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2.2 PRÁTICA

2.2.2 Tribunais constitucionais estrangeiros

2.2.2.1 Ativismo judicial na história da Suprema Corte dos EUA

A gênese e evolução do que tem se denominado “ativismo judicial” encontra lugar sobretudo na trajetória da Suprema Corte estadunidense42. Para Baum (2010), ele engloba tanto a declaração de inconstitucionalidade de leis quanto a reinterpretação de leis sem a declaração de inconstitucionalidade. Nesse âmbito especificamente é que a hipótese de surgimento da norma não suficientemente adequada se insere.

Os contornos que a figura do ativismo assumiu nos EUA, assim como suas idas e vindas, foram variados.

Originalmente, a nomenclatura foi empregada por Arthur Schlesinger Jr. (1947), que apresentou o termo “ativismo judicial” (judicial activism) de maneira antagônica à “autorrestrição judicial” (judicial self-restraint). Por essa direção, sua formulação apontou que a questão é muito mais político-institucional do que jurídico-

41 O mesmo tema não foi abordado na jurisprudência do STF porque as decisões, apesar de

semelhantes, tiveram características aparentemente distintas e frutos de controvérsia, conforme se elucida na nota de rodapé n° 59.

42 Segundo Campos (2016, p. 61), “se fosse escrito um livro sobre a história geral do ativismo judicial,

metodológica, versando diretamente sobre o espaço decisório da Suprema Corte (CAMPOS, 2016, p. 67).

Na perspectiva de Schacter (2017, p. 218-223), há duas eras na história do ativismo judicial estadunidense. A primeira seria de 1896 a 1937, abrangendo um período de diversas decisões em favor da proteção da propriedade privada e interesses empresariais, inclusive o que alguns denominam de Era Lochner43, até o New Deal. A segunda iria dos primórdios da Corte Warren44 em 1954 até os tempos atuais.

Nessa classificação, algumas decisões anteriores da Corte45, que também dialogam com a temática, não estariam diretamente compreendidas. Da mesma maneira, a New Deal Court46 (aproximadamente entre 1937 e 1954) teria funcionado

muito mais como uma transição para o que veio a se desenvolver na Corte Warren, do que propriamente uma fase própria do ativismo judicial47.

Tratando da primeira fase, o caso mais emblemático é o Lochner v. New York. Nele, houve o questionamento da constitucionalidade de uma lei de Nova York que havia limitado as horas de trabalho de padeiros em 60 horas semanais e 10 horas diárias, objetivando fundamentalmente proteger a saúde e bem-estar desses trabalhadores e interferindo diretamente, assim, em relações contratuais de trabalho (ESTADOS UNIDOS, 1905). A Suprema Corte declarou a lei inconstitucional, entendendo que ela violava a liberdade contratual, que seria garantida pela Emenda 14 da Constituição estadunidense.

43 Cf. BARBOZA, Estefânia Maria de Queiroz; KOZICKI, Katya. O judicial review e o ativismo judicial

da Suprema Corte americana na proteção de direitos fundamentais. Espaço Jurídico Journal Of Law, Joaçaba, v. 17, n. 3, p. 733-751, dez. 2016.

44 “A Corte Warren foi o grande momento jurisprudencial norte-americano dos direitos e liberdades civis

do século XX”. [...] “A corte negou que a Constituição tivesse uma natureza estática e a enxergou como um ‘documento vivo’ (living document), cujos significados deveriam ser sensíveis às mudanças sociais. Orientada então pela ideia de igual dignidade do homem e sob a perspectiva democrático-inclusiva, a Corte Warren interpretou criativamente os princípios constitucionais, expandindo seus sentidos e afirmando direitos implícitos ou apenas vagamente definidos para promover a igualdade formal, notadamente na questão racial, a nacionalização de liberdades civis e a equidade do processo democrático, superando o status da Suprema Corte ‘como reduto do conservadorismo antidemocrático e anti-igualitário’” (CAMPOS, 2016, p. 86).

45 Como os casos Marbury v. Madison e Dred Scott v. Sandford.

46 Foi uma corte formada por várias indicações de Roosevelt, que pretendia orientá-la pelos princípios

do New Deal, buscando superar um ativismo judicial conservador (CAMPOS, 2016, p. 82).

