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Parte II: A gramática do léxico

Capítulo 6. Constrangimentos e compatibilidades entre afixos e bases

6.1. Dados empíricos sobre o léxico dinâmico e os constrangimentos na formação de palavras

6.1.2 Restrições à geração das palavras que atuam sobre a seleção afixal

6.1.2.2 Restrições de subpadrões

Para além das restrições gerais categoriais, existem restrições mais específicas, que podemos designar por “subpadrões”, que obedecem a diversos níveis e estruturas da linguagem. São elas de tipo fonológico, etimológico, semântico, argumental ou paralelo. Equivalem ao que Rainer (2005: 341) designa por restrições específicas de afixos.

6.1.2.2.1 Restrições fonológicas

Perante as formas *jacareizar e crocodilizar, os falantes rejeitam a primeira. O motivo que está por detrás desta opção localiza-se na estrutura fonológica. O subpadrão que permite a geração de verbos com o sufixo -iz- rejeita bases com acentuação oxítona. Bauer, Lieber & Plag (2013:573), apontam que -ise, na formação de verbos do inglês, requere que a sílaba precedente seja não-acentuada.

Também em português, não são gramaticais formas como romãizar, (vs.

bananizar), *caféizar (vs. xaropizar), *rapéizar (vs. tabaquizar), na medida em que a

sílaba finalizante da base é acentuada. A formação de avaliativos nominais serve-se do interfixo -z- para resolver este problema fonológico (Rio-Torto 2013: §8.3). Contudo, a interfixação não é muito frequente ou sistemática na formação de verbos. Pereira (2013: 152) anota o caso de padejar, com base em pá, em que o interfixo -d- desfaz o problema do hiato entre pá e -ej-.

Também a haplologia, omissão de uma sílaba que seria igual a outra constante numa construção, é apontada por Rainer (2005) como exemplo de restrição fonológica.

14 Para além da Morfologia Distribuída, também o modelo exo-skeletal de Borer (2003) e a Morfologia

Assimétrica de DiSciullo (2005) negam a marcação categorial sintática dos radicais. No entanto, sem qualquer marcação, não é explicável que, por exemplo, o sufixo -ção não se agrega a qualquer radical, mas apenas a verbos ou que o prefixo en- não se agregue a qualquer radical, mas somente a nomes e a adjetivos. A hipótese de Borer (2003) não é solidamente suportada e cai na tautologia, ao estipular que, por exemplo, um lexema como destruição resulta da operação merge entre afixo e base não marcada categorialmente. É a fusão (merge) que faz que o afixo coarte o radical a ser um verbo. Lieber (2006) desconstrói habilmente estes modelos e, relativamente a este último aspeto de Borer, questiona o motivo pelo qual afixos como -ation não coagem um radical como disc a ser um verbo.

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O autor aponta o exemplo de feminise, ‘feminizar’, por *femininise, ‘*femininizar’. Contudo, neste exemplo podemos observar que a base pode ser o alomorfe culto da forma fêmea, femin-, tal como ocorre em hominizar, cuja base é o alomorfe culto de

homem homin-. Por outro lado, ocorrem meninizar (google) e destaninizar, em que a

repetição da sílaba não obstaculizou a formação das palavras.

6.1.2.2.2 Restrições semânticas

No caso de *desrasgar, a não aceitação desta forma prende-se com a incompatibilidade semântica entre a carga semântica do prefixo des- e o semantismo da base. O prefixo des- implica semanticamente o traço de ‘reversibilidade’ (Rio-Torto 2013: 357-358). O evento designado pela base verbal rasgar não admite reversão.

São também de caráter semântico as restrições que condicionam que um afixo como -edo se anexe a nomes que designam entidades concretas e não abstratas na formação de nomes de quantidade (e.g. folhedo, arvoredo vs. *teoriedo, *fantasiedo, *favoredo).

6.1.2.2.3 Restrições morfológicas

Restrições de ordem morfológica impedem a formação de advérbios em -mente a partir da forma masculina da base, como ocorreria em *belicosomente. Em termos estruturais, a restrição morfológica que carateriza a formação de advérbios em -mente é estritamente morfológica, ou seja, depende do formato morfológico dos elementos da formação e não de outras estruturas implicadas nesta (semântica, argumental, por exemplo), como veremos posteriormente.

Aqui pode ser inserida a condição designada por complexity based ordering (Plag 2002, Hay 2002, Hay & Plag 2004). De acordo com Hay (2002: 528),

«an affix that can be easily parsed out should not occur inside an affix that cannot.».

Esta condição explica restrições propostas pela fonologia lexical ao nível da ordenação de níveis (cf. Siegel 1979). Esta condição aplica-se sobretudo à ordem dos

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afixos, que não focaremos aqui (Vejam-se Plag (2002); Plag & Baayen (2009); Aronoff & Fuhrop (2002); Manova & Aronoff (2010); Saarinen & Hay (2014); vários artigos de

Morphology 20). Ressalve-se, no entanto, que a ordenação de afixos por níveis ou strata, proposta por Siegel (1979) e integrada na Fonologia lexical de Kiparsky (1982),

está sujeita a demasiadas exceções empíricas, pelo que foi abandonada (Goldsmith 1990) ou profundamente revista (Giegerich 1999).15

6.1.2.2.4 Restrições argumentais

O impedimento de uma forma como *transpiraria assenta em motivações argumentais. Propositadamente colocámos lado a lado *transpiraria e destilaria. As duas bases verbais (transpirar e destilar) pertencem ao mesmo domínio semântico de ‘expelir gotas’. No entanto, as estruturas argumentais desses verbos são divergentes. Enquanto base de destilaria, destilar é um verbo causativo, enquanto na base de *transpiraria estaria transpirar como verbo inacusativo.16 Aquilo que se verifica é que na formação de nomes em -aria não ocorrem bases verbais inacusativas (Rodrigues 2008). Porque desobedece a este subpadrão, a forma *transpiraria é rejeitada.

