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2.1 CARTOGRAFIA DE UMA ESPECTADORA

2.1.3 O espectador e o olhar performativo

Ao ler “O espectador emancipado”, de Jacques Rancière (2010), compreendi que muito mais do que formar espectadores para a apreciação de espetáculos, meu objetivo é fomentar também a discussão sobre a possibilidade de trazer efetivamente o público para a criação da cena, através da interface entre a formação e a inclusão da plateia no processo criativo do espetáculo, junto aos demais elementos criadores. Vale ressaltar que o autor faz articulações referenciadas em Bertolt Brecht e em Antonin Artaud para refletir acerca do espectador.

Nesse sentido, Rancière (2010, p.10) sinaliza a necessidade de um teatro sem espectadores para explicar esse sujeito não passivo que busco: “É preciso um teatro sem espectadores, no qual quem assista aprenda, em vez de ser seduzido por imagens, no qual quem assista se torne participante ativo, em vez de ser um vouyeur passivo”. Refleti acerca do que esse autor defende, quando se refere a esse tipo de teatro. Percebo que seria a possibilidade do espectador não apenas sentar e assistir, contemplar passivamente, mas se tornar sujeito ativo no que se refere à criação da cena.

Os estudos de Jorge Dubatti (2011) sobre a filosofia do teatro apontam que o espetáculo teatral é um acontecimento composto por uma tríade de subacontecimentos: o convívio, a poiésis e a contemplação. A atitude de contemplação no teatro exige consciência do artista, do técnico, do espectador, do crítico, do historiador, dentre outros. Para o autor, há poéticas teatrais em que o trabalho contemplativo assume plenamente o exercício consciente do distanciamento ontológico e, em outras, admite outras situações:

[...]a quarta parede da caixa italiana; a materialidade do distanciamento brechtiano [...]. Entretanto, em outras, o acontecimento da contemplação pode dissolver-se parcial ou totalmente, pode interromper-se provisoriamente e ser retomado, ou combinar-se com tarefas de atuação e técnicas no interior do jogo específico de cada poética teatral, mas, para que todas essas variantes sejam possíveis, em algum momento, deve ser instalado o espaço contemplativo a partir da consciência da distância ontológica. (p. 25).

Postas essas considerações, o que seria, então, a participação na criação do fazer artístico de um espectador emancipado? Fayga Ostrower (2001), dentre outros autores que analisam o processo de criação, sinaliza que criar é basicamente formar.

Sobre o que seria o processo criativo, Cecília Almeida Salles (1998) destaca que todo o seu movimento de construção forma uma rede de operações estreitamente ligadas, sendo que esse movimento possui natureza inferencial e que cada operação traz seu frescor próprio. Por fim, Luigi Pareyson (1998) enfatiza em sua “teoria da formatividade”, quando se refere ao fazer artístico, que alguns aspectos presentes nos saberes e fazeres da criação são como um formar, um inventar um modo de fazer, ou seja, não existe uma metodologia inicial, mas uma experimentação que conduz à formação do objeto artístico.

Como tentativa de estabelecer um recorte na performance, no que diz respeito à volta de suas origens, surge o termo “performativo” – a partir dos anos de 1950, defendido por John Langshaw Austin (1990) – nesse caso, mais relacionado aos campos da Linguística e da Filosofia que ao das Artes. Austin emprega tal termo para denominar toda “fala” humana. Para ele, a linguagem não é puramente descritiva mesmo quando se diz “eu sei”. Segundo o autor, há circunstâncias nas quais não descrevemos a ação, mas a praticamos.

Peggy Phelan (1988) afirma que somente a simples ação do olhar já possui atividade criativa, ou seja, a autora demonstra a existência de uma qualidade performativa em todo o ato de ver. Exemplifica esta afirmação com uma das obras da artista francesa, Sophie Calle, a qual fotografou galerias de um museu de Boston (USA), de onde várias pinturas valiosas tinham sido roubadas em 1990. Depois entrevistou visitantes e funcionários do museu e pediu que descrevessem os quadros roubados. Calle transcreveu estas entrevistas e colocou-as ao lado das fotografias que tinha tirado dos quadros roubados. Através das descrições, da memória, das lembranças das pinturas roubadas há uma troca interativa entre o objeto artístico e o espectador. São descritos assim, o olhar e a memória do objeto artístico ausente, porém, relembrado através do campo dos significados e associações pessoais. A descrição em si não reproduz o objeto, o que faz de fato é ajudá-la a recriar, a reencenar e a reiterar o esforço de lembrarmos daquilo que está perdido.

Erika Fischer-Lichte (1997) sinaliza que o “Acontecimento sem título” realizado em 1952, pelo americano John Cage marcou a redescoberta da performatividade nas artes. Segundo ela, desde a Idade Média até o fim do século XVIII, a cultura europeia pode ser aproximada ou adequada a uma cultura performativa e explica que mesmo quando a alfabetização e a literatura se

expandiram à população de classe média, a leitura era raramente executada como um ato silencioso, de maneira individual. Eram feitas leituras em voz alta para outros, em grupo.

Para a autora, o “Acontecimento sem título”, proposto por Cage, trouxe uma nova percepção para o espectador ao distribuir performers no espaço de um refeitório, com a realização de ações simultâneas e diferentes pelos mesmos. A localização dos espectadores proporcionava a observação de outros espectadores, ou seja, cada espectador observava a reação de outro espectador diante da fruição da performance. Cage misturou diferentes artes como música, pintura, cinema, dança e poesia, houve, então, uma transgressão das fronteiras ou a dissolução dos limites que separam uma arte da outra porque foram realizadas de um modo performativo.

