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Parte II: A gramática do léxico

Capítulo 4. A gramática do léxico como organização dinâmica interna

4.2 Organização em paradigmas mentais

4.2.2 Alomorfia

A alomorfia (Matthews 1974: 107; Luschützky 2000) é um dos fenómenos que comprovam a organização em rede do léxico mental, as constelações em paradigmas e o carácter multiforme de cada unidade lexical.

A alomorfia apresenta-se como a variação formal de um morfema, seja este lexical ou gramatical. A alomorfia evidencia a interface que se opera dentro do léxico com a fonologia e com a sintaxe (chamemos-lhe aqui alomorfia extralexema), mas também da interface destas estruturas enquanto componentes internas à morfologia (chamemos-lhe aqui alomorfia intralexema). A alomorfia de gramemas, como a que se verifica no morfema de plural -s, está dependente da interface entre a fonologia e a sintaxe, ao nível do eixo sintagmático (alomorfia extralexema). A alomorfia de lexemas, em que o radical de uma base apresenta variações formais, ocorre dentro do domínio da genolexia, se tomarmos como cenário de trabalho a morfologia lexicalista (alomorfia intralexema).

Focar-nos-emos na alomorfia intralexema, ou seja, naquela que afeta as bases e os afixos derivacionais, operando dentro da própria morfologia e não decorrendo da co- textualização.

Pode colocar-se a seguinte questão: Como é possível que uma unidade que é tradicionalmente encarada como a união entre um significante e um significado possa possuir mais do que um significante, sem que se quebre essa unidade?

Depois dos vários tópicos explicitados ao longo deste livro, torna-se evidente que o léxico mental é caracterizado pela propriedade de associar paradigmaticamente várias formas – para além de vários semantismos e possibilidades de realização sintática – em torno de uma mesma unidade lexical.

Em termos de alomorfia dos operadores de derivação, quer sejam bases, quer sejam afixos, a seleção do alomorfe está dependente das condicionantes morfofonológicas envolvidas na formação do produto derivacional. Por exemplo, o morfema -VEL- possui dois alomorfes – -vel e -bil-.

O primeiro alomorfe é ativado quando o morfema possui um carácter ativo na derivação, ou seja, quando é esse mesmo morfema a funcionar como operador na geração do produto. Acontece assim na formação de adjetivos deverbais como palpável,

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O segundo está disponível na base quando o morfema em causa não possui carácter derivacional naquele lexema. Assim, para a geração de nomes de qualidade através do sufixo -idade, podem ocorrer como bases adjetivos em -vel (e.g.

comparabilidade, desmontabilidade, palpabilidade). Este sufixo -vel não está ativo

nestas formações, no sentido de não reservar para si a faculdade de derivação do próprio nome de qualidade, pois faz parte da base.

Este é um padrão que se pode inferir em relação à seleção do alomorfe. Outro padrão poderá ser a posição do morfema na palavra. Se o morfema ocorrer no fim da palavra, excetuada a relação com os morfemas de flexão, o alomorfe selecionado será -

vel; se ocorrer no meio da palavra, o alomorfe será -bil-. Um padrão não exclui o outro

padrão. Quer isto dizer que a mente pode construir vários padrões e reconhecê-los, o que tornará o esquema de uma unidade lexical ainda mais coeso.

Outra questão que se levanta em relação à alomorfia prende-se com o carácter latino vs. autóctone do alomorfe. Os alomorfes de -vel focados ilustram esta questão, assim como outros fenómenos de alomorfia, como aqueles que se evidenciam nos pares

deceção/dececionar, pão/panificar, são/sanificar e que decorrem de fatores diacrónicos

de teor fonético-fonológico.

Assim, poderá questionar-se se é passível de explicação sincrónica a formação dos verbos dececionar, panificar ou sanificar, tendo em conta que as bases destes verbos emergem sob uma roupagem fonológica anacrónica, correspondente a formas latinas que contêm a nasal intervocálica, em contraste com o resultado fonético advindo da síncope desse segmento nasal.

O problema reside no seguinte: se as formas com a nasal intervocálica não têm carácter autóctone, como pode o falante gerar palavras com essas formas? Significa que essas palavras não são construídas em português? Alguns cuidados têm que se ter nestas considerações. As formas com a consoante nasal (dececion-, pan-, san-) não são coincidentes com as formas citacionais dos lexemas de que são alomorfes (deceção,

pão, são) e não estão disponíveis para a flexão desses lexemas (*dececiones, *panes,

*sanos).

Contudo, tal não implica que essas formas (dececion-, pan-, san-) não estejam disponíveis na mente do falante enquanto material para a morfologia derivacional. A pesquisa da história de lexemas como dececionar, panificar ou sanificar demonstra que estes lexemas não existiam no latim, o que equivale a negar o seu eventual carácter

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herdado em português. Como tal, estas palavras tiveram que ser geradas em português, excluída igualmente a hipótese de empréstimo.

À luz da perspetiva que encara o léxico como uma interface, como um domínio dinâmico e fluido, a alomorfia é presenteada com uma explicação gerativa. Assim, concebe-se que para o item lexical DECEÇÃO estão disponíveis mentalmente duas

estruturas fonológicas possíveis. Uma das estruturas é ativada nas correspondências com a estrutura sintática Nome, equivalente ao nome deceção ocorrente em sintagmas nominais. A outra estrutura sofre ativação nas correspondências com a base morfológica Nome, não atualizada na sintaxe enquanto tal, ou seja, quando o Nome funciona como base de outra unidade lexical, tal como um Verbo. Como pode colher-se em Rodrigues (2008: 131), a propósito de verbos como ambicionar, solucionar, colecionar,

emocionar:

«Na concepção que enforma a alomorfia aqui defendida, as bases nominais que estão na origem destes verbos não são os substantivos latinos, mas sim os alomorfes com formatação identificável como mais próxima do latim, mas não deste exclusiva, visto emergirem em lexemas construídos em português. A operação que labora nestas construções é a conversão denominal, pelo que deverá ser a responsável pela activação deste formato do radical.».

A alomorfia é explicável através da hipótese de reconhecimento de padrões operável pelo léxico e que é em simultâneo construtor deste.