Note-se que, ainda que o verbo transpirar não obedeça ao critério vulgarmente apontado para a identificação de verbos inacusativos, uma vez que não admite o particípio absoluto (*Transpirado o Rui, foi tomar banho.), é classificável como inacusativo tendo em conta que admite uma construção passiva com verbo estar (O Rui

está transpirado.), o que o localiza na família das construções inacusativas (cf. Duarte

2003).

Observe-se que tal construção se encontra excluída dos verbos inergativos (*O

Rui está rido. *O Rui está dançado.)

15 A proposta da ordenação de afixos por strata implicava que, por exemplo, em inglês, os sufixos [+

Latinos] ocorressem dentro de afixos [+ nativos], como em persuas-ive-ness, e não no seu exterior, como na forma agramatical care-less-ity. No entanto, esta regra é demasiado restritiva e demasiado permissiva em simultâneo. São permitidas formas em que afixos [+ nativos] ocorrem dentro de morfemas [+ latinos] ([[un-grammatical]-ity]) (exemplo de Rainer 2005: 341. O elemento un- é [+ nativo] e ocorre dentro de -

ity que é [+latino]). Por outro lado, a regra é sobregerativa, pois há impossibilidades empíricas que a ela

desobedecem.

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O verbo destilar é um verbo basicamente transitivo causativo. A construção inacusativa é derivada da primeira. O verbo transpirar é basicamente inacusativo, sendo a construção transitiva derivada da inacusativa. Em termos de formação de palavras, é a construção básica que sói ocorrer como base de derivação (Rodrigues 2009: 96-97). Para a relação entre as construções básica e derivada, vejam-se Levin & Rappaport Hovav (1995: 83) e Davis & Demirdache (2000: 97).

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6.1.2.2.5 Restrições estratais/etimológicas

Diante de *shrekizão e shrekização, os falantes optam pela segunda e rejeitam a primeira. Por detrás desta escolha está o caráter [+Latino] do sufixo -iz- (presente na base shrequizar) em confronto com o caráter [-Latino] do sufixo -ão. Na verdade, o sufixo nominalizador -ão não se anexa a bases marcadas como [+ Latinas] (Rodrigues 2008: 151).

Por [+ Latino] entende-se o caráter de um morfema marcado como provindo das línguas grega e latina (Spencer 1991: 188; Plag 2003: 84-85) através de fenómenos de importação (vulgarmente designados como empréstimos). As formas [+ Latinas] apresentam caráter morfofonológico próprio do Latim/Grego ou caráter pragmático erudito. As formas nativas, mesmo que provenientes do latim, apresentam uma estrutura morfofonológica própria do sistema morfofonológico do português.

Em termos sumários, as formas nativas são maioritariamente paroxítonas, (lindo,

limpo),enquanto as formas [+ Latinas] podem ser proparoxítonas (límpido). As formas

[+ nativas] podem ter ditongos decrescentes (armeiro), enquanto as formas [+ Latinas] têm no mesmo lugar do ditongo nativo uma vogal acentuada e duas vogais na sílaba seguinte (armário). As formas [+Nativas] mostram consoantes oclusivas vozeadas na posição intervocálica (abelha), no mesmo lugar em que as formas [+ Latinas] apresentam oclusivas não vozeadas (apicultor). Formas [+Latinas] apresentam /n/ intervocálico (lunático), enquanto nas formas [+ nativas] esse segmento sincopou (lua) (Rodrigues 2009: 80-81). Para um elenco de diferenças entre formas nativas e latinas do inglês, veja-se Plag (2003: 85).

6.1.2.2.6 Restrições paralelas

Para o fim, deixámos o confronto entre carnavalização e *carnavalizamento. À superfície, a restrição que impede a segunda forma é de caráter morfológico, ou seja, os verbos em -iz- selecionam como sufixo nominalizador o sufixo -ção e não o sufixo -

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motivação superficial de tipo morfológico. Como anotado em Rodrigues (2014)17, o sufixo -iz- possui um traço semântico de causatividade que encerra uma cadeia de evento causativa constituída por três subeventos. O sufixo -ção é compatível com essa cadeia como um todo. Por seu lado, o sufixo -mento não é compatível com essa cadeia como um todo, mas com o subevento n.º 2. Voltaremos a esta questão posteriormente.

Que a atração entre -ção e -iz- não é apenas fonológica é visível pelo facto de verbos terminados fonologicamente em /izaɾ/ não coincidente com os morfemas -iz- (+a+r) não serem atraídos pelo nominalizador -ção (Quadro 6). Assim, analisar não forma *analisação. Não faz sentido recorrer ao argumento do bloqueio por sinonímia, porque formas como hidrolisação, catalisação são construídas, não obstante a existência de hidrólise, catálise, etc.

Verbo Deverbal em -ção Outro nome correlato do verbo

analisar - análise

paralisar paralisação paralisia

cisar - cisão

precisar - Precisão [de preciso]

incisar - incisão

narcisar - -

excisar - excisão

alisar - alisamento

dialisar - diálise

catalisar catalisação catálise hidrolisar hidrolisação hidrólise

enraizar - enraizamento

Quadro 6. Verbos terminados fonologicamente em /izaɾ/ e seus correlatos nominais

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Em Rodrigues (2008: 293), anotava-se que o sufixo -iz- possui carga semântica de modelização do evento como de ‘efetuação’.

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