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Capítulo 2. Movimentos sociais

2.4. Anos 1990: fim e recomeço de movimentos sociais

Se nos anos 1980 se deu a expansão da atuação da sociedade civil, vivenciando-se a Era da Participação, como destaca Gohn (2000), na qual os movimentos sociais se apresentaram como uma forte expressão desta atuação, nos anos 1990 teremos a retração da atuação da sociedade civil, quando os movimentos sociais entraram em um período de descenso. Percebeu-se, então, que os movimentos sociais não eram tão fortes e a sociedade civil não era tão organizada como se supunha.

Na segunda metade da década de 1980, com o início da redemocratização, algumas demandas dos movimentos sociais começaram a ser supridas39, ou, pelo menos, entraram na pauta de discussões de governantes (municipais, estaduais e federal). Os movimentos garantiram sua participação nas mesas, câmaras e conselhos de negociações, com a ascensão de líderes de oposição ligados aos movimentos a cargos no parlamento e na administração de postos governamentais; tal fato levou à ocorrência da inversão de prioridades orçamentárias, aumentando-se os investimentos em áreas carentes, e se difundiu, em grande escala, mecanismos participativos de gestão que envolviam a sociedade organizada no processo de decisão. Para Ricci (2005), muitas das experiências inovadoras surgidas no interior dos movimentos sociais foram catapultadas à esfera das ações governamentais (não necessariamente de Estado), levando a uma estatalização de vários movimentos; isso representou o aparecimento de um tipo de parceria que tendia a provocar uma institucionalização dos movimentos sociais, sem que se desse uma nova institucionalidade pública, o que poderia levar a um distanciamento do caráter emancipatório destas políticas e ações governamentais.

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As principais reivindicações populares estavam centradas em questões de infra-estrutura básica, ligadas ao consume coletivo (transporte, saúde, educação, moradia etc).

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Muitos dos movimentos com atuação em áreas geográficas específicas não conseguiram se inserir em lutas mais amplas e/ou suas lutas cotidianas estavam limitadas a reivindicações setoriais; portanto, ao perceberem suas demandas atendidas em parte, ou na totalidade, não mais viam a necessidade de se manterem organizados, cabendo aos novos governantes, por meio da gestão pública, democrática e participativa, encarregar-se de resolver os problemas sociais. Por outro lado, governantes de esquerda não conseguiram elaborar um projeto que servisse a toda a população, o que levou alguns deles a assumiram várias propostas neoliberais (GOHN 2000). Barros (2004) destaca que não foi apenas no Brasil que ocorreu a adaptação de governos populares à democracia burguesa, contribuindo para o afastamento das lutas sociais diretas, sindicais e políticas, protagonizadas quotidianamente pelos trabalhadores.

Para Ricci (s/d) isso evidenciou a fragilidade das propostas de vários movimentos, o que levou a uma fragmentação ainda maior dos mesmos, fazendo com que muitos se perdessem na burocracia estatal40. Para Goss e Prudencio (2004), nos anos de 1990 vários movimentos sociais deixaram de ter uma orientação na perspectiva de ação coletiva e passaram a tê-la para a ação individual. Muitas das lutas que ocorreram eram coletivas, porém os interesses eram individuais, e, ao serem supridos, perdia-se a necessidade do coletivo (moradia, financiamento agrícola etc.). Somam-se a isso as mudanças que ocorreram com a implantação do neoliberalismo e a mudança de orientação do Vaticano, que levou a um relativo afastamento da Igreja Católica dos movimentos sociais41.

Tratando especificamente do Brasil, Gebrim (2005a) vai ligar a crise dos movimentos sociais à crise do Ciclo do PT, pois que o grupo hegemônico do PT levou à criação de uma imagem do Estado como uma entidade neutra que, por sua vez, propiciou a formação de uma geração desarmada ideologicamente frente à democracia burguesa, dando o entender que bastaria uma vitória eleitoral e o Estado passaria a estar a serviço dos trabalhadores. A despolitização que veio ocorrendo levou a uma desmobilização de militantes-cidadãos, o que transformou problemas estruturais da sociedade em problemas administrativos a serem

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A autora destaca que o MST conseguiu, em parte, fugir desta institucionalização por seu caráter nacional, por sua capacidade de mobilização social, pela facilidade com que gera fatos políticos e altera a agenda dos governos brasileiros. Também Siqueira (2007) vai destacar o não alinhamento do MST às políticas públicas, apesar de utilizar-se delas.

