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2.1 “A NOVA VELHA HISTÓRIA 16 ”

4. AS REPRESENTAÇÕES E AS NARRATIVAS DAS PROFESSORAS: UMA QUASE MUDANÇA.

4.1. Representação e auto-representação

Como vimos, no Capítulo I, os professores enfrentam a precariedade dos cursos de formação inicial, a ineficiência dos programas de formação continuada oferecidos pela SEE/SP e a dificuldade de acesso às contribuições das pesquisas acadêmicas, já que eles não são os interlocutores dos textos científicos, os de divulgação científica são raros. Segundo as entrevistadas, com a presença nas atividades do REELP, elas vão aos poucos superando tais problemas e alterando gradualmente sua identidade profissional.

As representações sociais das professoras que circulam em nossa sociedade através dos diversos meios (mídia, texto acadêmico) estão relacionadas ao despreparo para exercerem sua profissão. Não são consideradas representantes legítimas da cultura letrada, não lêem e não escrevem (Batista, 1998; Britto, 1998). As professoras dialogam com tais representações e explicitam nos seus depoimentos como se sentem inseguras, desvalorizadas, desatualizadas e carentes de uma formação que as prepare para os problemas cotidianos de ensino de leitura e de escrita.

Nas entrevistas, as professoras falam de como o REELP tentou proporcionar aos seus participantes elementos, contextos e experiências para elas construírem uma nova auto- representação. A vivência nas atividades do grupo teria trazido uma melhora significativa na avaliação que elas faziam de si mesmas, uma vez que afirmam que houve uma mudança em sua auto-estima. Tal sentimento, como veremos a seguir, não se estende somente ao seu trabalho em sala de aula:

Sílvia: O REELP foi uma experiência extremamente positiva, tanto na sala de aula quanto fora dela. A auto-estima do professor, minha pessoalmente, melhora, melhorou muito.

Anna Teresa: O REELP significou uma tomada de posição na minha vida profissional, na minha vida como pessoa, porque sempre tive aquela vontade imensa de sair da mesmice e de não ter onde me apoiar em sala de aula e não ter com quem trocar idéias e nem tampouco de saber se o que eu estava fazendo estava dentro ou não de um plano de ensino que fugisse um pouco da regra do Estado. Quando a gente decidiu tomar parte do REELP, de certa forma, fazer o REELP, eu me senti quase que empurrada para essa nova maneira de ver a parte profissional e de ver a vida. Era uma maneira de ocupar o sábado com algo mais producente, porque de repente o sábado podia ser diferente a não ser ficar em casa e cuidar de armário e ficar cuidando de filho. O sábado podia ser algo que a gente fizesse pra gente mesmo, para o próprio crescimento e até para o resgate de auto-estima, porque era muita desvalorização, era pouca aceitação, era muita solidão em termos de fazer um trabalho diferenciado e se sentir sozinha por estar fazendo este trabalho.

Nos trechos acima, as professoras constroem relatos que podemos caracterizar como identitários (Fairclough, 2001, p.92), pois os depoimentos nos mostram como elas reconstroem sua auto-representação como profissionais -“A auto-estima do professor, minha pessoalmente, melhora, melhorou muito”, “essa nova maneira de ver a parte profissional”. Isso, contrasta com as identidades sociais que seriam mais marcadas antes do REELP, tais como a de mãe -“cuidando de filho”, a de dona de casa –“cuidar de armário”e também a condição de mulher “o sábado podia ser algo que a gente fizesse pra gente mesmo”. As identidades de mãe e dona de casa estão relacionadas ao cuidar do outro e não de si mesma como profissional e, elas indicam, ao perceber que estão fazendo algo por si mesmas, passam a sentir uma melhora em sua auto-estima. Isso possibilitaria, segundo declaram algumas professoras, lidar diferentemente com outra característica na representação negativa que fazem de sua atuação: que são acomodadas e estão à procura de receitas. Conseqüentemente, passaram a acreditar mais no seu potencial e competência, inclusive ousaram voar mais alto. Sílvia ingressou no Mestrado em 2001 e hoje, em 2004, cursa o Doutorado, no Instituto de Estudos da Linguagem, Unicamp. E Anna Teresa defendeu sua dissertação de Mestrado, na Faculdade de Educação, na Unicamp, em 2003.

Ao descreverem as suas participações nas atividades do REELP, as professoras apontam para um processo de transformação de sua identidade profissional. Para isso, utilizam-se de algumas metáforas para se referirem ao que experienciaram no REELP. Segundo Lakoff & Johnson (2002), o nosso sistema conceitual – os nossos conceitos que governam o nosso cotidiano e estruturam tudo, o que percebemos, como agimos, como nos relacionamos é basicamente um sistema de natureza metafórica. Vejamos como foram construídas algumas dessas metáforas:

Anna Teresa: Estando no grupo do REELP, a gente trocava idéias e percebia que éramos três ou quatro sozinhas, mas que não éramos mais sozinhas, e sim um grupo que decidiu correr atrás... O REELP foi um porto de passagem, o REELP foi um momento em que a gente parou, se ancorou, e seguiu, acho que o REELP foi uma passagem, mas foi uma parada também, paramos para olhar e para olhar para frente e resolvemos seguir. Para mim foi um porto, um lugar onde eu parei, me auto-analisei e resolvi seguir.

