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Um consenso em dois níveis: da deliberação legislativa à decisão jurídica

enfrenta, contudo, a necessidade de um outro procedimento prévio para a sua aprovação. Esse é o que deve ocorrer em um dado parlamento.

Pensando em uma teoria política da justiça, que é sua própria teoria moral, John Rawls traz a ideia de um consenso sobreposto (overlapping consensus). Essa ideia, para ele, surge em uma sociedade diante do pluralismo razoável120 (fact of

reasonable pluralism), que impossibilita a garantia da estabilidade de uma sociedade

bem-ordenada exclusivamente por meio de uma doutrina abrangente razoável (RAWLS, 1996, p. 134).

Esse elemento da teoria rawlsiana é relevante para a presente seção, pois o formato do consenso sobreposto é organizado em dois níveis, de forma semelhante à proposição esquadrinhada neste trabalho. Em razão disso, pretende-se explorar essa ideia em Rawls, tendo-se por vista o transporte dos elementos teóricos relevantes dela a uma aplicação legítima de normas complexas.

A gestão do desacordo, em Rawls, assume primeiro um estágio que termina com um consenso constitucional, no qual o consenso não é profundo e os princípios aceitos caracterizam-se como critérios instrumentais, e, depois, um segundo estágio que finda com um consenso sobreposto (RAWLS, 1996, p. 158).

118 Cf. seção 2.2 deste trabalho.

119 Cf. ALEXY, Robert. Die Doppelnatur des Rechts. Der Staat, Berlin, v. 50, n. 3, p. 389-404, 2011. p.

396 e ss.

120 “Uma sociedade democrática convive com uma diversidade de doutrinas filosóficas, morais e

religiosas, muitas vezes em conflito. O autor as entende como doutrinas abrangentes razoáveis. Cumpre destacar que o consenso refere-se a essas doutrinas, ou seja, não diz respeito a um ‘pluralismo em si’, mas a um ‘pluralismo razoável’. Este é próprio de instituições livres e que se fortalecem com o passar do tempo. O ‘pluralismo como tal’ admite doutrinas ‘absurdas e agressivas’, incompatíveis para um consenso, portanto excluídas de uma concepção política de justiça. São impróprias para uma sociedade democrática” (WEBER, 2011, p. 136).

O formato não profundo do consenso constitucional deve-se ao fato de os indivíduos não se basearem em uma concepção pública compartilhada para desenvolvê-lo. Ele abrange apenas procedimentos políticos do governo democrático, não enveredando pela raiz da estrutura básica da sociedade (RAWLS, 1996, p. 158- 159).

Um consenso constitucional estável é formado, fundamentalmente, a partir de três elementos. Primeiro, as instituições políticas básicas devem determinar o conteúdo de certas liberdades e direitos fundamentais; segundo, os princípios (liberais) devem ser aplicados em acordo com a razão pública; e terceiro, essas instituições políticas básicas devem incentivar a cooperatividade na vida política (RAWLS, 1996, p. 161-163). Com isso, sendo aceitos pelo menos tais princípios de uma constituição democrática e liberal, o consenso constitucional é alcançado, movendo a sociedade de um pluralismo simples em direção agora a um pluralismo razoável, no qual o consenso sobreposto poderá ser desenvolvido (RAWLS, 1996, p. 163-164).

O consenso sobreposto, como segundo nível, é extenso e, para Rawls, demonstraria a insuficiência de um consenso constitucional meramente procedimental (RAWLS, 1996, p. 166). Ele requisitaria uma fundamentação em uma concepção política de justiça que considere as concepções de sociedade e pessoa nos termos da justiça como equidade (SILVEIRA, 2007, p. 23).

Por isso, nesse segundo estágio, os indivíduos debateriam considerando a situação de uma posição original121, marcada pelas circunstâncias da justiça, partindo à ideia de justificação pública (idea of public justification) por meio de um “equilíbrio reflexivo”. O objetivo buscado com isso seria a especificação da justificação apropriada a uma concepção política de justiça de uma sociedade democrática, qualificada pelo pluralismo razoável (SILVEIRA, 2007, p. 25).

A estabilidade de uma sociedade bem-ordenada seria alcançada, assim, quando a estrutura básica da sociedade passa a ser regrada pela concepção política da justiça mais razoável, confirmada pelo consenso sobreposto122. Isso acarretaria,

121 Cf. RAWLS, John. Uma teoria da justiça. São Paulo: Martins Fontes, 1997. p. 127 e ss.

122 Essa concepção mais razoável, para Rawls, são seus dois princípios de justiça, segundo os quais

“primeiro: cada pessoa deve ter um direito igual ao mais abrangente sistema de liberdades básicas iguais que seja compatível com um sistema semelhante de liberdades para as outras. Segundo: as desigualdades sociais e econômicas devem ser ordenadas de tal modo que sejam ao mesmo tempo (a) consideradas como vantajosas para todos dentro dos limites do razoável, e (b) vinculadas a posições e cargos acessíveis a todos” (RAWLS, 1997, p. 64).

ainda, o fato de que as discussões políticas seriam sempre decididas com base nas razões dessa concepção política de justiça (RAWLS, 1996, p. 391-394).

