Lei 8.631, passaram a prevalecer as tarifas diferenciadas regionalmente..

68 O II Plano Nacional de Desenvolvimento visava incentivar a industrialização para outras regiões do Brasil,

com o objetivo de diminuir as diferenças regionais. Também fazia parte do Plano uma ampliação da produção agrícola moderna, principalmente em áreas do Cerrado, com a instalação de infra-estrutura (transporte, comunicação, energia etc.) e com incentivos financeiros para produção.

69 Nesse período, o modelo privado já tinha sido implantado no Chile e avançava sobre países da Europa

Ocidental.

70 Marcado pelo modelo econômico de Keynes, destacando-se o Estado de Bem-Estar Social, a intervenção do

Estado de forma direta na economia, com predomínio do mercado nacional etc.

71 Marcado pela globalização, neoliberalismo, abertura de fronteiras, desestatização, economia de mercado etc. 72

A reestruturação no setor elétrico vinha ocorrendo em outros países, sendo o Chile o primeiro a implementá- lo.

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privatização total no setor, vendendo as usinas que estivessem em operação e em construção e, no outro extremo, os grupos que defendiam manter intacto o sistema energético existente. Entre esses extremos existia uma gama de outras propostas, como as feitas pela Secretaria de Energia do Ministério de Infraestrutura, durante o governo Collor, a do Banco Mundial e a da Associação dos Empregados da Eletrobrás. A maioria delas partia de quadros objetivos não excludentes entre si e propunham:

1) o fim da centralização da Eletrobrás; 2) a participação de capitais privados na geração, transmissão e distribuição de energia; 3) a privatização das empresas elétricas estatais ou da parte dela que for de interesse para a iniciativa privada, sob o ponto de vista da lucratividade; 4) o aumento da participação dos atores sociais envolvidos no processo de produção e consumo de energia elétrica (PEITER, 1994, p.176).

Analisando as Diretrizes e Ações do Ministério de Minas e Energias para o Setor Elétrico elaborado em 1996, Silva (2001) identifica o discurso de que as mudanças não tinham um fundo ideológico, mas, sim, estavam centradas em fatores objetivos ligados a questões econômicas e técnicas para garantir o desenvolvimento econômico e social do país. O mesmo documento destaca, ainda, que a reestruturação não deveria ser interpretada pelo simples ato de privatização do setor, mas, sim, como uma forma de desonerar o Estado e ampliar a eficiência do setor por meio da competição. Deixa claro, também, que a crise que se instaura no setor elétrico não ocorre em função da escassez ou deterioração dos serviços prestados, mas sim por questões econômicas e técnicas.

Orientado pelas diretrizes supracitadas, o MME organiza, em 1994, um Projeto de Reestruturação do Setor Energético Brasileiro (RE-SEB), contratando consultores73 ingleses74 (Coopers & Lybrand), consorciados com empresas brasileiras (Ulhoa Canto, Engevix e Main Engenharia) para proporem um novo modelo energético. A análise das recomendações apresentadas pela consultoria Rosa (apud PINHEIRO, 2006) destaca as seguintes ações:

- desverticalização das empresas elétricas, separando geração, transmissão, distribuição e comercialização;

- introdução de competição na geração e comercialização; - criação do produtor independente de energia;

- livre acesso à rede, permitindo que grandes consumidores comprassem energia fora de sua área de concessão;

73 Destacamos que em outros momentos também ocorreram contratações de consultores internacionais para

fazerem diagnósticos e prognósticos sobre rumos a serem seguidos por diferentes setores econômicos ligados ao Estado.

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Nesse momento a Inglaterra já havia realizada sua reestruturação no setor elétrico optando por uma política neoliberal.

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- fim do planejamento normativo, substituído pelo indicativo; - previa a criação de um órgão regulador, no caso a ANEEL;

- criação do Agente responsável pela operação do sistema de transmissão, no caso o Operador Nacional do Sistema (ONS), em substituição ao GCOI;

- Mercado Atacadista de Eletricidade, para negociar como uma bolsa de energia não contratada pelas distribuidoras, tornando o mercado progressivamente livre.

Silva (2001) dá ênfase a quatro aspectos propostos pela consultoria: a criação do Mercado Atacadista de Energia (MAE), o planejamento indicativo do sistema, as recomendações específicas para a Eletrobrás e as recomendações específicas para a Agência Nacional de Energia Elétrica (ANEEL).

Os consultores indicavam uma mudança do sistema elétrico, propondo a substituição da regulamentação dos preços por um modelo mercantil. Previam a criação de um Mercado Atacadista de Energia (MAE), onde empresas e consumidores de grande porte poderiam negociar os preços para pagarem o menor custo possível. Incentivavam, ainda, a participação de capital privado na geração de energia, seguindo as normas de licitação exigidas.

