• Nenhum resultado encontrado

As incompletudes normativas reveladas nesses tipos de prescrições que se pressupõem válidas, conforme assentado na subseção 2.1.2, geram uma autêntica impossibilidade de aplicação das normas complexas, que estão inseridas em uma zona cinzenta. Em razão dessa ausência de uma fonte da qual surja a validade para

90 Góes (2013, p. 70) define o mundo da vida como o “complexo heterogêneo de formas de vida

expressas linguisticamente e que compõem o horizonte de sentido de que se servem os atores sociais, representando o ‘pano de fundo’ onde vivifica o agir comunicativo”. Esse mundo da vida é caracterizado por ser um tipo de saber com uma certeza imediata, uma força totalizadora e uma constituição holística (HABERMAS, 1990, p. 92-93).

91Esclarecendo em que consiste o agir comunicativo, escreve Góes (2013, p. 66): “A teoria do agir

comunicativo promove a substituição paradigmática dos postulados da filosofia da consciência pelos postulados da filosofia da linguagem e, por isso, considera esta última como o instrumento hábil a proporcionar um modo especial de comunicação entre os sujeitos que se relacionam”. [...] “Para além dessa perspectiva, afirma que a comunicação tem a potencialidade de produzir performaticamente uma alteração no comportamento dos sujeitos que se comunicam, sempre visando a percepção de uma ação voltada ao entendimento entre os falantes, de modo que este entendimento resulte de uma compreensão sempre desimpedida”.

a necessária produção de uma complementação normativa, percebe-se que o problema central que envolve a aplicação de uma norma insuficientemente adequada é o da legitimidade.

Diante desses hard cases, então, passa a ser necessária uma complementação dos discursos jurisdicionais de aplicação por novos discursos de fundamentação92. Essa necessária atualização discursiva, segundo Góes (2013, p. 150 e ss.), revela uma insuficiência da teoria güntheriana e apenas é possível mediante o restabelecimento de condições para a atuação da cidadania ativa “agora perante a Jurisdição, a fim de encetar novos discursos de fundamentação que se renovam dentro do espaço reservado ao Poder Judiciário” (GÓES, 2013, p. 150).

Nessas conjunturas, a decisão judicial encontra-se frente a um impasse interpretativo entre o normatizado e a realidade, de maneira que um foro de justificação pública se torna imprescindível (GÓES, 2013, p. 154). Essa necessidade por legitimação é urgente, pois qualquer outra alternativa de resolução do caso, isto é, sem o recurso à esfera pública, implica em uma desarrazoada arbitrariedade jurisdicional.

Em uma democracia constitucional, a validade de uma norma é completamente vinculada a um plano de intersubjetividade, primeiro, na sua criação93. O decisionismo moral de poucos juízes, diante de um vácuo normativo, assim, não encontra qualquer fundamento de validade ou respaldo jurídico-normativo.

Em face disso, precisamente, é que os problemas da coerência e do dissenso são deslindados. Mediante um procedimento argumentativo e participativo, há a possibilidade de que concepções teóricas distintas sejam enfrentadas racionalmente e em um caso concreto, fundamentando de maneira cooperativa: i) a existência ou não de lacuna frente à, de início, aparente norma complexa (problema da coerência); e, caso seja afirmada a existência dessa norma, ii) a produção de uma complementação normativa, por intermédio do enfrentamento de opiniões e de

92 Sobre isso, cf. subseção 2.1. Acerca da defesa da necessidade de uma complementariedade

inevitável desses discursos no meio jurisdicional com o fim de combater uma margem inevitável de discricionariedade na jurisdição, cf. SIMIONI, Rafael Lazzarotto. Direito e racionalidade comunicativa: a teoria discursiva do Direito no pensamento de Jürgen Habermas. Curitiba: Juruá, 2007. p. 183-184.

93 Pode-se argumentar que, segundo, ela sujeita-se também a uma intersubjetividade marcadamente

argumentativa para a aplicação de quaisquer normas jurídicas que sejam, mas esse objeto extrapolaria os fins deste trabalho, que se coadunam mais precisamente com a hipótese das normas insuficientemente adequadas.

interpretações amplamente divergentes, que atenderá à insuficiência apresentada (problema do dissenso).

A gestão desse dissenso, no contexto discursivo necessário para as normas complexas, pressupõe um entrelaçamento inevitável entre a moral, a política e o direito94. Ante a casos em que não há direito institucionalizado, observa Günther (2006, p. 34-35) que um procedimento dessa natureza exige um compromisso95 que atinge ao menos três níveis: o da negociação (bargaining)96; o da verificação de questões morais e de justiça (arguing); e o comunicativo.

