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2.1 “A NOVA VELHA HISTÓRIA 16 ”

2.1.1. Surgimento do REELP

Criamos o REELP em 1996, quando estávamos começando a sentir os efeitos das reformas implantadas pelo governo Covas, que teve início em 1995. O surgimento do REELP esteve ligado à experiência que algumas professoras tiveram durante a implantação do Projeto Educacional “Escola Padrão”, da Secretaria de Educação do Estado de São Paulo17, em Santa Bárbara d’Oeste (SP), pois as condições de trabalho nesse projeto propiciaram uma reflexão sobre suas práticas pedagógicas e sobre a necessidade de uma formação continuada.

A implantação do Projeto Escola-Padrão (de 1992 a 1994) trouxe algumas inovações na organização das escolas e no trabalho dos professores, tais como:

a) o Horário de Trabalho Pedagógico (HTP), que consistia em reuniões semanais, por área, para discutir sua prática pedagógica e/ou tudo que fosse referente ao universo escolar, com a carga máxima de sete horas/aula;

b) o Centro de Informação e Criação (CIC)18, com um professor-coordenador que recebia por 20 horas/aula com o objetivo de dar suporte às atividades realizadas com os alunos e professores no uso da biblioteca, inclusive auxiliando o

17 Decreto nº 34.035, de 22/10/1991. O Projeto “Escola Padrão” – na gestão do governador Luis Antonio

Fleury Filho – seria implantado de forma gradativa, portanto somente algumas escolas tiveram esse projeto executado.

Coordenador por área no processo de capacitação e autocapacitação dos docentes19;

c) o Regime de Dedicação Plena e Exclusiva (RDPE)20, com um acréscimo de 30% no salário do professor que aderisse a ele;

d) o Coordenador Pedagógico por área, com 5% do total das aulas semanais destinadas para que os Coordenadores preparassem o material para ser discutido no HTP;

e) uma redução no número de aulas na jornada dos professores do segundo ciclo do ensino fundamental (de 5ª a 8ª série) e do médio, que podiam ministrar o máximo de 28 horas/aula por semana. É o que dispõe a Resolução SE nº 288, de 11/12/1991, que trata das jornadas de trabalho docente e traz como síntese o quadro a seguir:

19 Inciso III da Resolução SE nº 243, de 29/10/1992. 20 Resolução SE nº 26, de 07/02/1992.

Quadro 1: Tabela de constituição de jornada docente do projeto “Escola Padrão”

Horas-atividade Na escola

H.T.P

Local livre Carga horária jornada e

carga suplementar Hora-aula 13% 20% 4 5 6 7 8 9 10 11 12 13 14 15 16 17 18 19 20 21 22 23 24 25 26 27 28 29 30 31 32 33 34 35 36 37 38 39 40 41 42 43 44 2 3 4 5 5 6 7 8 8 8 9 10 11 12 12 13 13 14 15 15 16 17 18 18 18 19 20 21 22 22 23 23 24 25 25 26 25 26 27 28 28 1 1 1 1 1 1 1 1 2 2 2 2 2 2 2 2 3 3 3 3 3 3 3 4 4 4 4 4 4 4 4 5 5 5 5 5 6+1 6+1 6+1 6+1 6+1 1 1 1 1 2 2 2 2 2 3 3 3 3 3 4 4 4 4 4 5 5 5 5 5 6 6 6 6 6 7 7 7 7 7 8 8 8 8 8 9 9

A primeira coluna representa a soma total da carga horária que deve ser cumprida semanalmente, até o limite de 44 horas-aula, incluindo aí, os HTPs na escola, as horas- atividade em local livre e o número de aulas que o professor teria em sala aula, dependendo da jornada a que ele tinha direito. Havia duas jornadas de trabalho: uma de 25 horas/aula (diurno) e a outra de 20 horas/aula (noturno), mais a carga suplementar, respeitando o limite máximo de 28 horas-aula. Se o professor pegasse uma jornada completa de trabalho docente, no período noturno, isto é, 20 horas-aula, poderia acrescentar mais 8 horas-aula de

carga suplementar, deveria cumprir 7 HTPs na escola e receberia por mais 9 horas- atividade em local livre, totalizando 44 horas-aula.

