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Os fundamentos da morfologia lexicalista: o lexicalismo

Parte I: Em volta do léxico: teorizações

Capítulo 3. O lugar da morfologia derivacional nas estruturas da

3.1 A formação de palavras como uma dimensão dinâmica da linguagem

3.1.2 Os fundamentos da morfologia lexicalista: o lexicalismo

Se a gramática generativa da década de 50 e 60 e parte da de 70 se ocupa maiormente de estudos sintáticos e fonológicos, a partir de meados de 1970, começam a emergir trabalhos de morfologia. Veja-se Scalise (2005: 148-149), para esta visão da história da linguística. Os trabalhos no âmbito da morfologia brotam de um princípio

Sintaxe

Formação de palavras

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teórico – o lexicalismo – que encontra raízes em Chomsky (1970) e Halle (1973) e que é expandido em textos fulcrais, que surgem pouco depois dos antecessores, como Siegel ([1974] 1979), Jackendoff (1975) e, sobretudo, Aronoff (1976).

O termo lexicalismo designa o princípio teórico postulado pela gramática gerativa moderna, posterior ao transformacionalismo, segundo o qual os processos de formação de palavras são explicáveis através de regras lexicais. Estas regras lexicais não se confundem com as regras sintáticas, pois são autónomas em relação a elas. O domínio onde operam essas regras lexicais é o léxico, que é mantido como um domínio anterior à sintaxe (Scalise & Guevara 2005: 147).

Chomsky (1970) propõe que as palavras complexas têm assento no léxico e não são explicáveis através de transformações sintáticas, possuindo, pois, autonomia em relação a estas. Neste sentido, as transformações sintáticas não são detentoras de poder de intervenção (apagar, inserir, permutar, no sentido de alterar a ordem, substituir) sobre unidades mais pequenas do que a palavra. Como consequência, a mesma entrada no léxico serve um derivante e os seus derivados, uma vez que a entrada não se encontra marcada quanto à categoria sintática.

De acordo com esta hipótese, cabe a regras morfológicas idiossincráticas a determinação das formas fonológicas dos itens lexicais, quando estes se inserem na sintaxe. Assim, no léxico residirá uma entrada, como refuse, que não se encontra marcada nem como verbo, nem como nome. As formas refusal (N) e refuse (V) resultam da aplicação das mencionadas regras morfológicas idiossincráticas. Para cada entrada lexical está prevista a especificação de traços co-textuais que explicitam informações atinentes à estrutura argumental dos lexemas. Como explica Chomsky (1970: 21):

«We can enter refuse in the lexicon as strict subcategorization features, which is free with respect to the categorial features [noun] and [verb]. Fairly idiosyncratic morphological rules will determine the phonological form of refuse, destroy, etc., when these items appear in the noun position.».

Numerosas desvantagens são apontáveis a esta proposta. Desde logo, é visível a inoperância da partilha da mesma entrada lexical por itens que se revelam co- textualmente díspares, quer na sua atualização argumental, quer na sua amplitude

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semântica. Se imaginarmos um verbo como moer e um deverbal como moagem, observamos que a co-textualização do derivado não acarreta simplesmente diferenças advindas da categoria nominal ou verbal, tais como a necessidade de haver uma preposição a mediar o nome e os seus argumentos. Na verdade, o semantismo do nome encaixa várias significações, explicáveis gerativamente, assim como consequências sintáticas paralelas, não partilhadas com a base verbal.

À incompletude da proposta de Chomsky responde a teorização de Jackendoff (1975). Nesse trabalho, procuram obviar-se as desvantagens da proposta anterior através da separação das entradas lexicais de derivante e derivado. Enquanto em Chomsky (1970) existia apenas uma entrada lexical de que se partiria para a realização sintática quer do verbo, quer do nome, em Jackendoff (1975) cada um dos itens encontra sede lexical numa entrada específica. Esta inovação permite manter a especificidade de cada item lexical. Ambas as entradas se encontram ligadas através de regras de redundância, que manipulam as informações partilhadas pelos dois itens.