Quanto a isso, especialmente considerando o dissenso entre maiorias e minorias antes do início de um procedimento comunicacional, destaca Lepsius (2013, p. 173-175) três estratégias assumidas por democracias para o aumento da capacidade de compromisso ao debate, que aqui se mostram bastante relevantes. A primeira delas seria a politização (Politisierung), que pressuporia o compromisso com uma comunicação facilitada, voltada às questões da própria esfera pública e não especialmente às de identidade particular. A segunda seria a criação de “balcões públicos” (Gegenöffentlichkeiten schaffen), na qual a descoberta dos elementos à decisão adequada pode ser legada a agremiações temáticas ou especializadas, que, por sua vez, podem trazer suas conclusões novamente ao meio coletivo. Por último, a terceira é a garantia de direitos das minorias (Minderheitenrechte) ainda que, no fim, essa minoria permaneça convicta de suas razões oferecidas no começo do procedimento.

Uma vez firmado esse compromisso, tanto sobre as divergências acerca da coerência sistêmica quanto às relativas à indispensável construção normativa, funda- se o procedimento discursivo hábil à legitimação das decisões nos casos de normas complexas. Frente à complexidade jurídico-sociológica nas quais essas situações se apresentam, passa a ser necessário, para isso, um novo pacto social (GÓES, 2013, p. 170), que vá além de uma repetitiva “representatividade” do povo que é emoldurada

94 Sobre essa temática, cf. HABERMAS, Jürgen. Faktizität und Geltung: Beiträge zur Diskurstheorie

des Rechts und des demokratischen Rechtsstaats. 4. ed. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1994. p. 580 e ss.

95 A forma desse compromisso, em Günther, envolve uma abrangência de concepções e fatores,

resultando em “compromissos de pacote” (Paketkompromisse) complexos e que contemplam dissensos brandos e duros. Para aprofundamento, cf. GÜNTHER, Klaus. Politik des Kompromisses: Dissensmanagement in pluralistischen Demokratien. Wiesbaden: VS Verlag für Sozialwissenschaften, 2006. p. 39-45.

96 Para Alexy (2004, p. 136), o compromisso em uma teoria procedimental conteria essencialmente um

nos ditames consolidados por teorias contratualistas e presume sempre um consentimento “tácito”97.

Em um modelo de discurso ativamente participativo, e enfrentando esse problema da legitimidade na produção de normas jurídicas, Habermas (1994, p. 56- 57) concebe sua teoria em um ambiente de tensão entre facticidade (Faktizität) e validade ou legitimidade (Geltung), isto é, entre aceitabilidade fática e aceitabilidade racional. Para isso, ele desenvolve um conceito próprio de autonomia política.

O ponto de partida habermasiano é a tese da co-originalidade ou equiprimordialidade entre direitos humanos e soberania popular. De acordo com Habermas (2002, p. 270-276), tanto a proposta liberal – que representa a autonomia privada embasada na filosofia kantiana – como a republicana – que representa a autonomia pública de matriz rousseauniana – são insuficientes. Enquanto uma se adstringe a uma perspectiva de cidadania a partir de direitos subjetivos de caráter negativo, a outra limita-se a uma visão a partir de direitos positivos de participação política intensa no contexto ético da vida pública.

Assim, essas duas qualidades de autonomia, insuficientes se separadas, tornam-se adequadas quando se combinam na forma de um discurso público. Os cidadãos podem, então, ser politicamente autônomos quando integram a criação das normas, com relação às quais eles se submeterão como destinatários, numa implicação recíproca entre as autonomias privada e pública98 (HABERMAS, 2002, p. 86-87).

Nesse quadro de apontamentos é que Habermas (1997a, p. 142) enuncia o seu princípio do discurso, segundo o qual: “são válidas as normas de ação às quais

97 Está-se a sustentar, nesse sentido, uma participação ativa. Por isso, concorda-se apenas

parcialmente com a representação na perspectiva de Alexy (2015b). Por um lado, a aceitação de uma pura representação argumentativa, por parte dos tribunais, implica em uma rejeição da participação real da esfera pública em casos de normas complexas. Por outro, reconhece-se que, em discursos reais, é impossível propiciar a participação ativa de uma infinidade de agentes, devendo a voz de alguns deles ecoar concretamente através de instituições, grupos ou pessoas que os representem. Dessa maneira, fornece-se uma participação ativa, mas adequada também à realidade argumentativa dos discursos jurídicos reais. Em complementação à realidade de superação de outras perspectivas contratualistas tradicionais, diz Laski (1964, p. 24-25): “os defensores da teoria contratual, neste ponto, falam frequentemente de um consentimento tácito; mas está claro que, desde que consentimento envolve a noção de um ato deliberado de vontade, é necessária alguma coisa mais positiva que isso”. [...] “Assim como um sistema de imperativos legais é tanto melhor quanto menor coerção envolver, também é impossível pensar-se em uma comunidade moderna cujas finalidades possam ser obtidas sem uso da força sobre, pelo menos, alguns de seus cidadãos”.