Eles apontavam, também, a necessidade de manutenção do planejamento a médio e longo prazos com a elaboração de estudos sobre necessidades futuras de energia e inventários de bacias hidrográficas que auxiliariam na definição de novos locais para construção de hidrelétricas. Esse planejamento, porém, é entendido apenas como orientador para os grupos econômicos que se mostrarem interessados em investir no setor, fomentando, assim, a concorrência. No que se refere à outorga das concessões e autorizações, os consultores propuseram que empreendimentos que gerassem menos de 30 MW não necessitariam passar por licitação de concessão75. Foi recomendado pelos consultores que também fossem adotadas medidas para mitigar os riscos de recolocações de populações e riscos ambientais na documentação de licitação (SILVA 2001).

Quanto à Eletrobrás, os consultores recomendavam, entre outras coisas, que a mesma continuasse sendo, em curto prazo, um Agente Financeiro Setorial (AFS) ligado a linhas de créditos comerciais, mas que, em longo prazo, fosse revista a função das AFS. Ela também continuaria com suas funções junto à Itaipu e às Usinas Nucleares.

À Agencia Nacional de Energia Elétrica (ANEEL) caberia a função de agência independente de regulação e fiscalização do setor elétrico, lidando, de forma imparcial e transparente, com a nova dinâmica que se colocaria, envolvendo a participação privada e a

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Assumida essa proposta, definiu-se na prática o conceito de Pequena Central Hidrelétrica (PCH), que não precisa passar por licitação e nem estudos de viabilidade.

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concorrência no setor. Caberia à ANEEL as ações voltadas para a regulamentação econômica, regulamentação técnica, concessões, questões ligadas ao consumidor etc.

No que tange às concessões, os consultores destacavam a necessidade de uma aproximação e cooperação maior entre o Ministério de Minas e Energia (MME) e o Ministério de Meio Ambiente (MMA), para eliminar ou minimizar os conflitos de interesse entre os ministérios, garantindo, assim, tranquilidade aos futuros investidores do setor. Salientaram, ainda, a necessidade de se definirem, claramente, as responsabilidades e riscos dos investimentos ao se criarem parcerias entre a iniciativa privada e o setor público, sugerindo que os riscos envolvendo questões sociais, como irrigação e reassentamento da população afetada fossem arcados pelo orçamento federal (SILVA 2001).

Gonçalves Junior (2007) desconstrói a idéia de que a passagem de um modelo energético estatal para um privado seria concebida como algo “natural”. Esse autor destaca que a Constituição de 1988 barrava a entrada de capital internacional em algumas atividades econômicas como mineração, energia elétrica, e petróleo, entre outras. Diante disso, várias empresas estrangeiras se uniram em torno das Empresas Brasileiras de Capital Estrangeiro (EBCE) para que, ao longo do tempo, pudessem alterar pontos envolvendo essa questão na Constituição. Para tanto, seriam necessários uma união com a burguesia nacional e também uma ampla campanha ideológica, que cooptasse formadores de opinião, como parlamentares, jornalistas, militares e elementos do meio acadêmico para que apoiassem suas idéias. A ação visava mostrar que a iniciativa privada seria mais eficiente na prestação de serviços que o Estado, devendo esse último se retirar do cenário de produção e gestão dos serviços de infraestrutura em geral.

No setor elétrico, essa frente ideológica liberal se utilizou, além disso, do próprio discurso de movimentos sociais, ONGs e outros grupos sociais que faziam críticas referentes à condução da política de geração de energia elétrica pelo Estado, que dava pouca atenção a determinados problemas econômicos, sociais e ambientais em seus empreendimentos hidrelétricos. Questões como superfaturamento das obras, indenizações baixas e impactos ambientais negativos foram utilizadas pela frente ideológica liberal de forma acrítica, como se as empresas privadas que representavam não tivessem relação nenhuma com esses pontos e o Estado fosse um ente neutro. Mais uma vez reforçavam a idéia de uma crise do Estado, encobrindo o fato de que a crise se dava na reprodução do capital, e apontando como solução a reforma do Estado.

Como ação prática do avanço neoliberal no Brasil, fruto, também, da ação do grupo acima citado, tem-se a institucionalização do Programa Nacional de Desestatização (PND)

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criado pela Lei 8.031/93, promulgado no governo de Fernando Collor de Mello, em 12 de abril de 1990, que estabeleceu os novos princípios e diretrizes políticas a serem desempenhadas pelo Estado, e, consequentemente, pelo setor energético.