De ambas as propostas, contudo, está ausente a especificação da direcionalidade entre derivante e derivado, por se acreditar tratar-se de uma questão diacrónica e não sincrónica. No entanto, a análise deste fenómeno evidencia que esta questão é do foro da sincronia e não apenas da diacronia (Rodrigues 2001).

Halle (1973) é o primeiro generativista a conceber um domínio específico para a morfologia. A assunção de Halle parte do seguinte postulado: se a gramática representa o conhecimento que o falante possui acerca da sua língua, se o falante sabe distinguir as palavras bem formadas daquelas que são mal formadas e ainda que muitas palavras resultam da composicionalidade entre morfemas e que esta obedece a uma ordem de concatenação, então deve existir na gramática um domínio autónomo que trate estes dados.

Para Halle (1973), o léxico contém itens básicos que são os morfemas. Esses morfemas, que constituem o primeiro módulo do léxico, funcionam como input às Regras de Formação de Palavras. A alimentação destas faz-se a partir de palavras ou de radicais. As Regras de Formação de Palavras, segundo módulo do léxico, geram itens complexos e potenciais, podendo alterar a categoria lexical da base e inclusivamente as suas realizações sintáticas.

Este programa é aplicável tanto à morfologia derivacional quanto à flexional, visto que a flexão manifesta o mesmo tipo de idiossincrasias e de combinações

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morfofonológicas próprias da derivação. Após o módulo das Regras de Formação de Palavras, existe o módulo do Filtro. Este tem como funcionalidades a idiossincratização de cada produto lexical, bem como a obstaculização da inserção lexical na sintaxe de itens possíveis não existentes. O Dicionário constitui a fase final do modelo. No Dicionário estão contidas todas as formas existentes, incluindo as variações de flexão de cada lexema.

Como pode observar-se, a proposta de Halle (1973) advoga um domínio específico – o léxico – para a geração de palavras, sendo que este é delineado como dinâmico e regido por regras próprias, que não se restringem à concatenação de itens, mas estendem-se a níveis de abstração consideráveis. Funda-se neste trabalho a distinção entre sintaxe e morfologia, no âmbito da gramática generativa. Muitas críticas, no entanto, foram formuladas em relação a este trabalho, como de resto a qualquer um, pois qualquer explicação se dissolve em incompletude se visualizada sob um escopo divergente. No entanto, são exatamente essas incompletudes que fazem progredir a ciência.

Uma das respostas a Halle (1973) é o trabalho de Aronoff (1976) situado extensivamente no domínio da morfologia. Através da cunhagem de uma proposta alcunhada como word-based morphology, Aronoff (1976) destaca-se de Halle (1973) ao estabelecer que apenas as palavras, e não os morfemas, fazem parte do input das Regras de Formação de Palavras. Colhendo as palavras de Aronoff (1976: 21),

«All regular word-formation processes are word-based. A new word if formed by applying a regular rule to a single already existing word. Both the new word and the existing one are members of major lexical categories.».

Para esta exclusão dos morfemas como bases dos processos genolexicais contribui a análise das chamadas berry words. Estas e todas as palavras que não são explicáveis através de processos regulares encontram-se inscritas no léxico, mas não são geráveis nele. Ademais, o léxico não contém os elementos afixais, na medida em que estes não são descritos como itens lexicais, mas antes como constituintes das próprias regras.

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Aronoff (1976) estabelece, ainda, os princípios operatórios dessas Regras, tais como a sua produtividade e as restrições que impedem uma sobregeração de produtos lexicais. Para Aronoff (1976), as Regras de Formação de Palavras têm acesso a qualquer género de informação relacionado com cada item lexical, nomeadamente fonológica, morfológica, categorial e semântica. Essas regras laboram a um nível formal e a um nível semântico, gerando novas palavras, mas também analisando as palavras já existentes. Através destas regras, é possível alterar profundamente as características da palavra base (categorização, traços da estrutura argumental, traços semânticos, entre outros).