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O Vaticano, por meio da Congregação da Doutrina da Fé (ex-Santo Ofício), que de 1981 até 2005 foi liderada pelo Cardeal Joseph Ratzinger (atual Papa Bento XVI), condenou a Teologia da Libertação, que foi importante na gênese de muitos movimentos sociais na América Latina, impondo a religiosos o Silêncio Obsequioso, ou seja, os mesmos não poderiam mais falar em nome da igreja, nem dar aulas, conceder entrevistas e acompanhar qualquer trabalho pastoral. Cabe destacar que setores da Igreja Católica continuam com atividades junto aos movimentos sociais, como é o caso da CPT.

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resolvidos por marcos institucionais existentes, ficando o povo como um agente passivo, não levando a mudanças do poder que molda por dentro a sociedade.

O que era um meio tornou-se um fim em si mesmo. Assim enquadradas, as eleições tem sido um momento privilegiado para difundir maciçamente a ideologia conservadora. Em nada contribuem para desenvolver o sentido crítico do povo em relação ao sistema e fortalecer sua capacidade de mobilização. (...) o resultado é um amplo descrédito na atividade política. Todos parecem mais ou menos iguais (GEBRIM, 2005 p. 9).

O afastamento do PT das propostas de mudanças estruturais marcará o encaminhamento para o fim do Ciclo PT e um processo de transição para um novo ciclo que deverá ser formar. É nesta perspectiva que se organizará o Movimento Consulta Popular.

Scherer-Warren (1993) relata que os movimentos sociais não apresentam maiores homogeneizações nem entre os diferentes movimentos e nem entre movimentos semelhantes em diferentes áreas. A autora indica a presença de dois blocos de movimentos no Brasil, que mesmo tendo em comum um projeto de construção de uma nova sociedade, apresentam uma grande distinção. São eles: a) movimentos de base mais populares (Novo Sindicalismo, movimentos de bairros periféricos, MST, Movimento de Atingidos por Barragens, Movimento de Mulheres Agricultoras); b) movimentos típicos de classe média (movimentos ecológicos e feministas). Para os primeiros, faz-se necessária a superação de inadequadas situações econômicas e sociais que as afetam, o que não tem a mesma importância para os segundos, já que a aceitação pública dos mesmos ocorre de forma tranquila, enquanto os primeiros enfrentam muita resistência.

Um elemento do interior dos próprios movimentos sociais contribuiu para seu descenso, como identificou Gohn (2000); a profissionalização de lideranças. Isto se deu a partir do momento em que as lideranças – “os liberados” - passaram a ficar à disposição dos movimentos e recebiam uma compensação financeira em troca. Muitas destas lideranças acabaram se distanciando das bases, aproximando-se de outras instituições com fins iguais ou semelhantes, ativeram-se bastante à elaboração de agendas de encontros e seminários – nacionais, mais no final da década de 1980 e internacionais, nos anos 1990 – e se envolveram intensamente em eleições, tanto em escala estadual, municipal como federal42.

Muitas ONGs passam a assumir os papéis antes desempenhados pelos movimentos sociais, na maioria das vezes por meio de intermediação entre o poder público e grupos

42 Acreditava-se no poder transformador do Estado, do Estado de Bem-Estar Social. Tomando-se o poder do

Estado, abrir-se-ia a possibilidade de se realizar uma revolução social. Foram inúmeros os vereadores, prefeitos, deputados e senadores eleitos nos diferentes estados brasileiros, e, mais recentemente, a eleição de um Presidente da República que teve sua formação no bojo das discussões populares. Esta foi, também, a postura do MAB por um determinado período, como veremos a seguir.

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sociais por meio das políticas de parceria, geralmente no setor de produção, onde estas instituições mantêm o controle dos projetos em execução e administram os recursos envolvidos. Estas funções assumidas pelas ONGs passaram a ser uma forma de as mesmas sobreviverem, pois, com a redemocratização nos países latino-americanos, muitas verbas que eram enviadas para esta região passaram a ser enviadas para países do Leste Europeu. Os movimentos sociais também passaram por este processo de diminuição de verbas advindas de determinados grupos do exterior e recorreram ao Estado para se manterem ativos e/ou buscaram formas próprias de sobrevivência econômica. Como exemplo, Gohn (2000) destaca que os índios, além de pressionarem o governo por demarcação de suas terras, vendem castanhas e ervas; enquanto os seringueiros, além de lutar contra a opressão dos que se dizem donos das terras, vendem seus produtos em mercados competitivos.

