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2.2 PRÁTICA

2.2.2 Tribunais constitucionais estrangeiros

2.2.2.3 O apelo ao legislador e a declaração de inconstitucionalidade sem

Para lidar com omissões legislativas e incompletudes normativas, o BVerfGE desenvolveu diversas formas de decisões, por meio das quais o diálogo entre os poderes é fomentado e o Judiciário não se resigna com uma posição meramente declaratória61. Dentre elas62, destaca-se o apelo ao legislador (Appellentscheidung63)

e a declaração de inconstitucionalidade sem pronúncia de nulidade (Unvereinbarkeitserklärung). As hipóteses serão apresentadas sequencialmente.

Há muitas décadas64, o Tribunal tem enunciado que algumas normas ainda são constitucionais, expressando na fundamentação da decisão, contudo, um apelo ao Legislativo para alterá-la. Nessas situações, a Corte declara a constitucionalidade da norma, advertindo o legislador, sob determinadas circunstâncias, à obrigação ou recomendação de aperfeiçoamento da norma (STEINBERG, 1987, p. 161).

Conforme observa Uzman (2013, p. 407), essa variante alemã indica uma superação prospectiva (prospective overruling) da norma em questão. Ela seria nesse momento contrastada por uma falta de evidências suficientes, por um lado, e uma necessidade premente de ação, por outro (UZMAN, 2013, p. 408-409). Por isso, o Tribunal assumiria uma postura de alarmar o Legislativo apenas cautelosamente65.

61 Por ser, de certo modo, uma alternativa moderada entre um ativismo judicial em sentido forte e uma

inércia fática do Judiciário, mesmo críticos daquele veem com bons olhos essa opção: “Há sempre uma fronteira entre ativismo e judicialização. O STF não deve interferir sobre o valor que deve ser o salário mínimo. Mas pode efetuar controles constitucionais, como, por exemplo, no limite, fazer uma declaração de inconstitucionalidade sem pronúncia de nulidade, com um apelo ao legislador (Appelentscheidung)”. [...] “Esse é o espaço para uma judicialização da Política, distanciando-se daquilo que muitas vezes parece ser o caminho mais curto, o ativismo judicial” (STRECK, 2018, p. 181). Existe, de toda maneira, também reticentes à admissão de tal mecanismo. A esse exemplo, diz Freitas (2000, p. 63-64): “Nisso, como em tudo, observa-se a necessidade do preconizado justo equilíbrio entre formalismo e pragmatismo. Menciono, no entanto e de passagem, que justamente em função do apreço a tal equilíbrio não parece recomendável, por ora, que façamos a importação da figura do ‘apelo ao legislador’ (Appellentscheidung), porque conducente a excessos que produziriam, entre nós, o agravamento da insegurança jurídica e do quadro de frenética imprevisibilidade”.

62 Mendes (1992, p. 37), referindo-se à jurisdição constitucional alemã, diz que: “em nenhum outro

sistema de controle jurisdicional de normas, seja ele difuso ou concentrado, logra-se constatar a utilização de tão ampla gama de técnicas de decisão”.

63A tradução rigorosa do termo significaria “decisão de apelo”, que designa decisões diversas que

tenham esse caráter. No âmbito luso-brasileiro, tem-se optado, todavia, pela tradução “apelo ao legislador”, por tornar mais claro o sentido por detrás do termo. A esse respeito cf. nota de rodapé 27 de RESENDE, Ranieri Lima; VIEIRA, José Ribas. Judicial review e democracia: caminhos para um controle dialógico de constitucionalidade. Revista Brasileira de Estudos Políticos, Belo Horizonte, n. 113, p. 405-430, dez. 2016.

64 O ponto de partida primordial para o desenvolvimento desses institutos foi a decisão proferida em 4

de maio de 1954 sobre o Estatuto do Sarre (MENDES, 1992, p. 43).

65 Nesse sentido, “o juiz funcionaria como um observador autorizado dessa realidade concreta, capaz

Ocasionalmente, na fundamentação de sentenças dessa natureza, o BVerfGE fixa inclusive um prazo para o legislador alterar a regulação questionada. O decurso desse prazo não significa, porém, o automático reconhecimento da inconstitucionalidade da lei (MOENCH, 1977, p. 187).

Mesmo assim, diante de decisões como essas, a produção legislativa costuma não raras vezes buscar se adequar ao entendimento da Corte66. Essa influência geraria mesmo uma eficácia prévia (Vorwirkung) do julgamento, que se materializaria com as iniciativas parlamentares em concretizar os comandos ou recomendações dessas decisões (LANDFRIED, 1984, p. 51 ss.).