Para nós, as professoras que viríamos a ser as fundadoras do REELP, a partir dessas condições de trabalho e do fato de estarmos em uma escola em que a direção era competente, isto é, que além de gerir com eficiência as questões burocráticas/administrativas também lidava da mesma forma com as pedagógicas, estimulando seus professores a repensarem suas práticas pedagógicas. Foi-nos possível desenvolver na escola uma reflexão mais aprofundada sobre a leitura e a produção de textos. As discussões realizadas durante os HTPs de Língua Portuguesa sobre quais seriam as práticas mais eficientes, trouxeram duas contribuições importantes para o surgimento do REELP: o sentimento de pertença a um grupo e a percepção de que precisávamos de alguém de fora do grupo para nos auxiliar em nossas discussões. O sentimento de pertença ao grupo fez com que nos autodenominássemos a “equipe de Português”, e inclusive mandássemos confeccionar camisetas com nossos nomes, o que gerou uma certa polêmica na escola.

Realizamos algumas leituras com o intuito de buscar algumas idéias e alternativas pedagógicas, tais como: a Proposta Curricular de Língua Portuguesa (publicação da Secretaria de Educação do Estado de São Paulo) e algumas outras publicações que focavam o ensino de Português e que, acreditávamos, pudessem nos auxiliar na resolução de nossas incertezas, inclusive sobre a polêmica de se ensinar ou não gramática, que era recorrente em nossas discussões. Chegamos a um impasse: parece que havíamos esgotado no grupo as discussões sobre ensino de língua; no entanto, sentíamos que precisávamos estudar mais sobre o assunto.

O Projeto “Escola Padrão” foi interrompido em 1995, devido à mudança no governo do Estado. Houve uma reforma no sistema de ensino. Alguns benefícios da “Escola Padrão” foram mantidos e ampliados para toda a rede, como os HTPs e os Coordenadores, porém com uma redução no número de horas/aula destinadas a esses fins. A Coordenação passou a ser por período, diurno e noturno, e não mais por área; com isso as horas atividades na escola passaram a ser coletivas, daí o Horário de Trabalho Pedagógico Coletivo – HTPC,

com o de máximo três horas/aula.21. Portanto, houve uma alteração na tabela mostrada para que atendesse às disposições implantadas pelo governo Covas. Sendo assim, não havia mais discussão por área e sim de todas as disciplinas para discutirem os problemas da escola no geral.

Quatro professoras iniciamos uma reivindicação que culminou na criação do REELP e na nossa investidura como membros da diretoria do grupo. Sílvia, casada, duas filhas. Bacharel em Letras, com habilitação em Tradutor/Intérprete, na Faculdade Ibero Americana, em São Paulo – Capital, em 1985. Ela não possuía a licenciatura, mas a legislação permite o exercício na profissão docente. Participara como uma das líderes do Movimento de Adolescentes Cristãos – MAC, em São Paulo (Capital). Essa experiência dava suporte ao trabalho diferenciado que ela realizava na escola. Havia mudado para Santa Bárbara há pouco tempo e estava em início de carreira. Em 1999, cursou sua complementação, passando a ser licenciada para a profissão.

Rita, casada, uma filha adolescente, professora efetiva da SEE/SP. Tinha mais tempo na carreira, pois tinha se formado em Letras (licenciatura plena), em 1975, na Pontifícia Universidade Católica de Campinas/SP. Por isso e por ter nascido e crescido em Santa Bárbara, ocupou o cargo de Relações Públicas. Era a porta voz do grupo.

Marli, casada, dois filhos adolescentes. Possuía Licenciatura curta em Letras, que cursara na Universidade Metodista de Piracicaba/SP, em 1976. Somente em 1987 que começou a lecionar. Muito entusiasta das idéias do grupo, sempre foi muito incentivadora em todas as nossas realizações.