Cristiane: O REELP é como se fosse uma porta de entrada para alguns professores que, quando entram sabem que vão ter uma melhoria, vão modificar, que estão realmente abertos para uma mudança. Para alguns professores continua sendo isso, porque muitas das pessoas que eu encontro na rua perguntam: e o REELP? O ano que vem vai funcionar?

Cláudia: Como eu estava aqui nessa cidade com criança pequena, não tinha família, pra mim foi uma benção, como extensão universitária, como curso de extensão universitária, porque eu não tinha com quem deixar as crianças, não podia ir para a faculdade, tinha aquela vantagem que vocês tinham alguém para olhar as crianças e foi o mais perto que eu pude chegar de uma boa faculdade, de uma boa universidade...

Podemos perceber tal mudança ao observarmos como são interessantes as escolhas lexicais das professoras, que contrapõem à solidão as metáforas da segurança e refúgio, do “porto”, da “âncora”, o descanso da “parada”, ou da transformação pela “entrada” a algo diferente, superior, “como extensão universitária”, “o mais perto... de uma boa faculdade”, “de uma boa universidade”. As metáforas das professoras de que havia um “porto” em que podiam “ancorar” e assim descarregar suas dúvidas, incertezas, sentimentos de desvalorização e solidão mostram como concebem positivamente a instituição, ao construírem o REELP, como um lugar seguro, como um abrigo.

A professora Ana, ao refletir sobre sua experiência no REELP não o faz comparando-o explicitamente a um curso de extensão universitária, mas sua narrativa atribui ao REELP os resultados positivos de um bom curso de formação. Vejamos:

Ana : Eu acho assim que ninguém sai da faculdade assim preparado, que é no dia-a-dia que você vai aprendendo e descobrindo as coisas e, quando eu, nos primeiros anos que eu trabalhava, eu tinha um sonho que eu não tinha... Eu sonhava que eu não tinha terminado a faculdade, que eu tinha parado e, chegava no final, eu não sei porque eu não tinha ido na faculdade e já tava chegando o final do ano e eu não tinha terminado a faculdade. Eu pensei, acho que eu estou precisando estudar, ver coisa diferente, porque eu não estou preparada para a sala de aula, e aí eu fiz o REELP, eu melhorei, não sonhei mais. Porque eu fiz uma faculdade muito ralezinha, Jales, você sabe disso, né?Hoje acho que está bem melhor, mas na época que eu fiz há doze anos atrás... Eu sonhava, sonhava sempre que eu não tinha acabado a faculdade, que eu tinha parado e nunca mais eu tinha ido, tinha chegado o final do ano e eu não tinha terminado a faculdade, mas eu não sabia o motivo e eu acho que era isso, eu precisava estudar, me preparar melhor

A insegurança no início de sua carreira refletia, no caso da professora Ana, a opinião de muitas pessoas na região (“você sabe disso, né?”) sobre o seu curso de graduação em uma instituição de menor prestígio, no interior do Estado de São Paulo32. Ana afirma ter se sentido acolhida e valorizada ao freqüentar as atividades do REELP e conseguido preencher

32 Na região de Americana, há muitos professores provenientes da região de Jales, que cursaram a graduação

uma lacuna que sentia em sua formação. O trecho a seguir nos mostra como ela lembra esse processo:

Ana: É mais segurança, assim não só com os professores que iam lá, mas com os colegas que iam lá e falavam a maneira como eles trabalhavam, assim, assim. Eu falava, mas isso eu também sei fazer, isso eu também posso fazer. Não fazia por insegurança, eu achava que não ia dar certo, agora eu estou fazendo as coisas na minha casa e eu falo: hoje eu vou ver isso, como é que vou e já pego um jornal, pego uma coisa e preparo aula pra semana inteira, e vai, vai, pega um texto assim que fala de temas transversais e pronto, pega um texto de História, de Geografia e mando vê. Eu acho assim que aprendi a trabalhar interdisciplinaridade também. Que era bem isso que eles mostraram como trabalhar. Até então eu nunca tinha... nem professor da faculdade, nada, me ensinou a trabalhar assim, que com um texto de Ciências eu posso trabalhar Português, texto de História eu posso trabalhar Português, poesia, nunca nós analisamos poesia na faculdade, você está me entendendo?