Esse impulso à criação de leis não é, contudo, vinculativo, pois “a sentença de rejeição de inconstitucionalidade não pode ser proferida com a imposição de um dever de legislar” (MENDES, 1992, p. 59). O apelo ao legislador compõe, assim, um

obiter dictum, atuando apenas indiretamente no processo político. Por isso é que

mesmo frente à inércia legislativa a lei “ainda constitucional” permanecerá com sua validade em condições normais, até que o Tribunal decida em outra oportunidade em sentido diverso67 (MOENCH, 1977, p. 187).

Para Steinberg (1987, p. 164-165) um julgamento dessa natureza pode originar-se de uma situação de conflito entre as expectativas legislativas quando da criação da norma não completamente adequada e o desenvolvimento concreto dela. Pode ocorrer que, por exemplo, o objetivo almejado por ela não tenha sido integralmente alcançado ou que tenha sido ocasionado um prejuízo maior que o previsto a direitos de terceiros ou ao interesse da coletividade.

O apelo ao legislador no sistema alemão é, nesse sentido, composto por uma constelação de diversificadas causas. Mendes (1992, p. 46) identifica três grupos

como, na realidade, uma tentativa de subjetivação do ato inconstitucional, pois o ato não produziria efeitos jurídicos enquanto o legislador não tivesse consciência da inconstitucionalidade.

66Apesar de isso ocorrer costumeiramente, Krell (2002, p. 87) destaca que: “na própria Alemanha,

apesar de o legislador ter, na maioria dos casos, respeitado as decisões da Corte e deduzido delas as consequências necessárias, ele nem sempre tem assumido totalmente as instruções judiciais. Como exemplo, serve o caso do financiamento dos partidos políticos, onde a Corte obrigou o legislador várias vezes a ‘melhorar’ suas medidas”.

67Esclarece Clève (2000, p. 335) que: “Na República Federal Alemã, entre anular (ou declarar não

conforme a Constituição isto que é nulo) o que positivamente e parcialmente disposto, ou estender a incidência da norma a casos não expressamente previstos, prefere-se uma terceira e mais complexa solução: declarar a não conformidade da disposição com a Constituição, definindo-se prazo (ainda que indiretamente determinado) – uma Appellentscheidung – para que o parlamento atue, no mais pleno e correto exercício de sua liberdade de conformação, no sentido de eliminar a disparidade de tratamento declarada pela Corte como subsistente, com reserva de removê-la diretamente em caso de persistente omissão. Considera-se, de fato, inadmissível uma interpretação que implique a criação de uma nova prescrição legislativa”.

típicos dessa categoria: i) apelo ao legislador em virtude de mudança nas relações fáticas ou jurídicas; ii) apelo ao legislador em virtude de descumprimento de dever constitucional de legislar; e iii) apelo ao legislador em virtude da falta de “evidência” de inconstitucionalidade. Todas elas representam hipóteses de atuação do BVerfG sobre situações de imperfeição normativa, mesmo sem o pronunciamento acerca da inconstitucionalidade ou nulidade da lei (EBSEN, 1985, p. 96-97).

Esse instituto distingue-se, entretanto, da declaração de inconstitucionalidade sem pronúncia de nulidade, uma vez que essa de fato faz uma declaração de inconstitucionalidade enquanto aquela rejeita-a. A Appellentscheidung tem, por isso, um conteúdo preventivo, ao passo que a Unvereinbarkeitserklärung tem caráter mandamental, comandando ao legislador a supressão do estado de inconstitucionalidade (MENDES, 1992, p. 45).

Nessa declaração de inconformidade constitucional há, além disso, uma suspensão da aplicação da norma censurada (Anwendungssperre). A questão colocada é que nenhuma consequência jurídica poderia mais se suceder de uma norma reconhecidamente violadora da Constituição (KORIOTH, 1991, p. 570).

Especialmente no que se refere à aplicação passada da norma, todavia, esses efeitos da declaração de inconstitucionalidade são mitigados. Isso ocorre essencialmente em razão da integralidade das consequências dela serem indesejáveis, o que redunda na ausência de uma declaração de nulidade (Nichtigerklärung) da norma (SCHMITZ; STAMMLER, 2011, p. 482).

Fundamentalmente, há dois grupos de situações em que a

Unvereinbarkeiterklärung é aplicada. Um deles é o de leis que transgredem direitos

de igualdade, no qual a declaração de nulidade abre uma gigantesca margem de possibilidades político-jurídicas para correção da inconstitucionalidade, e o outro o de autêntica insuficiência normativa, havendo um “vácuo jurídico” ou “caos jurídico” (SCHMITZ; STAMMLER, 2011, 483-484). Em ambos os casos, a Corte almeja salvaguardar ou respeitar a liberdade e o espaço criativo do legislador68.

