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Perspetivas orientadas para os processos (Regras de Formação de Palavras)

Parte I: Em volta do léxico: teorizações

Capítulo 3. O lugar da morfologia derivacional nas estruturas da

3.1 A formação de palavras como uma dimensão dinâmica da linguagem

3.1.4 Como um domínio de intervenção das diferentes estruturas da linguagem

3.1.4.1. Perspetivas orientadas para os processos (Regras de Formação de Palavras)

A herança dos modelos seminais da morfologia lexicalista (Halle 1973; Aronoff 1976) é de cunho orientado para os processos, ou seja, para a uniformidade das bases que constituem a componente base das Regras de Formação de Palavras. Observaremos em seguida dois dos principais modelos subsequentes desses trabalhos primordiais.

3.1.4.1.1Modelo estratificado e associativo (Corbin 1987; 1991)

Um dos modelos mais relevantes no seio da morfologia lexicalista é o de Corbin (1987; 1991). A sua relevância advém da coerência que caracteriza um modelo dotado de capacidade de descrição sincrónica dos mecanismos regulares e semi-regulares genolexicais de uma língua. Corbin aplica o seu modelo teórico à análise do francês. No entanto, a aplicação do modelo revela-se extensível a qualquer língua.

Partindo do pressuposto da autonomia do léxico inerente às visões lexicalistas (já observadas nas secções 3.1.2 e 3.1.3 deste volume), Corbin estipula uma organização estratificada do mesmo, sendo de tipo associativo os processos que geram as suas unidades. Para Corbin, o léxico não é apenas o armazém dos itens lexicais, mas também a sede de geração lexical. Neste sentido, Corbin (1987) desenha o léxico como constituído por várias componentes. Essas componentes são a componente de base, a componente derivacional e a componente pós-derivacional e/ou convencional. A interação entre as componentes é responsável pela produção das palavras. Cada componente representa uma fase diferente da geração das unidades lexicais.

Uma vantagem deste modelo enraíza-se na negação do pressuposto da word-

based morphology, que preconiza que apenas as palavras, e não os morfemas inferiores

à palavra, têm lugar no léxico. Esta negação não esbarra, no entanto, nas conceptualizações redutoras da morpheme-based morphology, uma vez que Corbin não reduz a formação de palavras a meros processos concatenatórios, como advogado pelas teorias Item and arrangement (cf. secção 3.1.3 deste livro). Outra vantagem do modelo de Corbin consiste na explicitação da distinção entre léxico potencial e léxico existente. A previsão desta distinção encontra arquitrave teórica na estratificação das componentes que descreveremos em seguida.

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A componente de base é constituída pelas unidades lexicais que são sujeitas aos processos derivacionais, assim como pelas regras ou mecanismos genolexicais de base. As unidades lexicais da componente de base correspondem não apenas a lexemas que não sejam gerados através das regras de construção de palavras, mas também a afixos (Corbin 1987: 415-416; 425-467). Assim, nessa componente, cabem palavras simples não construídas (e.g. mar, cão, azul, ver), constituintes lexicais presos (e.g. bio-, hidro-,

crio-), palavras complexas não construídas (e.g. conceber, aduzir, conduzir), palavras

resultantes de transcategorização, como adjetivos transcategorizados de particípios passados (e.g. amarelado, mumificado) e nomes conversos de infinitivos verbais (e.g.

olhar), e afixos (e.g. -ific-, -ção, -it-).

Essas entradas de base que funcionam como matéria-prima à construção de outras unidades encontram-se definidas quanto às suas estrutura fonológica, estrutura semântica, formatação categorial, estrutura argumental e traços idiossincráticos. Esses traços idiossincráticos consistem em formatações lexicais não previsíveis, ao nível formal e/ou semântico (Corbin 1987: 454; 457-458). No caso de a entrada coincidir com um afixo, encontra-se ainda especificada quanto à regra de construção de palavras na qual aquele serve como operador (Corbin 1987: 454).

