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Alguns aspectos do processo de profissionalização docente

1. PANORAMA SOBRE A FORMAÇÃO E AS CONDIÇÕES DE TRABALHO DOS PROFESSORES

1.2. Alguns aspectos do processo de profissionalização docente

Há uma vasta literatura sobre o assunto que discute o status profissional dos professores. Destacaremos os conceitos de professor, escola e profissionalização, porque são construídos historicamente e, dependem das representações sociais que estão agindo em determinadas épocas. Segundo Costa (1995):

Professor e escola são duas categorias que se constituíram historicamente relacionadas uma à outra, vinculadas conjuntamente aos processos e práticas sociais que produzem indivíduos partícipes das trajetórias histórico-culturais das sociedades em que vivem. À medida que a escola se estabeleceu como instituição social desenvolveu-se, também, um grupo ocupacional que exercia o controle e a autoridade

no seu que fazer diário. A identidade desse grupo, referenciada ao papel, ao status social e ao significado político da atividade a qual se dedica, tem sido amplamente discutida e uma das vertentes produtivas desse debate é a que estuda o surgimento dos profissionais9. (p.85).

Profissionalização é um processo historicamente específico desenvolvido por algumas ocupações em um determinado tempo e não um processo que certas ocupações devem sempre realizar devido as suas qualidades essenciais; é uma forma de controle político do trabalho, conquistado por um grupo social, em dado momento. (p.89).

Portanto, é possível que, em determinados momentos históricos, a representação social tanto dos professores como da escola seja de maior ou menor prestígio.Como também são diferenciados os mecanismos de controle exercidos pela profissão. No início do século XX, por exemplo, a escola e os professores atendiam às expectativas sociais. De acordo com Nóvoa (1995):

O prestígio dos professores no início do século XX é indissociável da acção levada a cabo pelas suas associações, que acrescentam à unidade extrínseca do corpo docente, imposta pelo Estado, uma unidade intrínseca, construída com base em interesses comuns e na consolidação de um espírito de corpo. A profissão docente exerce-se a partir da adesão (implícita ou explícita) a um conjunto de normas e de valores. No princípio do século XX, este ‘fundo comum’ é alimentado pela crença generalizada nas potencialidades da escola e na sua expansão ao conjunto da sociedade. Os protagonistas deste desígnio são os professores, que vão ser investidos de um importante poder simbólico. A escola e a instrução incarnam o progresso: os professores são seus agentes. A época de glória do modelo escolar é também o período de ouro da profissão docente (p. 19).

Mas, a partir das últimas décadas do século XX, a profissão professor vem passando por um processo de desvalorização cada vez maior, pelo chamado processo de proletarização ou desprofissionalização. Para Contreras (2002):

Da mesma forma que o profissionalismo, tanto como descrição ou expressão do desejo, constitui um debate vivo no seio da comunidade educativa, outro dos temas controversos é o da paulatina perda por parte dos professores daquelas qualidades que faziam deles profissionais, ou, ainda, a deterioração daquelas condições de trabalho nas quais depositavam suas esperanças de alcançar tal status. É esse o fenômeno que passou a ser chamado o processo de proletarização. Embora não se possa falar de unanimidade entre os autores que defendem a teoria da proletarização de professores, a tese básica dessa posição é a consideração de que os docentes, enquanto categoria, sofreram ou estão sofrendo uma transformação, tanto nas características de suas condições de trabalho como nas tarefas que realizam, que os aproxima cada vez mais das condições e interesses da classe operária. (p.33).

O processo de profissionalização e de proletarização representam as condições que os professores vivenciam com relação ao seu status de profissional. O primeiro significa a

9 Nesta obra, Costa mostra como a palavra profissão tem se transformado na história. Para traçar a mudança

utiliza os trabalhos de: Nóvoa (1987); Larson (1977); Lawn & Ozga (1981); Parsons (1957); Cabrera & Jimenez (1991) entre outros.

busca pelo reconhecimento e pelo controle de sua própria profissão. Já a proletarização é o processo inverso, isto é, simboliza o desprestígio, a falta de poder e as condições precárias de trabalho, que fazem com que os professores tenham que lutar pela sua sobrevivência na escola e fora dela. A superlotação das salas de aulas, os baixos salários, a falta de tempo disponível para a sua formação forçam esses profissionais a relegarem a busca pelo reconhecimento de sua profissão e de sua autonomia a segundo plano.

