• Nenhum resultado encontrado

Novas práticas docentes: uma possibilidade para sair da mesmice da escola

2.1 “A NOVA VELHA HISTÓRIA 16 ”

4. AS REPRESENTAÇÕES E AS NARRATIVAS DAS PROFESSORAS: UMA QUASE MUDANÇA.

4.2. Os saberes experienciais

4.2.1. Novas práticas docentes: uma possibilidade para sair da mesmice da escola

Aos temas das alterações emanadas de uma nova auto-representação e de um novo modo de relacionarem entre si no coletivo, devemos adicionar o tema das mudanças nos sistemas de conhecimento e crença profissional. Nessas rememorações, as professoras realizam as transformações relacionadas à função ideacional de Fairclough (2001). Assim, um importante desempenho do REELP, apontado nas entrevistas, seria a mudança nas práticas docentes. Uma prática que recorre nas entrevistas e que discutiremos em profundidade, pelo impacto que exerce na prática docente, refletido nas elaborações das professoras entrevistadas, é o uso do livro didático. De acordo com Batista (2003), o livro didático exerce uma função estruturadora do trabalho pedagógico. Tal concepção surge, no Brasil, por volta dos anos de 1960 e 1970:

(...)os livros didáticos tendem a apresentar não como uma síntese dos conteúdos curriculares, mas um desenvolvimento desses conteúdos; a se caracterizar não como um material de referência, mas como um caderno de atividades para expor, desenvolver, fixar e, em alguns casos, avaliar o aprendizado; desse modo, tendem a ser não um apoio ao ensino e ao aprendizado, mas um material que condiciona, orienta e organiza a ação docente, determinando uma seleção de conteúdos, um modo de abordagem desses conteúdos, uma forma de progressão, em suma, uma metodologia de ensino, no sentido amplo da palavra. O surgimento, no Brasil, dessa concepção de livro didático como estruturador das práticas docentes está associado, de acordo com diferentes estudos, com a intensa ampliação do sistema de ensino, ao longo dos anos 60 e 70, e com processos de recrutamento docente mais amplos e menos seletivos (p.47).

Ao falarem sobre o assunto as entrevistadas constroem narrativas representando numa linha temporal que inclui o cenário (quadro estático) do que era, o passado relevante do sujeito do relato retratado através do pretérito imperfeito (eu ficava, eu pegava, eu seguia, eu não conseguia, eu achava), o que aconteceu para mudar esse cenário, o evento detonador, ou seja, as atividades do REELP, cujo início é marcado pelo pretérito perfeito (depois eu comecei, passei a questionar). Essas narrativas basicamente são sobre a paulatina mudança de suas práticas pedagógicas: “fazia assim até que comecei a refletir/questionar/pensar e agora faço assim”. Vejamos:

Cristiane: “Antes eu ficava37 insegura, mas também não sabia onde achar pegava um livro didático. Se ele fez isso, acho que é isso mesmo. E seguia o livro, e depois disso não, depois disso comecei a questionar, acho que tem muita coisa nesses livros que não precisa, para que ensinar isso agora? Acho que para uma série posterior, acho que agora precisa mais escrita, mais leitura, isso cá para depois passei a questionar coisas que não fazia, você ficava assim, será que é bom, mas não conseguia falar não é bom e eu não tenho alternativas eu não tinha alternativas, eu achava estava bom aquilo lá, mas agora me questiono e faço reposição, tiro aquele e ponho outro no lugar, acho que aquilo não é interessante agora, deixo para o próximo ano, onde a criança está mais amadurecida e vai compreender melhor”.

Ao relatarem sobre suas práticas com relação ao livro didático, as professoras, de certo modo, estão respondendo as críticas feitas sobre o uso de tal recurso em sala de aula. E assim vão construindo a sua história sobre sua experiência no REELP avaliando o que consideraram como sucesso, como um avanço em oposição ao modo como desenvolviam o seu trabalho, isto é, o antes e depois, hoje.

O uso do livro didático faz parte da cultura escolar e o professor, ao ingressar na profissão, encontra no cotidiano escolar essa prática arraigada. Apesar das pesquisas desenvolvidas na academia, em geral, desqualificadoras do uso desse recurso, em particular em relação ao ensino de língua materna, o livro didático ainda mantém a função de

estruturador da prática docente. Podemos perceber, na fala das professoras, uma forma de qualificar a prática (“seguindo à risca mesmo”, “seguir de cabo a rabo”) se distanciando da desqualificação absoluta:

Rita: O REELP foi uma experiência bem diferente, foi importante. Primeiro porque eu

aprendi bastante, eu mudei muito a minha cabeça, eu tinha uma cabeça de professora mais

tradicional, mais antiga. Eu comecei a aprender coisa nova, acho que foi o principal pra mim. Eu até aquela época só tinha trabalhado com livro didático, seguindo a risca mesmo, foi uma mudança bem grande pra mim.

Marli: A minha própria maneira de ver eu comecei, acredito que como muitas outras professoras não fui diferente, de pegar um livro didático e seguir de cabo a rabo. A partir do REELP isso mudou, eu nem quis mais e não gosto de pegar um livro didático e ir.