No início da década de 1990, Scherer-Warren destacava a existência de duas visões sobre a questão da organização da sociedade civil naquela década. Uma primeira visão admitia a desorganização social, na qual os movimentos sociais não teriam um papel de destaque na sociedade, com tendência a desaparecerem, surgindo novos grupos, frutos do processo das transformações que vinham ocorrendo em nível mundial. Como resultado destas transformações, poder-se-ia passar por um período de crises e turbulências sociais. Assim, como nos apresenta Scherer-Warren (1996, p.21), “os organismos da sociedade civil tendem a desaparecer, dando lugar às condutas de crises, tais como bandos de jovens, grupos de

delinqüentes ou grupos de violência organizada [...] é o „desmovimento‟.” Uma segunda visão busca a compreensão do “desmovimento” para criar novas ações que proporcionem, a partir

de uma avaliação crítica dos movimentos sociais, novos rumos. É a busca de uma nova mobilização. Para tanto, seria necessária uma análise que abarcasse tanto uma visão macro como micro social e as relações provenientes da mesma. Essas novas ações seriam influenciadas pelas transformações internas e externas que vêm ocorrendo em nível mundial. De acordo com Scherer-Warren (1996, p.22), “Trata-se de entender as interconexões de sentidos entre o local (comunitário) e o global (supranacional, transnacional)”. Para a autora, as relações entre os movimentos sociais e o Estado era outro ponto que precisava ser compreendido, pois, naquele momento, encontravam-se em uma situação muito delicada, já que ambos estavam em um período de transformação.

No caso do Estado, estava se colocando em prática a política neoliberal, em contraposição ao keynesianismo, que eliminava muitas de suas funções e dava à iniciativa privada um maior poder de ação, buscando-se implantar a idéia do Estado Mínimo. Os movimentos sociais se questionavam até que ponto o Estado, que deveria servir de mediador

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na disputa que ocorria entre os donos do capital e os trabalhadores, teria uma importância que fosse válida, no caso de se recorrer à sua intervenção. Também, era importante que se fizesse uma análise da conjuntura do momento, levando-se em conta os avanços tecnológicos, a aceleração da circulação das informações e o poder de estar sempre atualizado, a união contraditória entre as ações globais e locais, a rede de conexões que estava ocorrendo entre indivíduos, grupos, regiões, países, ou seja, dever-se-ia entender a globalização e suas contradições.

Scherer-Warren (1996) estabeleceu um claro diagnóstico dos pontos que estariam marcando as discussões políticas e econômicas da década em análise, e fez um prognóstico da necessidade dos movimentos sociais fugirem do isolamento, de se articularem conjuntamente e de trocarem informações, utilizando-se dos mais modernos meios de comunicação existentes, formando redes de movimentos sociais. Ao ocorrer a conexão de vários movimentos em uma rede, tem-se o fortalecimento de cada um individualmente, pois é alimentado por uma carga de informações e conhecimentos, e da rede como um todo, que se retroalimenta constantemente. A rede cumpre o papel de articuladora, organizadora e de fortalecimento dos movimentos abarcados e da causa defendida. Mas, para isso, ela tem que ser constantemente alimentada pelos seus integrantes.

As redes de movimentos sociais agrupam várias organizações de diferentes portes, lugares, identidades sociais, ideologias e buscam unir forças para gerar uma sinergia em torno de seus objetivos. Torna-se um espaço público que consegue superar barreiras geográficas, limitações financeiras, contornar as desigualdades de acesso e de informações, ampliando o alcance de atuação e a organização de estratégias de lutas mais eficazes por parte desses movimentos. É uma nova forma de cosmopolitivismo. Porém, é importante destacar que aproximar sujeitos com identidades, culturas e lutas específicas por meio de redes de movimentos sociais não é possível sob uma teoria geral; faz-se necessário criar outra maneira de entender e articular conhecimentos, práticas e ações coletivas, sem permanecer na fragmentação existente, criando-se “inteligibilidade recíproca na interior da pluralidade” (SANTOS, 2007 p. 39). Faz-se necessário ter uma teoria de tradução43, que torne as diferentes lutas mutuamente inteligíveis e que permita aos atores coletivos conversarem sobre as opressões a que resistem e as aspirações que os animam.

43 Para Santos (2007), tradução é entendido como um processo inter-cultural e inter-social, onde buscar-se-ia

saber o que há de comum e de diferente entre os diversos movimentos, com o intuito de criar inteligibilidade entre os mesmos, sem destruir a diversidade.

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