Contreras (2002) aponta, ao analisar as questões da autonomia dos professores, algumas vertentes que estudam o profissionalismo e seus desdobramentos. Um dos aspectos são as ambigüidades decorrentes da reivindicação do status de profissional:

A discussão sobre o profissionalismo dos professores está atravessada de ponta a ponta pelas ambigüidades que a própria denominação “profissional” acarreta, bem como pelos interesses no uso desse termo. Algo desse assunto pudemos observar ao analisar o modo conflitivo e contraditório com que o termo é usado quando os professores tratam de fugir da proletarização. Passa a ser ambíguo porque sua fuga é tanto uma resistência à perda de qualidade em sua atividade docente, como uma resistência a perder – ou a não obter – um prestígio, um status ou uma remuneração que se identifique com a de outros profissionais (p.53).

O autor nos mostra, baseado em estudos feitos sobre profissão (Guinsburg, 1988; Skopp, 1988; Enguita, 1990; Hoyle, 1980), a enorme dificuldade de atribuir à categoria docente à condição de profissional. A teorização mais extensa sobre o profissionalismo foi denominada de Teoria dos Traços, que se baseia na manipulação da imagem daquelas ocupações sobre as quais há um consenso quanto ao seu estatuto de “profissão”, tais como médico e advogado. Selecionam-se os traços – saber profissional, poder sobre o cliente, autonomia ou controle profissional independente, entre outros - que supostamente caracterizam esse tipo profissional e se compõe um retrato do profissionalismo. Ao comparar a atividade docente segundo os traços determinantes de uma profissão, a conclusão mais comum é a de considerar os professores como semiprofissionais. Atribui tal denominação ao observar que:

falta autonomia com relação ao Estado que fixa a sua prática, carentes de um conhecimento próprio e sem uma organização exclusiva que regule o acesso e o código profissional. Por conseguinte, os traços ideais de serviço (ou vocação), e de autonomia em relação ao cliente (se entendermos aqui como tal os alunos) ou trabalho rotineiro, não são elementos suficientes para que a docência seja considerada uma profissão (p.57).

No entanto, tal análise torna-se simplista como nos aponta a crítica que Larson (1977, apud Contreras) faz à Teoria dos Traços, por seu caráter a-histórico e determinista, que obedece a interesses ideológicos. A autora defende que as profissões devem ser encaradas e pesquisadas como um mecanismo pelo qual certos grupos de trabalhadores desenvolveram estratégias para controlar o exercício profissional, impedindo o acesso de profissionais diferentes, recorrendo para isso ao Estado para que garantisse esse privilégio (p.59).

A exclusividade de um conhecimento especializado era forma de legitimação para exercer tal controle. Porém, a dependência do poder do Estado na defesa de seus interesses transformou as condições de trabalho. Os profissionais passaram a ser especialistas assalariados em uma organização empresarial ou burocrática, sujeitos ao controle administrativo, apenas com certo reconhecimento de suas capacidades técnicas e, apesar de tudo, com os privilégios que o conhecimento técnico lhes concede na hierarquia trabalhista da organização (Contreras, 2002, pp.59/60).

Para exemplificar tal situação, Contreras mostra a situação da profissão de médico. Atualmente, trabalhando em grandes estruturas institucionalizadas como as organizações hospitalares, companhias sanitárias e serviços estatais de saúde, a suposta autonomia profissional dos médicos parece ficar reduzida à sua possibilidade de diagnóstico e tratamento, sempre e quando for realizado dentro das estreitas margens da medicina convencional e das normas burocráticas que racionalizam sua capacidade de atendimento, diagnóstico e tratamento (p.60).

