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2.1 CARTOGRAFIA DE UMA ESPECTADORA

2.1.4 Alterações nos modos de recepção do espectador

É necessário destacar – como sinalizo nas reflexões anteriores neste capítulo – que o modo de recepção do público tem sofrido alterações significativas. Algumas características de movimentos teatrais operaram e operam transformações estéticas, as quais constituem traços marcantes para compreendermos o ato do espectador em nossos dias. Isto é o que Desgranges (2012) denomina de “inversão da olhadela”. Para este autor, a relação da plateia com o espetáculo se confronta com a maneira de sentir e pensar o mundo, ou seja, uma maneira que é própria de cada época.

Compreende-se que, em diversos períodos, gêneros e estéticas, o teatro traçou caminhos marcados por aproximações variadas entre atores e público. Quando na Arte Poética, Aristóteles (2006) escreveu que “suscitando a compaixão e o terror, a tragédia tem por efeito obter a purgação dessas emoções”, pode ter

influenciado o drama historicamente e, com isso, provavelmente trouxe consequências para os modos de recepção até nossos dias.

Houve, por exemplo, momentos em que os atores direcionavam o discurso à plateia por meio de prólogos, epílogos e comentários. Isso é visto em realizações teatrais de fins da Idade Média, do Barroco, da Commedia dell'arte e de determinadas montagens do Período Elizabetano. Em outros, concebiam a audiência como um grupo que espiava uma realidade paralela e independente no palco, como foi o caso do drama burguês no século XIX.

Durante os estudos, observei que o século XX foi fundamental para as primeiras tentativas de compreensão acerca dos modos de recepção do espectador em relação ao espetáculo. Entre tantos importantes artistas, estilos e estéticas notei algumas afinidades com alguns encenadores-pedagogos como Vsevolod Meyerhold, Bertolt Brecht e Augusto Boal, de maneira que decidi trazê-los como influências iniciais para esta investigação.

Cada um desses artistas contribuiu com seus posicionamentos pertinentes a esta pesquisa, mas é necessário destacar que eles refletiram, individualmente, o teatro de sua época.

Para Guinsburg, Faria e Lima (2006), o teatro político ganhou maturidade artística, pela ação de artistas como Maiakóvski, Meyerhold, Piscator e Brecht.

Segundo Desgranges (2012), para estes encenadores:

[...] o petróleo, a inflação, as lutas sociais, a religião, a manteiga e o pão, o comércio de carnes podem ser objetos de representação teatral.[...] A intenção [...] é trazer o pano de fundo social para a cena, afirmando a dimensão histórica do acontecimento apresentado por meio dos elementos narrativos que golpeiam a cena, interrompendo a corrente dramática e afirmando a atitude crítica. (p. 101).

Boal (1988) afirma, em “Teatro do Oprimido e outras poéticas políticas”, que seu livro pretende mostrar que todo teatro é necessariamente político. Para ele, política são todas as atividades do homem e o teatro é uma delas: “Por isso, as classes dominantes permanentemente tentam se apropriar do teatro e utilizá-lo como instrumento de dominação” (p. 11).

Sobre isso, defendo que todo teatro pode ser considerado político ou social pela forma, mesmo que não necessariamente trate de temas políticos, se entendermos, como Lehmann sinaliza o político como uma maneira de usar os

signos e não como conteúdo “a política do teatro é uma política da percepção” (2007 p. 424). Em outro momento, o autor explica bem isso ao citar Lukács: “O que é verdadeiramente social na arte é a forma” (loc.cit) e mais adiante,

“[...] portanto, a questão do teatro ser político para mim não é simplesmente tratar de temas e tratar de um conteúdo político, mas é ter essa forma política. Você pode ter teatros que não são nada políticos e que tratem de temas políticos. É a forma que vai definir”(LEHMANN,2010, p. 235).

No que diz respeito a este estudo, uma pedagogia do olhar precisa ser pensada historicamente, em face às questões estéticas, políticas e sociais enfrentadas pelos artistas em seu tempo. Torna-se importante que os dispositivos poéticos-pedagógicos estejam em franco diálogo com as questões de um dado tempo histórico, e sejam concebidos e justificados em tensão com essas questões. No caso aqui tratado, através das aulas-espetáculo “O quinto criador: O público”, a ênfase maior, naturalmente, foi dada à formação estética de acordo com o objetivo principal que era a inserção do público na construção poética da cena coletivamente com os artistas-criadores e, consequentemente, estimulá-los à apreensão dos elementos constituintes da linguagem teatral. Sobre a produção artística, García Morente (2004) sinaliza: “A Estética (enquanto Filosofia da arte) não trata de todo objeto pensável em geral. Trata da atividade produtora da arte, da beleza e dos valores estéticos”(p. 24).

Obviamente, a forma de criação colaborativa que proponho tem sido notoriamente experimentada por diversos grupos teatrais brasileiros atualmente. Adaptada de acordo com a necessidade de cada coletivo. Tal formato horizontaliza as relações entre artistas e espectadores no processo criativo; aponta um engajamento político ou social e, com isso, vai de encontro ao que Lehmann (2010) argumenta que é a forma que define se o teatro é político ou não. Se temas políticos ou sociais forem escolhidos por toda a equipe presente na criação, incluindo a plateia, serão bem vindos, mas isso não foi fator preponderante no caso aqui proposto. O que se pretendeufoi fazer com que o público presente, a cada aula- espetáculo, percebesse, através de uma pedagogia do olhar, seu potencial criador e que, através dos demais criadores presentes, compreendesse, da mesma maneira, a importância de todas as demais funções para a construção cênica – como a do

ator, do diretor, do dramaturgo, do cenógrafo, do iluminador, do sonoplasta, dentre outros.

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DIALOGISMOS: ENCENADORES-PEDAGOGOS E

MOVIMENTOS ARTÍSTICOS

Todo discurso concreto (enunciação) encontra aquele objeto para o qual está voltado, sempre, por assim dizer, desacreditado, contestado, avaliado, envolvido por sua névoa escura ou, pelo contrário, iluminado pelos discursos de outrem que já falaram sobre ele. O objeto está amarrado e penetrado por idéias gerais, por pontos de vista, por apreciações de outros e por entonações. Orientado para seu objeto, o discurso penetra neste meio dialogicamente pertubado e tenso de discursos de outrem, de julgamentos e de entonações. Ele se entrelaça com eles em interações complexas, fundindo-se com uns, isolando-se de outros, cruzando com terceiros; e tudo isso pode formar substancialmente o discurso, penetrar em todos os seus extratos semânticos, tornar complexa sua expressão, influenciar todo o seu aspecto estilístico.

Michail Bakhtim (1993)

3.1 VSEVOLOD MEYERHOLD: CONVENÇÃO CONSCIENTE E O QUARTO