Ana aponta graves falhas em sua formação inicial. Destaca a ausência de modelo de análise de texto. Ela cita como exemplo textos de outras áreas (História, Geografia) e os literários (poesia). Ao mencionar como tem preparado suas aulas a partir de textos jornalísticos, sinaliza para um modelo de análise desse texto, o tema, especialmente aqueles considerados transversais. Interdisciplinaridade e temas transversais são terminologias que chegaram até a escola por meio dos PCN. Aqui temos um exemplo de uma professora que teria saído do círculo vicioso que se instala ao falarmos de prática docente tentando incorporar os resultados de pesquisas voltadas para o ensino. Os órgãos oficiais se apropriam desses resultados e os transformam em propostas e/ou parâmetros, enviam para as escolas como sendo a última novidade sobre o ensino. Mas como trabalhar essa novidade, já que muitos professores durante a sua formação não tiveram sequer um modelo de como trabalhar e as propostas tratam de um outro modelo ainda mais recente, recém saído da academia. E o impasse passa de uma esfera para a outra, ora atribui-se o problema à formação inicial, ora à formação continuada, ora às propostas oficiais, ora aos professores porque são aqueles que estão em busca de receitas. Se entendermos que as “receitas” (as mulheres entendem bem essa linguagem, algumas delas nem precisam de receitas escritas, talvez se o magistério fosse uma profissão exercida majoritariamente por homens, os professores seriam aqueles que estariam sempre em busca de manual de instrução) são descrições de modos de fazer, são um modelo, então não haveria problema se esses modelos fossem trabalhados em ações de formação continuada, como Ana, que sabe que uma receita e/ou um modelo pode ser alterado de acordo com o paladar e/ou com o

conhecimento de quem vai executar a tarefa, diz ter conseguido encontrar no REELP. Ao ouvir como as suas colegas trabalhavam, conseguiu encontrar um modelo relevante. A diversidade na formação e nas experiências profissionais foi um fator que enriqueceu a troca de experiências entre as participantes nos encontros do REELP.

O problema da formação é complexo, como vimos no Capítulo I. A diferenciação da formação estava sempre presente. De forma velada, as professoras tinham consciência dessa desigualdade, mas, durante as reuniões no REELP, não se falava no assunto. Algumas haviam cursado a licenciatura curta, habilitação que licenciava a lecionar somente no segundo ciclo do ensino fundamental (de 5ª a 8ª série). Com a nova L.D.B. (9.394/96), a licenciatura curta foi extinta e aqueles que possuíam tal habilitação foram considerados não-habilitados. Isso gerou muitos problemas, pois as aulas desses professores poderiam ser requeridas por aqueles que possuíam a licenciatura plena e que estavam sem aulas33. Somente no início de 2002, devido a uma nova mudança de legislação, é que esse quadro foi revertido e os professores que possuíam a licenciatura curta puderam pegar suas aulas no segundo ciclo do ensino fundamental. Nas entrevistas, Marta fala sobre a contribuição do REELP durante essa difícil época:

Marta: (...) porque eu me sentia na época, eu posso falar até com baixa auto-estima, porque eu não tinha um curso completo34, então eu me sentia diferente das demais, que eu não entendia muito bem e o pessoal tratava todo mundo igual...Quando eu fiz o REELP, eu não tinha muita noção, praticamente nenhuma dessa área da Lingüística, a Análise do Discurso, então pra mim foi excelente. Quando passava textos para os alunos eu me lembrava das aulas dos professores e do que eles falavam e tentava aplicar em sala de aula, pra mim foi excelente, deu uma abertura muito maior no que eu conhecia de texto.

Entre outras atividades, Marta freqüentou o curso de trinta horas oferecido pelo REELP em 1998, e no ano seguinte, fez sua plenificação para a licenciatura plena. E em 2002, momento em que foi realizada a coleta de dados para essa pesquisa, Marta diz que se sente bem mais preparada e ressalta o conhecimento que adquiriu no REELP sobre Análise do Discurso. Compara ainda esse conhecimento com “as novidades” que suas colegas trouxeram de um curso de formação continuada oferecido pela SEE/SP e diz: isso eu já

33 Isso gerou muita insegurança nos professores e houve uma corrida para fazerem o curso de plenificação. A

maior parte deles realizados aos sábados e em lugares distantes.

conhecia...Tomei conhecimento disso em 98 durante o curso, esse tipo de trabalho com o texto.

Ao reconstruírem o que foi vivido no REELP as professoras vão também construindo uma nova posição identitária, pois relacionam as questões de sua formação inicial, de sua condição de solidão ao desenvolver seu trabalho e de sua auto-estima com “os ganhos” que obtiveram no REELP. Por isso, as metáforas utilizadas pelas professoras, ao se referirem ao REELP estão muitas vezes relacionadas a uma mudança, a uma transformação: “porta de entrada” e “porto de passagem” nos remetem à idéia de algo novo, de um novo conhecimento. Entramos, conhecemos e seguimos. Nesse processo de reconhecer-se como autorizadas a assumir um outro lugar – diferente daquele até então ocupado –, elas passam a estabelecer uma outra relação com os saberes que circulam em suas práticas cotidianas.