A concepção rawlsiana, como muito brevemente pôde-se observar, fornece proposições abrangentes para uma teoria geral da justiça e da vida pública em uma sociedade. Conforme antecipado, todavia, a lógica dos dois estágios para um consenso sobreposto adequa-se analogamente à situação específica das decisões em casos de normas complexas123.

A dinâmica à aplicação legítima das normas insuficientemente adequadas, conforme verificado na subseção anterior, exige um processo de institucionalização dos discursos de fundamentação com função de complementação normativa. Conforme se está a propor, essa positivação pode ser realizada por meio da ação do Legislativo, capaz de traçar normas e diretrizes procedimentais à aplicação delas no âmbito do Judiciário.

A ideia do consenso sobreposto é aqui valorosa, então, no sentido de que deve haver, também no caso das normas complexas, discursos voltados ao consenso em dois níveis. Um deles no campo parlamentar e o outro no jurisdicional.

Esse primeiro não deve ser profundo, pautando-se notadamente em questões procedimentais básicas que serão relevantes para o desenvolvimento do segundo. Nesse sentido, o “consenso constitucional” rawlsiano no terreno das normas insuficientemente adequadas, que aqui denominaremos “consenso legislativo”124, aspira fornecer as condições abrangentes de facticidade que delinearão os discursos de aplicação diante de normas complexas – inclusive seu encetamento por novos discursos de fundamentação.

O consenso legislativo, por isso, aponta e baliza a trilha a ser perfilhada pela Jurisdição ante a um cinzento “vácuo normativo”. Ele é o consenso geral que tem por vista negar absolutamente a possibilidade de decisões judiciais arbitrárias, concordando no estabelecimento de um procedimento racional para lidar com o fenômeno das insuficiências normativas.

123 Assim como Waldron valeu-se do conceito rawlsiano amplo de “circunstâncias da justiça” para

incrementar a sua ideia de “circunstâncias da política”, usamos a lógica geral dos dois níveis no “consenso sobreposto” para pensar a legitimidade e o possível desenvolvimento de consenso e fundamentações ainda na concepção das decisões judiciais em casos de insuficiência normativa.

124 Leva-se em consideração aqui, conforme já explorado anteriormente, que o uso da nomenclatura

“consenso” se direciona não a um consenso necessariamente fático, mas a um procedimento racional voltado ao consenso que tem em conta as dimensões ideal e real do direito.

Tendo ele sido convencionado, parte-se ao segundo consenso requestado, que equivaleria ao “consenso sobreposto” rawlsiano. O designaremos como “consenso construído”.

O objetivo do consenso construído é a complementação normativa das normas complexas. Ele se opera, nesse sentido, mediante a participação ativa da esfera pública no domínio da decisão judicial, tencionando o aperfeiçoamento dos discursos de aplicação através da fundação de novos discursos de fundamentação normativa.

O consenso legislativo, inserto nessa lógica, relaciona-se com o consenso construído de tal maneira que o desenvolvimento legítimo do segundo depende do primeiro. Esse consenso posterior, que em Rawls encaminhar-se-ia à assunção dos dois princípios de justiça, toma aqui a forma de um discurso aberto a razões das mais diversas, que devem ser filtradas e limitadas pelas condições estabelecidas no consenso legislativo anterior.

O consenso construído, assim, é elaborado procedimentalmente por meio de argumentações no contexto de um pluralismo razoável de ideias. Ele direciona-se a atingir, como resultado, uma decisão racional legítima e que, ao mesmo tempo, insere- se na história institucional na qual o direito está permeado.

Enquanto o consenso legislativo é abrangente e não enfrenta verticalmente as diferentes interpretações componentes do mundo da vida, o consenso construído parte ao embate cooperativo entre elas. Esse absorve e examina, por isso, a diversidade argumentativa presente na sociedade, possibilitando que cada um dos envolvidos traga para a discussão o melhor pensamento para uma interpretação da vida (LASKI, 2000, p. 53).

Dessa forma, tem-se que a aplicação legítima de normas insuficientemente adequadas pressupõe a restauração da tensão entre facticidade e legitimidade no direito através de um formato de consensos sucessivos, ocorridos em dois estágios: o consenso legislativo e o consenso construído.

Tendo isso em consideração e já havendo sido ambientadas as circunstâncias e nuances nas quais o consenso construído ocorre125, parte-se à designação e caracterização de quais são as incumbências do Poder Legislativo para um consenso

legislativo, a fim de concretizar essa dinâmica de legitimação das decisões judiciais frente a insuficiências normativas.