Na componente derivacional residem as regras de construção de palavras específicas de uma língua. Essas regras laboram com as entradas da componente de base, dando origem às palavras potenciais. As regras de construção de palavras são definidas de acordo com a inter-relação categorial entre os itens de base e os produtos, a inter-relação semântica e com uma série de operações morfológicas que permitem a construção dos produtos (Corbin 1987: 476-486). Assim, na formação de nomina

actionis, a componente de base consiste em verbos. Estes geram nomes, através de

operadores afixais como -ção, -dura, -mento, etc., que laboram nas operações morfológicas. Uma paráfrase como ‘ação de V’ especifica a operação semântica ocorrida na geração desses nomes a partir das bases verbais, com recurso a essas operações morfológicas. As bases que servem de matéria-prima à formação em cada regra de construção de palavras detêm informação relativa às restrições categoriais e semânticas que as especificam. (Observaremos detidamente essas restrições no capítulo 6.)

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A visão oferecida por Corbin é subsumível naquelas perspetivas orientadas para o input, ou seja para os processos, ao contrário de outras, como a de Plag (1999), definível como orientada para o output, ou produtos.

A componente derivacional é responsável pela construção de palavras virtuais, regulares da língua. Uma vez que o léxico não apresenta muitas vezes esse carácter regular e previsível, o modelo de Corbin preconiza uma componente convencional (versão de 1987) ou pós-derivacional e convencional (versão de 1991).

Nesta última versão, Corbin ramifica a componente convencional desenhada na versão de 1987 nas componentes pós-derivacional e convencional. Na componente pós- derivacional operam regras de alomorfia, truncação, assim como o mecanismo de integração paradigmática. A componente derivacional, na versão de 1991, encerra um dispositivo de aplicação de idiossincrasias e um selecionador.

As regras de alomorfia e truncação da componente pós-derivacional caracterizam-se pela sua aplicação semiprevisível, em contraste com as regras abrangidas pela componente derivacional. Localiza-se neste âmbito a alomorfia -vel/-

bil- observável em amável/amabilidade, previsível/previsibilidade, etc. Quanto à

truncação, Corbin (1988: 63-76) dedica-lhe reflexão aturada a propósito dos sufixos do francês -ism, -ist, e -ique (e.g. absentéiste/absentéisme; analytisme/analytique), existentes em produtos formados por processos que já aqui equacionámos como formação cruzada (secção 3.1.3). Para o português podem aduzir-se exemplos como

britanismo/ britanista/ britânico.

A integração paradigmática revela-se como um mecanismo que permite explicar a ocorrência de sufixoides sem os quais a interpretação semântica não sairia prejudicada. Rio-Torto (1993: 121) oferece, no propósito de ilustrar este mecanismo do modelo de Corbin, o exemplo do elemento -al em antigripal. Segundo Rio-Torto,

antigripal é similar a antigripe, não sendo o sufixo -al necessário à interpretação do

produto.

Da componente pós-derivacional ficam excluídas as regras de semântica não estritamente lexicais, como aquelas que operam metonimicamente (e.g. passagem de abstrato a concreto (caça ‘evento’ vs. caça ‘aquilo que é caçado’), da ação ao agente (presidência ‘evento de presidir’ vs. presidência ‘entidade humana’), da ação ao locativo (moagem ‘evento’ vs. moagem ‘fábrica’), etc.).

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Da componente convencional preconizada na versão de 1991 constam um aplicador de idiossincrasias e um selecionador. O primeiro mecanismo tem por função a aplicação de propriedades imprevisíveis, semânticas e/ou formais, ao produto lexical, enquanto palavra real. Digamos que se trata de um mecanismo que explicita informações empiricamente observadas no léxico real que não são explicáveis regular ou semi-regularmente. São abrangidas neste campo as peculiaridades semânticas que advêm de uma utilização técnica do léxico (E.g. o termo derivação em linguística por contraste com o seu significado genérico no uso comum ou ainda o termo voador que designa um aparelho com rodas onde se colocam as crianças quando começam a andar.).

Quanto ao selecionador, este tem a função de filtrar os lexemas que são efetivamente utilizados convencionalmente, destacando estes do conjunto daqueles que, ainda que gerados pelos mecanismos genolexicais, não são convencionalmente utilizados numa dada sincronia (e.g. gargantoíce, tristura, enfadar).