Do ponto de vista aplicativo, tanto o apelo ao legislador quanto a declaração de inconstitucionalidade foram utilizados inúmeras vezes. A esse exemplo, na primeira

68 Para aprofundamento nesse aspecto, cf. UZMAN, Jerfi. Constitutionele remedies bij schending

van grondrechten: over effectieve rechtsbescherming, rechterlijk abstineren en de dialoog tussen rechter en wetgever. 2013. 729 f. Tese (Doutorado) - Curso de Direito, Universiteit Leiden, Leiden, 2013. p. 418-421.

decisão do BVerfGE que reconheceu o mínimo existencial, tanto obrigou-se a administração pública a pagar um direito prestacional quanto fixou-se prazo para o legislador preencher a lacuna existente69 (ALEMANHA, 1975). Mais recentemente, na decisão de reconhecimento de uma terceira categoria de gênero, a Corte reconheceu o direito à igualdade de registro civil da requerente como intersexo ou intergênero, fixando prazo para o Legislativo regular a matéria por meio de lei70 (ALEMANHA, 2017).

O uso desses dois mecanismos não é, no entanto, isento de críticas. Mendes (1992, p. 56) cita diferentes posições que sustentam que o Tribunal não dispõe de base legal para tomar esses tipos de decisões; que ele, com isso, demite o legislador da responsabilidade de concretizar a ordem fundamental; e que o BVerfGE não detém competência para prever o exato momento de conversão de uma situação “ainda” constitucional para o de uma situação inconstitucional.

Para além dessas opiniões, Ipsen (1983, p. 41-44) assevera ainda que as consequências jurídicas de uma inconstitucionalidade são, nesse modelo,

arbitrariamente definidas pelo BVerfGE, pois não haveria justificativa jurídico-

normativa para explicar por que uma norma é inconstitucional e, apesar disso, válida. Ele acrescenta que, no prazo delineado pela Corte, não necessariamente o Legislativo tomará uma iniciativa e, ainda que o faça, não necessariamente fruirão os “resultados desejados”71 (IPSEN, 1983, p. 44).

Essa multiplicidade de nuances no sistema alemão oferece correlações metodológicas e político-jurídicas pertinentes, concernentemente às normas em situação de insuficiente adequação.

De início, no que tange ao resultado interpretativo de identificação de normas dessa categoria, os dois mecanismos jurídicos apresentados transparecem

69 Cf. STRECK, Lenio Luiz. 30 anos da CF em 30 julgamentos: uma radiografia do STF. Rio de

Janeiro: Forense, 2018. p. 180. Para a leitura do resumo da decisão em português, cf. MARTINS, Leonardo (organizador). Cinquenta anos de jurisprudência do Tribunal Constitucional Federal alemão. Berlin: Konrad Adenauer Stiftung E. V., 2005. p. 827-829.

70 Para a leitura de tradução da decisão, cf. FRITZ, Karina Nunes. Tribunal Constitucional Alemão

admite a existência de um terceiro gênero (comentário e tradução). Civilistica.com, Rio de Janeiro, a. 6, n. 2, 2017.

71 Korioth (1991, p. 553), de um ponto de vista político-sociológico, pontua que, nada obstante, a

instituição BVerfGE e suas decisões gozam de prestigiada autoridade fática, independentemente de justificadas vinculações constitucionais por meio do sistema jurídico. O legislador, dessa maneira, poderia não questionar a vinculação jurídico-normativa, mas diretamente aceitar a autoridade fática para o cumprimento dos comandos das decisões. Para ele, sob a ótica jurídico-normativa, o Legislativo ainda seria obrigado a alterar uma determinação legal exatamente porque a inconstitucionalidade dela estaria reconhecida, e isso seria uma razão suficiente para tanto (KORIOTH, 1991, p. 569).

tendências discrepantes. O apelo ao legislador volta-se para um reconhecimento

temporário e, ao mesmo tempo, absoluto de completude normativa. A declaração de

inconstitucionalidade sem pronúncia de nulidade, por sua vez, designa uma definitiva

incongruência da norma com o ordenamento jurídico.

De outra parte, a respeito da atividade interpretativa que deve ser desenvolvida uma vez constatada a presença de uma norma complexa, os critérios e opções empregados são distintos. Enquanto na Appellentscheidung a metodologia assumida é indireta e restringe-se à sugestão prognóstica – e quase ameaçadora – do desenvolvimento da atividade interpretativa por meio de uma mudança legislativa, na Unvereinbarkeitserklärung o Tribunal consolida claramente a imperfeição do estado de coisas, legando ao Legislativo a incumbência de repará-lo mediante um procedimento democrático – na expectativa de que ele de fato aconteça.

2.2.3 Pensando indutivamente: o que aprendemos com a prática das normas