A autora observa que o gênero performance se desenvolveu nas últimas décadas, especialmente através dos movimentos vanguardistas, que impulsionaram o “modo performativo” no que diz respeito “ao tempo real de execução” e, como consequência, redefiniu o papel do espectador:

Uma vez que a função referencial tinha perdido a sua prioridade, os espectadores já não precisavam procurar significados preestabelecidos, nem lutar para decifrar possíveis mensagens formuladas na performance. Em vez disso, se encontravam numa posição que lhes permitiam observar as ações desempenhadas diante dos seus olhos e ouvidos como materiais, e deixar os olhos vaguear por entre as ações desempenhadas simultaneamente. Assim, contemplar viu-se redefinido como uma atividade, como um fazer, de acordo com os seus padrões particulares de percepção, com as suas associações e memórias e com os discursos dos quais tivessem participado. (FISCHER-LICHTE, 1987, p. 149).

Outro aspecto importante sobre ação performativa de todo o ato de ver – a no que se refere à relação entre o espectador e o espetáculo – é o fator espaço. Cláudio Cajaíba (2013) sinaliza que diante dos inumeráveis espaços onde se apresentam diferentes encenações, o espectador contemporâneo herdou uma diversidade de possibilidades que vão desde manter-se em estado “letárgico” através da fruição de encenações consideradas tradicionais, ou ser arrebatado, mobilizado, provocado através de encenações que exigem uma atividade e criatividade maior na fruição. Nos nossos dias são inumeráveis os locais onde se apresentam diferentes encenações: Na rua, no circo, em ruínas, em bares, em hospitais, em cemitérios, ou seja, não existe um espaço mais específico onde os

espetáculos teatrais possam ser encenados e isso favoreceu também aos diferentes modos de recepção.

Sobre isso também, cito Marc Augé (1993) quando este explica que a contemporaneidade é produtora de “não lugares” (aeroportos, estações de trem e de metrô, estacionamentos, supermercados, avenidas, praças, hospitais, dentre outros). O teatro tenta a todo momento definir “lugares” antropológicos onde os sujeitos se reconheçam. Os grupos de teatro parecem ter, na atualidade, o desejo de ocupar espaços da cidade para transformá-los em âmbitos de suas encenações e, assim, reconquistar a cidade. É possível dizer que os grupos buscam recriar “lugares”.

Apenas como reflexão, ressalto que estas práticas aqui citadas, não são comparadas conceitualmente como “Teatro de rua”, o qual se desenvolve desde os primórdios da encenação teatral. No Brasil, André Carrera (2002) afirma que, a partir dos anos 1980, o “Teatro de rua” era uma modalidade teatral fundamentalmente militante; que pertencia ao campo de ação política da cultura popular e se constituiu como instrumento privilegiado na reconstrução democrática do país. A partir dos anos 90, torna-se um desdobramento deste processo. Hoje em dia, é possível constatar o espaço conquistado por esta modalidade teatral – diante da existência de um número crescente de grupos em diversos estados do país.

Cajaíba (2013) reforça que, além dos diversos espaços onde são realizadas as encenações contemporâneas, outro aspecto não menos importante é a disposição e a acomodação dos espectadores nas proposições cênicas atuais: “Em círculo, em semicírculo ou em confrontação, sentado ou em pé, envolto, distante ou perto [...] no chão ou em confortáveis poltronas [...] pagando ou como convidado [...] em crise ou em ascensão” (p. 98), palco e plateia, para o autor, não se abandonam. E, portanto, de acordo Fischer-Lichte (1987) a criatividade e a atividade são muito exigidas do espectador na contemporaneidade, isto é, o público, a partir do que vê ou do que é proposto, participa também da formação criativa da cena.

Outrossim, conclui-se que o espaço de inserção dita a predisposição e a percepção do espectador; elas são partes integrantes da experiência. Inês Linke (2006) pondera que a escolha do artista em trabalhar materiais e objetos expostos em um novo contexto resulta no desejo de apresentar qualquer coisa sem “representá-la”. Nesse caso, o espaço torna-se parte constituinte da obra. O teatro aqui não é um espetáculo ilusório, mas a procura de um evento presente e ativo.

Além disso, acredita-se, que o público, ao assistir uma peça, normalmente aciona sua enciclopédia individual, suas referências familiares, sociais, culturais, dentre outras. Diante disso, Hans Robert Jauss (1994),tratando do “horizonte de expectativas”, destaca que uma obra artística não se apresenta nunca como algo novo para a plateia. Para esse autor, cada leitor-espectador:

[...] cria, logo desde o início, expectativas a respeito do „meio e do fim‟ da obra que, com o decorrer da leitura, podem ser conservadas ou alteradas, reorientadas ou ainda ironicamente desrespeitadas, segundo determinadas regras de jogo relativamente ao gênero ou ao tipo do texto. (p. 66-67).

As articulações entre as experiências vividas como espectadora com as atividades de formação, a produção artística, o conhecimento teórico e com a fruição de espetáculos, constituíram-se como outros indutores-provocadores, ou seja, estimularam o desejo e o interesse por este estudo no âmbito acadêmico.

Com a realização do experimento “Diálogo Imaginário”, descrito anteriormente, através da prática e da teoria, encontrei a mola propulsora para investigação da possibilidade de desenvolver uma pedagogia do olhar, para a formação do espectador, e com isso, observar se a plateia pode ser considerada ou não como um dos elementos criadores da cena teatral.