Em suma, o modelo de Corbin incorpora os aspetos irregulares e idiossincráticos no domínio da genolexia que é descrito como organizado de modo hierárquico. Esses aspetos irregulares não são, pois, relegados para fora do âmbito da geratividade lexical, como ocorre em modelos prévios (Cf. não só a teoria standard da gramática generativa, mas também outros modelos lexicalistas analisados ao longo do capítulo 3.). Esta é uma vantagem que se associa ainda a outras vantagens já colhidas em outros modelos da morfologia lexicalista, como são a não subjugação da formação de palavras à sintaxe e a visão do léxico como um domínio dinâmico.

Uma principal desvantagem pode, no entanto, apontar-se a este modelo: ao delinear cada regra de construção de palavras como uma inter-relação categorialmente unívoca entre bases e produtos, pois cada regra é definida pelo seu carácter de unicidade semântica e categorial, o modelo torna o sistema de regras genolexicais oneroso, uma vez que abre espaço à homonimização. Para uma visão crítica do modelo, veja-se Rio- Torto (1993: 106-127).

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Herdeiro do pensamento de Corbin encontra-se, no panorama português dos estudos consagrados à genolexia, o trabalho fundamental, porque pioneiro e influente, de Rio-Torto (1993; 1998). Rio-Torto (1993; 1998) propõe uma teoria polidimensional e interativa da formação de palavras, apresentando soluções para os problemas levantados pelo desenho do modelo de Corbin. Especificamente, a autora delineia um modelo que permite a não homonimização acarretada pela unicidade semântico- categorial prevista no modelo de Corbin. Rio-Torto prevê a existência de um módulo de base, um módulo gerativo e um módulo convencional como componentes para a genolexia. O módulo de base é constituído por bases lexicais e afixos; o módulo gerativo compreende os processos formais de formação de palavras e as regras de formação de palavras (Rio-Torto 1993: 142-143). Segundo Rio-Torto (1993: 144), o módulo convencional

«[...] demarca o que, sendo possível, não é normal, explicitando as propriedades que distanciam o léxico real do léxico potencial, tal como se apresenta à saída do módulo gerativo; de certo modo ele desempenha o papel de filtro (M. Halle), pois através dele se distingue a estrutura potencial das palavras construídas e a sua estrutura real (atestada).».

O carácter polidimensional do modelo de Rio-Torto advém da visão de que a formação lexical é a confluência das diversas estruturas da linguagem e ainda da sua dimensão pragmática e semiótica (Rio-Torto 1993: 230). Rio-Torto (1993: 231) não olvida que

«A língua está, pois, estruturada com base tanto numa dimensão de homogeneidade sistémica, quanto numa dimensão de heterogeneidade e de convencionalidade.».

O modelo da autora tem ainda a mais-valia de ultrapassar a homonimização inerente à proposta de Corbin. Rio-Torto (1993: 231) define cada regra de formação de palavras como formatada

«[...] por uma só operação semântico-categorial, unitária, isocategorial, mas não necessariamente unicategorial. Desta forma, consigna-se a possibilidade de uma mesma

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regra se aplicar a diferentes categorias de base, mas activando o mesmo tipo de relação semântica. [...] Ao mesmo tempo postula-se que a operação semântica de cada RFP deve ser suficientemente ampla e abrangente para poder albergar diferentes modulações, determinadas pela base e/ou pelo operador.».

Esta capacidade de uma mesma RFP operar com variantes sobressai como aspeto inovador no modelo de Rio-Torto em relação às propostas anteriores. Explicam- se, assim, de modo coerente, quer sob o ponto de vista empírico, quer sob o ponto de vista teórico, as situações em que o mesmo afixo, identificável pela sua homogeneidade semântica, se agrega a bases categorialmente marcadas como distintas. É o caso da formação de avaliativos, como os nomes denominais gatito, carrito, os adjetivos deadjetivais branquito, novito e os verbos deverbais saltitar, dormitar (Rio-Torto 1993: 343).

Para além de inovador sob o ponto de vista teórico, o trabalho de Rio-Torto destaca-se pelo seu carácter seminal, no âmbito dos estudos dedicados à formação de palavras do português, pelo facto de se tratar do primeiro estudo sistematizante do conjunto de processos e paradigmas genolexicais da língua portuguesa à luz de um quadro teórico coeso.