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2.2 PRÁTICA

2.2.2 Tribunais constitucionais estrangeiros

2.2.2.2 O estado de coisas inconstitucional na Corte Constitucional da

O contexto no qual as conhecidas decisões da Corte colombiana se circunscrevem54 é a experiência social do Sul global, profundamente afetado pelo capitalismo e pelo colonialismo. Diante disso, Santos (2007, p. 85) aponta que uma perspectiva epistemológica a esse respeito somente é adequada a partir do reconhecimento de uma ecologia de saberes. Ela tem por escopo a concretização de um pensamento pós-abissal55, no qual há uma co-presença radical56, uma inesgotável diversidade epistemológica do mundo, cruzamento de conhecimentos e ignorâncias e a consideração do conhecimento como intervenção no real, e não como representação do real (SANTOS, 2007, p. 85-88).

53 Sobre esse tema, cf. TEIXEIRA, Anderson Vichinkeski. Ativismo judicial: nos limites entre

racionalidade jurídica e decisão política. Revista Direito GV, São Paulo, v. 1, n. 8, p. 37-57, jun. 2012. p. 41.

54 Semelhante, nesse sentido, às analisadas decisões do STF.

55 “O pensamento pós-abissal pode ser sintetizado como um aprender com o Sul usando uma

epistemologia do Sul” (SANTOS, 2007, p. 85).

56Ela “significa que práticas e agentes de ambos os lados da linha são contemporâneos em termos

igualitários. Implica conceber simultaneidade como contemporaneidade, o que requer abandonar a concepção linear de tempo. Só assim será possível ir além de Hegel, para quem ser membro da humanidade histórica – isto é, estar deste lado da linha – significava: no século V a.C., ser um grego e não um bárbaro; nos primeiros séculos da era cristã, ser um cidadão romano e não um grego; na Idade Média, ser um cristão e não um judeu; no século XVI, ser um europeu e não um selvagem do Novo Mundo; e no século XIX ser um europeu (incluindo os europeus deslocados da América do Norte) e não um asiático, estagnado na história, ou um africano, que sequer faz parte dela” (SANTOS, 2007, p. 85)

Observada essa dada conjuntura histórico-social, o desenvolvimento da teoria colombiana do estado de coisas inconstitucional deu-se a partir de casos estruturais, que são caracterizados por: i) atingimento de um grande número de pessoas, que alegam violação de seus direitos; ii) responsabilidade de múltiplas instituições governamentais por falhas de políticas públicas que contribuem para essas violações; e iii) imposição de remédios estruturais, por meio dos quais cortes instruem essas instituições a tomar ações coordenadas (RODRÍGUEZ-GARAVITO, 2011, p. 1671).

Dessa maneira, a tese do estado de coisas inconstitucional tomou lugar não somente no âmbito de um Sul global, afetado e construído historicamente com muitas contradições políticas e sociais, mas também em situações complexas nesse local, marcadas comumente por expressiva injustiça. Essa tese é definida por Lyons, Monterroza e Meza (2011, p. 71-72, tradução nossa) como:

Um mecanismo ou técnica jurídica criada pela Corte Constitucional, mediante a qual declara que certos fatos resultam abertamente contrários à Constituição, por violarem de maneira massiva direitos e princípios consagrados pela mesma, instando consequentemente as autoridades competentes, para que no âmbito de suas funções e dentro de um período razoável, adotem as medidas necessárias para corrigir ou superar tal estado

de coisas.

A inovação constitucional surgiu com a SU n° 559 de 1997, na qual professores de vários municípios alegaram o não recebimento de benefícios previdenciários, a despeito de ter havido desconto em seus salários (COLÔMBIA, 1997)57. Dentre os casos mais destacáveis, um dos quais o tribunal agiu de maneira mais acertada58 foi o da sentença T-025 de 2004. Nele, a CCC declarou que a emergência humanitária causada pelo desalojamento forçado constituiria um estado de coisas inconstitucional, que violaria massivamente direitos humanos por meio de falhas sistemáticas do Estado (COLÔMBIA, 2004).

Nessa decisão, a Corte assentou que dentre uma grande diversidade de fatores que se devem ter em conta para a determinação de um estado de coisas inconstitucional, importa também a omissão legislativa para evitar a vulnerabilização

57 “Nessa decisão, o tribunal constitucional faz suas primeiras considerações sobre ECI, entendendo

que se um ‘estado de coisas’ contrariaria os preceitos da Carta, a ponte entre os demais órgãos do estado e o tribunal se torna, portanto, imperativa” (SANTOS et al., 2015, p. 2599).

58 Cf. RODRÍGUEZ-GARAVITO, César. Beyond the Courtroom: the impact of judicial activism on

socioeconomic rights in Latin America. Texas Law Review, v. 89, p. 1669-1698, nov. 2011; e HERNÁNDEZ, Clara Inés Vargas. La garantía de la dimensión objetiva de los derechos fundamentales y labor del juez constitucional colombiano en sede de acción de tutela: el llamado "estado de cosas inconstitucional". Estudios Constitucionales, Santiago, v. 1, n. 1, p. 203-228, 2003.

de direitos (LYONS; MONTERROZA; MEZA, 2011, p. 72). Isso significa que as situações estruturais pressupõem insuficiências não apenas de concretização da constituição por poderes administrativos, mas também de concretização normativa pela legislação infraconstitucional.

Por isso é que, em algumas decisões dessa natureza, a CCC não se limitou a declarações de inconstitucionalidade, estendendo-se outrossim ao detalhamento de parâmetros para novas leis a serem produzidas pelo congresso59 (RODRÍGUEZ- GARAVITO, 2011, p. 1690).

No fundo dessa compreensão, o surgimento de normas complexas – situadas também em um plano de falta de concretude prática das normas já existentes – está diretamente vinculada ao entendimento dos direitos fundamentais como prescrições constitucionais que impõe deveres de atuação às autoridades públicas. Isso decorre da garantia desses direitos em sua dimensão objetiva e sistêmica (HERNÁNDEZ, 2003, p. 212).

Para além disso, vale salientar que a decisão na sentença T-025 foi fruto de uma escuta a diversas instituições, organizações e à população duramente afetada. Em razão disso, uma crescente literatura tem se inspirado nesse julgamento para a promoção de deliberações democráticas em processos jurisdicionais60. Dixon (2007, p. 393, tradução nossa), a esse exemplo, defende “um compromisso a um ‘diálogo’ constitucional como o modelo mais desejável de cooperação entre cortes e legislaturas no cumprimento de direitos socioeconômicos”.

Sintetizando o que foi discutido nesta subseção, a constatação de normas insuficientemente adequadas por meio da prática colombiana do “estado de coisas inconstitucional” constitui, então, apenas uma variante pertencente a casos estruturais e advém da consideração objetiva dos direitos fundamentais, resultando em interpretações construtivas desses direitos em casos concretos ou mesmo em comandos de criação legislativa ao poder legiferante.

59 Segundo a crítica de Streck (2015), a existência de insuficiência legislativa como critério na teoria

colombiana para aplicação do estado de coisas inconstitucional parece ser especificamente o ponto desvirtuado pelo STF no uso dessa teoria, pois a legislação brasileira já teria previsto todo o necessário no caso em que o estado de coisas constitucional foi utilizado.

60 Cf. RODRÍGUEZ-GARAVITO, César. Beyond the Courtroom: the impact of judicial activism on

2.2.2.3 O apelo ao legislador e a declaração de inconstitucionalidade sem pronúncia