Ao salientar que “antes” (do REELP) a prática era seguir “à risca mesmo” e “de cabo a rabo”, confirmando o caráter estruturador do livro didático e norteador da prática docente, elas apontam novamente para essa transformação na linha temporal que constroem, antes e depois do REELP: haveria uma postura acrítica do professor antes, e uma postura crítica depois, assumida pelas entrevistadas ao afirmar que “depois”, “hoje”, “agora” deixaram o livro, que não gostam mais deles. Outros depoimentos demonstram a elaboração de outros olhares em relação aos conteúdos dos livros didáticos. Vejamos os relatos:

Ana: Marcou bastante pra mim, porque eu ficava muito presa em livro didático, essas coisas. Depois, com o REELP, eu percebi que a gente pode trabalhar com coisas simples, preparar a sua aula com simples anúncio de jornal, assim mais com o cotidiano do aluno, da criança. Acho que foi um empurrão o REELP pra mim...Eu tinha muito medo, medo de fazer, eu procurava pegar pronto, é mais fácil, mas não é o mais certo, eu acho, né? Agora mudou muito a minha visão, ficou muito mais fácil avaliar, muito mais fácil preparar aula.

As professoras acatam o que encontram nos livros didáticos. Ao dizer “se ele fez isso, acho que é isso mesmo” fica explícita a relação de subordinação da professora ao livro; ao afirmar “porque eu ficava muito presa ao livro didático” também sugere a aceitação do livro como ele é, sem críticas ou ressalvas, tal qual os pesquisadores da academia mostram. Oliveira (1984:27), por exemplo, diz que: ao corporificar uma relação direta entre professor e aluno, o livro didático é visto como o ‘mestre mudo’, como a voz do professor, porque feito à sua imagem e semelhança. No entanto, a estrutura narrativa usada pelas professoras divide a relação em dois momentos distintos; nos seus relatos, essa relação de subordinação vai se alterando à medida que começam a desenvolver o seu trabalho com

mais autonomia, propondo novas tarefas e/ou utilizando o livro didático de forma não sistemática.

As péssimas condições de trabalho e a precária formação dos docentes, desde meados da década de 1960, são apontados como fatores determinantes para o uso do livro didático, principalmente no início da carreira docente, pois é um período em que o profissional não tem muita escolha no mercado de trabalho. As escolas particulares não recrutam professores recém-formados, exceto em casos muito especiais, e a rede municipal só contrata professores novos mediante concursos. Sendo assim, a rede estadual absorve a maior parte dos profissionais, com isso, o professor em início de carreira acaba assumindo as aulas que sobraram (os professores efetivos e/ou com muito tempo no magistério escolhem as séries com as quais preferem trabalhar). Muitas vezes, o professor iniciante acaba pegando aulas em mais de uma escola para completar a sua jornada e possivelmente precisará preparar aula de Português e Inglês para a maior parte das séries do segundo ciclo do ensino fundamental e do médio38. Porém, mesmo nessas precárias condições de trabalho que propiciam o uso indiscriminado dos LDs, as professoras nas entrevistas, constroem uma relação diferente com tal recurso e atribuem a isso o que foi vivenciado no REELP. O tema que recorre é esse uso como auxiliar de sua prática, como declarou Marli. Notamos, no seu depoimento, novamente as marcas temporais, “antes” e, implícito no uso do presente (busco, acredito, etc,) “hoje”, “depois”:

Marli: Eu acho que o aluno nem precisa de um professor lá, ele pode pegar sozinho um livro didático e seguir. Eu buscava coisas além daquilo que o livro didático oferecia...Mudou minha postura porque o REELP praticamente foi no começo da minha carreira, naquele tempo eu ainda pegava o livro didático, depois do REELP, aí não, aí livro didático pode ser até para auxiliar em alguma coisa, mas eu já busco sozinha o caminho e até acredito naquilo que eu faço, porque antes eu ficava sempre me questionando, achando que eu tava, que eu fosse fazer sozinha não fosse válido, não fosse alcançar o aluno. Se bem que falta muita coisa, eu melhorei pra mim mesma, eu acredito mais em mim, por causa de tudo aquilo que nós recebemos no REELP, de cada pessoa que esteve ali ajudando a gente. Eu creio que todos foram importantes pra mim, eu pego o meu caderninho e leio sempre, volto ali de vez em quando nas minhas anotações.

Segundo as professoras, as experiências que elas tiveram no REELP auxiliaram-nas em suas práticas cotidianas, dando o suporte necessário para que mudassem e ficassem mais

38 A atual legislação permite que um único professor ingresse em dois cargos: Português e Inglês. E,

independentes do livro didático. Nesse sentido o REELP apresenta-se novamente como uma agência de formação, porque possibilita a reflexão sobre as práticas docentes e uma mudança no desenvolvimento do trabalho.

Romper com a cultura escolar não é uma tarefa simples. Somente uma sólida formação inicial e/ou continuada do professor pode possibilitar as transformações. No entanto, como já anunciamos, as mudanças que se fizeram possíveis, segundo as professoras entrevistadas, foram parciais, pois, como veremos a seguir, não houve uma mudança significativa no modo como elas concebem o que é escrita.