E eu, solteira (na época) e sem filhos. Com licenciatura plena em Letras pela Universidade Federal do Mato Grosso do Sul, em 1992, e também em início de carreira. Efetiva da SEE/SP. Trabalhávamos na mesma escola. E já éramos um grupo que sentia falta de nossas discussões anteriores e de palestras e/ou cursos que pudessem nos auxiliar.

Como tais eventos não estavam sendo promovidos pela Secretaria da Educação, fomos até à Diretoria Regional de Ensino de Americana (antiga Delegacia de Ensino) para reivindicar algumas palestras e/ou cursos. A Dirigente, que havia sido Diretora da escola na qual trabalhávamos, solicitou que elaborássemos um questionário, para que fosse enviado a

21 Se o professor tiver a carga máxima de 33 aulas, deverá cumprir os 3 HTPCs. No entanto, se tiver suas

todas as escolas, sobre quais seriam os interesses dos professores. Elaboramos o questionário, tabulamos os dados e, diante do resultado dessa reivindicação, foi-nos oferecido um curso de oito horas, ministrado pelo professor Valdir Heitor Barzotto, na época aluno de Doutorado em Lingüística, no Instituto de Estudos da Linguagem, na Unicamp, e membro da diretoria da Associação de Leitura do Brasil - ALB. Como havia um déficit de funcionários na Diretoria de Ensino, ficamos responsáveis pela organização do evento.

No início de 1996, eu havia assumido a função de Assistente Técnico-pedagógico (ATP) de Língua Portuguesa. Durante o planejamento dos professores, a Diretoria de Ensino organizou um encontro com todos os professores da rede estadual, por disciplina. O encontro foi realizado em duas etapas: a primeira, uma reunião com os professores e leitura da Proposta Curricular de Língua Portuguesa do 1º grau; a segunda, uma palestra, no Anfiteatro da Prefeitura de Santa Bárbara d`Oeste, com o professor Valdir Heitor Barzotto. Em ambos os encontros, tanto no curso de 1995 quanto no início de 1996, o professor Barzotto nos incentivou a criar um grupo de estudos que tivesse como finalidade, por um lado, suprir a carência, que estávamos sentindo, de oportunidades de formação continuada, e, por outro, conquistar autonomia com relação à formação condicionada pelo Estado.

Aproveitando a reunião realizada no Anfiteatro, no dia 05/03/96, entregamos uma carta aos professores fazendo um convite para formamos um grupo de estudos, na qual explicitamos os objetivos desse trabalho. Tínhamos o nome do grupo, o local onde iríamos fazer nossos encontros, a sua finalidade, como seria administrado, isto é, como iríamos captar os recursos para a realização de nossas atividades. Também já tínhamos elaborado, junto com o professor Barzotto, a lista das pessoas que viriam falar conosco durante aquele semestre. O texto do convite distribuído é o que segue abaixo22:

REELP - Reuniões para Estudos de Ensino de Língua Portuguesa

Nós, professores, estamos criando um grupo, sem fins lucrativos, que pretende viabilizar condições e oportunidades de fazer reuniões com profissionais habilitados na área de ensino de Língua Portuguesa. Intencionamos com isso solucionar e questionar alguns problemas referentes à prática pedagógica de língua materna.

O valor da taxa (10,00 – dez reais) é referente ao pagamento dos honorários do profissional.

Nossa primeira reunião será realizada em Santa Bárbara d`Oeste, no CAIC Santa Rita, nos dias 23 e 30/03, das 8h às 12h.

A professora que ficou responsável por fazer o convite foi Sílvia, uma das professoras envolvidas na organização do grupo desde o início, que passou a ser a Presidente do REELP. Sempre tivemos muito cuidado para que nossas atividades não fossem vinculadas ou confundidas com as da SEE/SP, pois em geral os professores têm uma visão negativa desses eventos. A maioria não acredita que tais cursos promovidos pela SEE/SP tragam algum benefício para a sua prática.