Essa tendência ideológica do profissionalismo tem como conseqüência manter a exclusividade do conhecimento; assim os problemas e conflitos referentes a sua área passam a ser somente assunto de especialistas, ocultando as opções ideológicas que sustentam as decisões profissionais: aos clientes cabe apenas acatar a avaliação do profissional. Sendo assim, o autor nos alerta para o fato de que a reivindicação de profissionalismo dos professores pode não ser uma estratégia eficaz, pois pode ser um meio de ocultar as carências de poder profissional. Tal viés ideológico está ligado à capacidade de impor um conhecimento como exclusivo. Segundo Popkewitz (1990, apud Contreras):

Os processos de profissionalização têm sido utilizados para introduzir sistemas de racionalização no ensino, de tal modo que o fruto foi a homogeneização da prática dos docentes, a conseqüente burocratização e perda da autonomia dos professores e o banimento da participação social na educação cada vez mais justificado como um âmbito de decisão dos profissionais ou da administração (p.61).

Os professores acabam por exercer um papel secundário, conseqüentemente o seu trabalho é desvalorizado, ficam sem voz e as suas reivindicações são denominadas de queixas. O controle do exercício docente é feito por meio de implantações de programas de ensino elaborados pelo Estado, a partir dos resultados de pesquisas acadêmicas. Contreras (2002) discute que no processo de profissionalização, um dos aspectos mais fortes de legitimação, é a posse do conhecimento científico. De acordo com Larson (1989, apud Contreras):

A linguagem e a prática científica se apresentam como um “campo discursivo” restritivo e seleto, e a linguagem profissional acaba assimilando as formas e rituais do científico(...)As “comunidades de discurso” que constituem as profissões não são homogêneas. Embora determinados grupos possam fazer parte de um mesmo campo cognitivo especializado, nem todos os membros têm o mesmo domínio, nem o mesmo reconhecimento em relação a esse conhecimento que compartilham, senão que no interior dessas comunidades há divisões, estratificações e hierarquias. Diferentemente de outras ocupações, nas quais há uma continuidade de formação e titulação entre os que exercem diferentes funções dentro de uma mesma comunidade de discurso, no caso do ensino parece haver uma fratura entre os que possuem um conhecimento reconhecido e uma legitimação científica sobre a docência enquanto campo discursivo, por um lado, e os professores (não-universitários), por outro (pp. 61,62).

O conhecimento reconhecidamente válido é o advindo da pesquisa científica. Tal processo é baseado em duas explicações, segundo Popkewitz, (1991, apud Contreras): a primeira é a fé na ciência como motor do progresso humano (p.62) e, a segunda é devido ao processo histórico de institucionalização dos professores pelo Estado, como vimos anteriormente.

Portanto, no caso dos professores, há uma relação de subordinação com o conhecimento acadêmico: Quem detém o status de profissional no ensino é fundamentalmente o grupo de acadêmicos e pesquisadores universitários, bem como os especialistas com funções administrativas, de planejamento e de controle no sistema educacional (Contreras, 2002, pp 63/64). Há uma valoração muito diferenciada para o trabalho do professor universitário e do professor do ensino fundamental e médio. O primeiro gera o conhecimento; o segundo nem sequer consegue consumir tal conhecimento dadas as precárias condições de trabalho. Tal crença está tão arraigada que os próprios professores só consideram legítimo o conhecimento produzido pela academia. Os professores ficam pressionados pela regulamentação do Estado e pelas produções acadêmicas que tentam nortear as questões de ensino. Segundo Zeichner (1998):

Freqüentemente, o conhecimento, gerado por meio da pesquisa educacional acadêmica, é apresentado de uma forma que não leva os professores a nela se engajarem intelectualmente. A pesquisa educacional tem sido, estranhamente, muito anti-educativa. Seus resultados são simplesmente apresentados como certos e definitivos, ou usados como justificativa para impor algum programa prescritivo a ser seguido pelos professores. Por exemplo, apesar das avançadas idéias e visões defendidas pelas políticas e pelos acadêmicos para as escolas e os professores, nesta era de reestruturação escolar ignora-se muito o que os professores conhecem e podem fazer. As propostas centram-se apenas na distribuição de soluções pré- programadas para os problemas escolares (p. 218).