Para evitar a sobregeração de produtos, Aronoff concebe restrições específicas de cada língua que atingem a categoria sintática, a fonologia, a morfologia, a semântica ou a dimensão estratal das bases. Concebe ainda o mecanismo de bloqueio, que impede a formação de sinónimos. A par das restrições específicas de cada língua, o autor prevê um conjunto de condições que se situam ao nível da Gramática Universal, tais como a

Unitary Base Hypothesis, a Binary Branching Hypothesis e o No Phrase constraint (cf.

4.1.2.3.3 deste volume). Por tudo isto, Aronoff (1976) revelou-se um trabalho central para o lexicalismo.

Na esteira deste modelo, desenvolveram-se trabalhos como os de Booij (1977), Allen (1978), Pesetsky (1979), Lieber (1980), Williams (1981), Anderson (1982), Selkirk (1982), Scalise (1984) ou Corbin (1987), entre outros. Para o português, destaca-se o trabalho inovador de Rio-Torto (1993). Muitas modificações foram sendo impressas ao modelo lexicalista original. No entanto, em todos eles se prevê o mesmo princípio de funcionamento da linguagem: a morfologia é um domínio autónomo da sintaxe, regido por regras particulares.

Como é evidente, a reformulação da morfologia derivacional é arada em paralelo com o processo de revisão da noção de léxico, já focado no capítulo 2. Do léxico como listagem de pares irregulares de som-significado, próprio do generativismo standard e do distribucionalismo (Recorde-se Bloomfield (1933: 274):

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passa-se ao léxico como domínio onde operam regras autónomas em relação às regras da sintaxe.

Note-se, contudo, que o ponto de chegada deste percurso não é destino para todos os generativistas. Ainda que Chomsky (1970) tenha introduzido inovações no seu modelo em direção ao lexicalismo, na verdade, Chomsky sustenta até à atualidade a noção de léxico como listagem idiossincrática, que se opõe à gramática (Recorde-se o que foi explanado na secção 2.1 deste volume.). O lexicalismo de Chomsky não arvora a geratividade da morfologia, como domínio em que laboram regras, antes sustém que existe um domínio diferente da sintaxe, contrário ao carácter regular e gerativo desta, onde residem as entradas que são comuns quer às palavras básicas, quer às suas derivadas.

O postulado de Chomsky (1970) de que não cabe à sintaxe a derivação de palavras semanticamente irregulares deu origem a uma bifurcação no percurso do lexicalismo. Essa bifurcação foi lavrada por duas soluções teóricas:

a) a Strong Lexicalism Hypothesis e

b) a Weak Lexicalism Hypothesis.

A versão forte do lexicalismo advoga que tanto a morfologia derivacional como a flexional são construídas no léxico, em fase anterior à sintaxe. Tendo fonte na proposta de Halle (1973), o lexicalismo forte é adotado por correntes linguísticas relevantes que se dedicam ao estudo da sintaxe, como a Lexical-Functional Grammar, a

Generalized Phrase Structure Grammar, a Head-Driven Phrase Structure Grammar.

Qual é o pressuposto do lexicalismo forte? Aquele que evidencia que a interioridade das palavras não pode ser modificada pelas regras sintáticas. Este pressuposto recebe a designação de Principle of Lexical Integrity. O lexicalismo forte acarreta a desvantagem do isolamento do léxico em relação às outras componentes da linguagem. O ponto de contacto do léxico com a sintaxe dá-se na inserção lexical. Este processo determina que os nós das estruturas sintáticas sejam preenchidos por palavras. Até o Programa Minimalista de Chomsky (1995) é lexicalista forte, na medida em que teoriza que o item lexical é inserido na frase com as suas informações semântica e fonológica. No entanto, estes dois níveis de informação serão apenas interpretados pelas respetivas componentes, após o tratamento sintático (cf. secção 2.2.3 deste livro).

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Esta desvantagem é colmatada pelo lexicalismo fraco, que defende que a morfologia derivacional é tratada no léxico, enquanto a morfologia flexional é tratada na sintaxe, já que é evidente a interação entre a flexão e a sintaxe. São defensores desta proposta Aronoff (1976), Scalise (1984) e Anderson (1982, 1992).