98 Esclarece Pereira (2017, p. 48): “É essa reciprocidade que leva a relação de complementaridade e

co-originalidade entre ambas autonomias: no ponto de vista do agir comunicativo, a autonomia privada origina, através do discurso, os direitos fundamentais básicos, cujo conteúdo é desenhado pela autonomia pública que guarnece a participação dos cidadãos no procedimento deliberativo”.

todos os possíveis atingidos poderiam dar o seu assentimento, na qualidade de participantes de discursos racionais”. Esse discurso se ambientaria em um contexto ausente de coerções, possibilitando o alcance de um acordo racional99.

Esse discurso opera-se com a função estabilizadora de dissensos100 e sustenta-se pelo compromisso dos destinatários – que são os próprios participantes ativos do procedimento deliberativo – com os resultados alcançados. A deliberação e o oferecimento de argumentos, nada obstante, permanecem abertos para o requerimento de quaisquer mudanças por esses destinatários no processo de validação normativa.

O agir comunicativo, nesse momento, contrapõe-se ao agir estratégico, que em Habermas representa uma forma fracassada de comunicação. Enquanto o primeiro opera-se na discussão pública como entendimento intersubjetivo a partir de pretensões de validade (Geltungsansprüchen), fomentadas pelo massivo pano de fundo de um mundo da vida que é compartilhado (HABERMAS, 1994, p. 391), o segundo, por sua vez, é marcado por um mero objetivo de sucesso, não mais um ambiente de mundo da vida, mas um de “sistema”, que opera suas atividades sob os códigos “poder” e “dinheiro” 101.

Dessa maneira, o consenso no agir comunicativo, por intermédio de procedimentos deliberativos102, é sempre uma possibilidade em um modelo habermasiano. A linguagem que é incorporada ao discurso se traduz, por conseguinte, como um instrumento de perene mediação à produção de múltiplos consensos (GÓES, 2013, p. 161).

99 Conforme Habermas (2002, p. 292): “a almejada coesão interna entre direitos humanos e soberania

popular consiste assim em que a exigência de institucionalização jurídica de uma prática civil do uso público das liberdades comunicativas seja cumprida justamente por meio dos direitos humanos. Direitos humanos que possibilitam o exercício da soberania popular não se podem impingir de fora, como uma restrição”.

100 “Habermas identifica duas estratégias comunicativas para lidar com o dissenso. A primeira é a

circunscrição do discurso em um plano inferior à abertura do agir comunicativo, no qual figuram as ‘certezas intuitivas’ inquestionáveis por si mesmas. Assim ocorre uma ‘frenagem da mobilização comunicativa’ e o ‘silenciamento da crítica’. O segundo caminho é o da não-circunscrição ou liberação, que prolonga o discurso e depende do auxílio do direito para obter êxito na ‘domesticação dos dissensos’” (PEREIRA, 2017, p. 35).

101 Enquanto o mundo da vida teria como códigos o consenso e a solidariedade, o sistema teria o poder

e o dinheiro (GÓES, 2013, p. 52). Em um esclarecimento do conceito desse agir estratégico, antagônico ao comunicativo, diz Habermas (1989, p. 164): “na medida em que os atores estão exclusivamente orientados para o sucesso, isto é, para as consequências do seu agir, eles tendem a alcançar os objetivos da sua ação influindo externamente, por meio de armas ou bens, ameaças ou seduções sobre a definição da situação ou sobre as decisões ou motivos de seus adversários” (HABERMAS, 1989, p. 164).