Nessa reunião, três professoras passaram a fazer parte da diretoria provisória do grupo. Cristiane, solteira (na época) e sem filhos, tinha licenciatura plena em Letras, em 1993, pela Pontifícia Universidade Católica de Campinas/SP, e estava em início de carreira. Jaldenice, casada e sem filhos (na época), tinha licenciatura plena em Letras, em 1992, pela Universidade Metodista de Piracicaba/SP. Também estava em início de carreira. Anna Teresa, casada, um casal de filhos pequenos, era formada em Letras (licenciatura plena), em 1979, pela Faculdade de Filosofia Ciências e Letras de São José do Rio Pardo/ SP, e efetiva na SEE/SP. Já tinha 16 anos de carreira. As três haviam cursado algumas disciplinas como aluna especial na Pós-graduação do IEL/Unicamp.

O fato de sermos casadas ou solteiras, com filhos ou sem, efetivas ou ACTs23 não alterava nossa disposição para levarmos em frente a idéia de formar um grupo de estudos que se autogerenciasse. Não havia a desculpa de que não dispúnhamos de tempo para realizar as tarefas que surgiram com a criação do REELP. De fato, não tínhamos muito tempo disponível, por isso muitas vezes as reuniões dos membros da diretoria foram aos domingos. Não havia um sentimento de acomodação, pois mesmo as efetivas e com mais tempo de carreira partilhavam com as iniciantes as dúvidas e incertezas próprias da profissão docente.

Para a realização dos encontros, procuramos um local que não fosse da rede estadual para não vincularmos o nome do grupo com o da escola dos professores que estavam à frente da organização do REELP. Visávamos formar um grupo independente, para não corrermos o risco de os professores dizerem que não iriam participar das atividades porque eram os professores de tal escola que as realizavam, já que a maior parte do grupo trabalhava na mesma escola. Como dissemos, algumas escolas, mesmo sendo da mesma

rede, do mesmo bairro ou cidade, têm rixas e desentendimentos. Conseguimos, para as nossas reuniões, uma sala de aula em uma escola da rede municipal de Santa Bárbara d`Oeste. Durante quatro anos, realizamos nossas atividades nessa escola, mesmo havendo mudança na administração da cidade.

Para a realização de nosso trabalho contamos com a imprescindível presença do professor Barzotto, que além de nos incentivar e nos orientar na criação e sobrevivência do grupo, também, sempre que podia, participava de algumas reuniões da diretoria. Fez-se presente até quando ficou um ano na França estudando, por meio de carta, fazia-nos refletir sobre a importância de fazermos o REELP. Quando retornou ao Brasil, retomou o diálogo com o grupo. Sempre que se fazia necessário, chamava a nossa atenção para aspectos que haviam passados despercebidos na condução de nosso trabalho. Quando começávamos a nos queixar ele apontava que não adiantava só lamentar. Aliás, um dos primeiros livros indicados por Barzotto, logo em nossos primeiros encontros em 1995, foi “A mulher escondida na professora”, de Alicia Fernández, psicopedagoga argentina. A obra trata, entre outras coisas, das queixas da professora, classificando-as em dois tipos: a queixa-lamento e a queixa-reclamo. A primeira é aquela que, ao ser ouvida, faz com que o ouvinte apenas confirme o que está ouvindo. Por exemplo: ao ouvir uma queixa como: “a nossa vida de professora é dura, pois além de dar muitas aulas, com classes superlotadas, às vezes em várias escolas, ainda temos que levar aquelas pilhas de provas e redações para corrigir em casa”, podemos apenas nos condoer de tal sofrimento e dizer: é verdade. Já a segunda, a queixa-reclamo, demanda uma resposta reflexiva: tanto quem fala como quem escuta pode chegar mais facilmente a uma reflexão crítica. Por exemplo: ao ouvir uma queixa como: “eu não sei mais o que fazer com aqueles alunos que não querem escrever”, podemos pensar em várias alternativas para resolvermos o problema. Ao nos fazer entrar em contato com bibliografias relevantes e nos auxiliar a encontrar meios para sairmos de nossas queixas-lamento o professor Barzotto criou as condições para iniciarmos nossa reflexão, nos incentivou a pensarmos com autonomia e a trilharmos nosso próprio caminho. E o caminho que trilhamos é o que segue abaixo, ou pelo menos, uma versão dele.