Essas considerações sobre a imposição do conhecimento científico sobre o ensino já estão naturalizadas, isto é, as professoras assimilam-nas como verdadeiras. No REELP, optamos pelo modelo descrito acima, isto é, convidamos os docentes universitários para ministrarem, em nossas reuniões, os resultados de suas pesquisas, pois sequer nos considerávamos habilitadas para nossa função, como foi apontado na introdução deste trabalho. Apesar de manter a postura de subordinação com relação ao conhecimento acadêmico, foi no REELP que descobrimos que também produzíamos e éramos possuidoras de um conhecimento válido (aspecto que será analisado no Capítulo IV).

Em seu modelo de análise da profissão docente, Nóvoa (1995), utilizando os resultados de diversas pesquisas, propõe, por exemplo, a revisão do controle do Estado na atividade docente, pois não há regulações intermediárias de poder (em nível local, organizacional e profissional). Isso se constitui como um fator de estrangulamento do professorado e do seu desenvolvimento profissional. Portanto, os professores precisariam adquirir uma certa autonomia na gestão de sua própria profissão e uma ligação mais forte aos atores educativos locais (autarquias, comunidades, etc). Sugere ainda a criação de formas contratuais, em modalidades de convênios, que possibilitem aos professores um novo enquadramento e que estipulem normas de responsabilidade profissional.

Nóvoa ressalta que a presença do Estado no âmbito do ensino é importante para manter a equidade social e serviços de qualidade. No entanto, a supervisão do Estado deveria ser de acompanhamento e de avaliação reguladora, e não de prescrição e de uma burocracia regulamentadora. Não há um órgão intermediário que regulamente a profissão tal como é feito pelos Conselhos Regionais de Medicina, de Arquitetura, a Ordem dos Advogados. É o Estado que através de decretos, leis, guias e parâmetros curriculares determina o quê e como deve ser realizado o trabalho dos professores. Tais leis não incorporam discussões realizadas pelos professores; ao contrário, as mudanças são discutidas nos gabinetes, nos

fóruns acadêmicos, e o professor apenas deve colocar em prática os resultados de discussões em que sequer participou.

Um exemplo disso, no Estado de São Paulo, é a implantação da Progressão Continuada, durante o governo Mário Covas. Não houve debate ou preparação para que os professores pudessem trabalhar nesse novo regime, o que gerou inúmeros problemas. Apesar de todo embasamento teórico que sustenta a Progressão Continuada, sua implantação aponta muito mais para uma alteração do número de alunos reprovados do que para uma mudança pedagógica. Um outro exemplo é a publicação dos Parâmetros Curriculares Nacionais do ensino Fundamental – Ciclo I: segundo Silva (2003) o documento apresenta alguns problemas de textualidade e de adequação ao público-alvo, isto é, os professores encontram dificuldade para a sua leitura não porque não são leitores, mas porque o entendimento do documento requer um conhecimento que o professor não possui, a menos que ele também seja um lingüista.

Este pequeno esboço da história da formação dos professores e de suas relações no âmbito do mundo do trabalho é um retrato das condições históricas que propiciam a caracterização negativa da profissão docente. O REELP surge como uma tentativa de amenizar os problemas apresentados acima, porque as professoras, cujo grupo também fazemos parte, somos constituídas por esta história, mesmo que não tenhamos tido conhecimento formal de todas essas discussões acadêmicas sobre o processo de profissionalização de nossa categoria. Vivemos diariamente os conflitos gerados pela falta de autonomia pedagógica, pela falta de tempo e de condições para estudarmos, já que passamos pela formação inicial, que não nos prepara para a escola e os alunos reais, que ficam conhecidos somente no momento em que começamos a trabalhar.

1.3. A formação em serviço oferecida pela Secretaria Estadual de Educação de São