102 Laski (2000, p. 11-12), semelhantemente, identifica que um consenso fundador da obediência se

Da perspectiva do falante, há, entretanto, quatro requisitos específicos impulsionadores dos consensos:

Ele deve expressar-se de uma maneira inteligível, deve querer entender-se com seu interlocutor sobre algo no mundo, deve querer compartilhar com seu interlocutor esse entendimento, firmando um compromisso com ele, e deve expressar-se de maneira veraz. Tais requisitos configuram o que Habermas chama de pretensões de validade levantadas por enunciado: a pretensão de

inteligibilidade, a pretensão de verdade (quanto ao conteúdo veiculado), a

pretensão de justeza normativa (quanto ao comprometimento do falante com aquilo que enuncia) e a pretensão de veracidade (quanto às intenções manifestadas pelo falante) (SEGATTO, 2008, p. 44, grifos nossos).

Tais requisitos apenas são perfeitamente atendidos, para Habermas, num discurso em uma situação ideal de fala. Ela é caracterizada por duas condições triviais e duas condições não triviais103. As duas primeiras são, respectivamente, que todos os participantes tenham as mesmas chances de participação e igual chance para críticas, interpretações e problematizações. As condições não triviais, por sua vez, são que todos os falantes tenham chances iguais para expressar suas posições, sentimentos e intenções e que apenas são admitidos no discurso falantes que tenham as mesmas chances de empregar atos de falas regulativos enquanto agentes.

Dentre outros elementos, uma tal situação ideal de fala pressuporia o desenrolamento do embate racional sem quaisquer limitações temporais. Mesmo frente a essa dimensão deontológica da procedimentalidade, adverte Alexy (1995, p. 115-116) que uma garantia de consenso não pode nem ser excluída nem assumida, pois seria impossível aferir se o alcance de um consenso seria inflexível ou definitivo. Por essa linha é que Habermas (1971a, p. 121) identifica a intersubjetividade dos acordos racionais tanto como ilimitada quanto como rompida na linguagem corrente. Ilimitada, por um lado, porque pode ser estendida à vontade, e rompida, por outro, pois jamais pode ser produzida integralmente.

De toda maneira, a impossibilidade de solucionar a aplicação do direito meramente com uma teoria da coerência é objeto de concordância entre Alexy (1995, p. 166) e Habermas. Assim como regras não se aplicam por si próprias, um sistema jurídico também não consegue por si próprio oferecer respostas corretas aos

103 Para uma visualização dessas condições com maiores detalhes, cf. SEGATTO, Antonio Ianni. A

tensão entre facticidade e validade. In: NOBRE, Marcos. TERRA, Ricardo. (Orgs.) Direito e Democracia: um guia de leitura de Habermas. São Paulo: Malheiros, 2008. p. 47.; e TUGENDHAT, Ernst. Lições sobre ética. Petrópolis: Vozes, 1996. p. 175-176.

problemas que surgem. Para isso, no pensamento de ambos, necessita-se de pessoas e procedimentos decisórios (ALEXY, 1995, p. 166).

Nesse sentido, a teoria alexyana também fornece suporte à criação procedimental do direito, visando à complementação normativa de normas complexas. Antes de destacar as contribuições dessa concepção teórica ao tipo de discurso que está a se propor na Jurisdição (nos moldes desenvolvidos por Góes), cabe o destaque de um apontamento crítico. Diante dos tipos de insuficiência normativa que são objeto deste trabalho, a tese do caso especial combinada com o conceito de representação argumentativa em Alexy inibem a produção de legitimidade por meio da efetiva participação popular, marcada por um movimento partido da periferia ao centro104.

A tese do discurso jurídico como um caso especial (Sonderfall) do discurso prático geral fundamenta-se, para Alexy (1978, p. 263-269), por três razões. A primeira é a de que aquele tipo de discurso lida com questões práticas, tais como porquês e o que fazer ou deixar de fazer. Essas questões, em segundo lugar, são discutidas inevitavelmente com uma pretensão de correção ou justeza (Anspruch auf Richtigkeit). E, em terceiro, porque há limitações das condições do discurso jurídico em comparação com o prático geral.

Principalmente em virtude dessa pretensão de justeza, a aplicação do direito também seria permeada por elementos de moralidade, isto é, subsidiariamente, por argumentos prático-gerais. Eles podem ser tanto teleológicos, orientando-se por uma ideia de bem, quanto deontológicos, pautados na ideia de dever ancorada na

generalizabilidade (ALEXY, 1995, p. 89-90). Em termos de natureza, eles são distintos

dos argumentos institucionais, que são os oriundos estritamente do direito positivado. A representação argumentativa, por sua vez, atine à ocupação puramente de argumentação que caracteriza a atividade de tribunais constitucionais. Ela tem como condições fundamentais a existência de argumentos bons ou corretos e a existência de um número suficiente de pessoas que tem capacidade e ânimo para aceitar estes tipos de argumentos, porque eles são bons ou corretos (ALEXY, 2015b, p. 212).

Contudo, no contexto de incompletude normativa e de carência por uma legitimação ativa na construção de normas, essas teses não podem ser absolutamente admitidas. Acontece que, caso elas sejam assumidas, passa-se a ser

104 Cf. GÓES, Ricardo Tinoco de. Democracia deliberativa e jurisdição: a legitimidade da decisão

permitido o arrazoamento de questões morais exclusivamente por tribunais, estando ausentes quaisquer balizas discursivas proporcionadas pelo enfrentamento de argumentos institucionais.

Nesse cenário, esclarece Dutra (2006, p. 30) que o problema não é, em si, o exame de questões morais pelo discurso jurídico, mas propriamente o seu desenvolvimento de forma absolutamente livre e sem caráter autoritativo105. Discursos nesse formato seriam, por sua vez, típicos de uma interlocução do Legislativo com a esfera pública na produção normativa e que, no contexto das normas complexas, passa a ser possível num diálogo entre o Judiciário e essa mesma esfera pública.

De toda maneira, como prenunciado, a teoria de Alexy traz significativas contribuições ao modelo de complementação normativa diante de normas insuficientemente adequadas. Em um breve apanhado, destacam-se três delas.

A primeira consiste na própria conjunção de regras argumentativas para um discurso jurídico racional106. Sobre isso, Alexy (1978, p. 351) chega a admitir, inclusive, que uma racionalidade ilimitada da decisão jurídica desenvolvida em um procedimento argumentativo pressuporia, de toda forma, a racionalidade do legislador.

A segunda e a terceira – guardando paralelos com a tensão habermasiana entre facticidade e validade – advém da tese da dupla natureza do direito: uma natureza ideal e outra real. Enquanto a dimensão ideal do direito é fomentada pela correção e pelo discurso em uma situação ideal de fala, a real é adstrita a procedimentos discursivos institucionalizados no direito, por meio dos quais decisões podem ser tomadas (ALEXY, 2011, p. 396).

Nesse sentido, tem-se como segunda contribuição a premente necessidade de, na realidade legislativo-institucional, concretizar-se procedimentos discursivos que prestem à tomada de decisões racionais107. A relevância desse tema, na conjuntura das normas complexas, será objeto do próximo capítulo.

105 Essa constelação também seria, segundo Dutra (2006, p. 34), a assumida por Habermas: “Para

Habermas, o judiciário tem que ficar adstrito ao amálgama de razões construído pelo legislativo durante o processo de positivação das normas”. [...] “Assim, o que o judiciário está autorizado a fazer é reconstruir, em outros termos, os mesmos argumentos, mas não trazer para o direito argumentos que já não estejam na legitimidade do ordenamento, oriundos do processo democrático de legitimidade do direito”.

106 Cf. ALEXY, Robert. Theorie der juristischen Argumentation. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1978.

p. 364-367.

107 Para análise de um exemplo concreto dessa positivação, cf. PEREIRA, Carlos André Maciel

A terceira, por sua vez, é que enquanto a faceta ideal da decisão sobre o direito é a argumentação como discurso público racional, a real é a tomada de decisões, no fim das contas, na linha do princípio majoritário. Em face disso, a única possibilidade de reunião da realização jurídico-política entre as dimensões ideal e real do direito seria através de um modelo de democracia deliberativa108 (ALEXY, 2011, p. 401).

Diante da realidade desses discursos reais, Günther (2006, p. 37) diz que compromissos com a gestão do dissenso, que tem por vista desconstruir insatisfações, ainda que não sejam capazes de superá-las, constroem, portanto, uma espécie de “tolerância mista”. Com um aporte em Forst (2003, p. 42-48), vê-se que essa necessidade de tolerância frente a discursos reais pode ser concebida em conceitos de coexistência, respeito e diversidade das apreciações de mundo109.

De toda maneira, tem-se, em resultado geral, que os discursos de aplicação precisarão ser complementados no ambiente da Jurisdição por novos autênticos discursos de fundamentação, ante os dissensos acerca das normas complexas. Consoante Góes (2013, p. 169), aqueles discursos “devem ser institucionalizados de modo a revestirem-se de meios que alberguem manifestações argumentativas denotativas dessa complexidade, a fim de reduzi-la, mas com legitimidade”.

Feitas essas considerações, apresentar-se-á, brevemente, três objeções à conjuntura teórica aqui exposta, com o fim de defendê-la e fortalecer sua