47 Nesse cenário, também gerou influência a ideia de Harlan Fisk Stone – expressa na nota de rodapé

n° 4 do caso United States v. Carolene Products Co., em 1938 – em estabelecer um controle de constitucionalidade mais ou menos forte dependendo da matéria envolvida. De acordo com Campos (2016, p. 86): “Os ideais do New Deal formaram a base política e ideológica, a doutrina de Stone, a base teórica do ativismo judicial liberal da Corte Warren”.

Dessa decisão não se deduz a existência de uma norma complexa, pois a norma estadual não foi considerada insuficiente, mas absolutamente inconstitucional. De toda forma, ela ilustra um aspecto relevante do ativismo judicial que é esclarecido nas considerações de um dos “votos vencidos” do Tribunal. Para John Marshall Harlan, nessa decisão “a maioria da Corte estava decidindo sem levar em conta a capacidade deliberativa do legislador” (CAMPOS, 2016, p. 76). A postura ativista, segundo esse dizer, pode servir então como catalisadora à identificação de incompletudes normativas e a decisões com caráter criativo.

Distinguindo-se da primeira fase, a segunda foi aparentemente ainda mais multifária. Ela, inaugurada com a Corte Warren, enxergou a Constituição como um “documento vivo” (living document), sensível às mudanças sociais (CAMPOS, 2016, p. 86). De acordo com essa perspectiva, provisões legais gerais consistem em direitos ou princípios de moralidade política que se expressam na atualidade, e não em concepções sobre o que era entendido por esses direitos ou princípios quando foram promulgados ou pelo que foi intencionado por aqueles que escolheram incluí-los no texto constitucional (WALUCHOW, 2018).

Dentre os grandes julgamentos dessa Corte, estiveram, por exemplo, os casos Brown v. Board of Education; Griswold v. Connecticut; Engel; e Sullivan. A dimensão de relevância do conjunto dessas decisões para as normas complexas não é tanto no que toca à identificação delas, mas especialmente à postura judicial desenvolvida e que frequentemente é assumida para lidar com elas. Ela consiste no aspecto da “interpretação criativa e evolutiva de normas constitucionais vagas e indeterminadas, dotadas de alta carga valorativa” (CAMPOS, 2016, p. 93).

Após uma guinada política conservadora nos Estados Unidos – com presidentes como Richard Nixon e Ronald Reagan, que puderam nomear vários novos ministros à Suprema Corte – foi inaugurada uma contraposição à postura liberal- inovativa da Corte Warren. Como ferramenta metodológica contrarrevolucionária, essa iniciativa apresentou o originalismo (CAMPOS, 2016, p. 97). O objeto da interpretação constitucional, para ela, deveria ser sempre fixado por fatores como o entendimento público original ou as intenções do legislador histórico48.

48 Para uma visão geral da multiplicidade de formas de originalismo na doutrina estadunidense, cf.

WALUCHOW, Will. Constitutionalism. 2018. Disponível em:

Uma decisão marcante deste período foi a Bush v. Gore, no qual a Corte Rehnquist49 decidiu o rumo da eleição presidencial de 2000. Ela é um exemplo do que, para Chemerinsky (2010, p. 250), é uma retórica conservadora hipócrita sobre a restrição judicial, tão exaltada pelos originalistas50, já que a Suprema Corte teria, no fim das contas, decidido de maneira ativista.

As críticas liberais a esse respeito, contudo, não incidiram ao espaço de atuação político-institucional da Corte então ocupado51, hábil à potencialização da identificação e decisão sobre normas insuficientemente adequadas. Longe disso, elas recaíram sobre a substância e aos resultados concretos do que era julgado, gerando um debate ativismo v. ativismo52 (CAMPOS, 2016, p. 101, 103).

De toda maneira, vê-se que a história proativa da Suprema Corte implicou repetidamente em limitações à eficácia da produção legislativa através da interpretação judicial extensiva. Segundo Ramos e Oliveira Junior (2014, p. 37), o ativismo da Suprema Corte perpassou um primeiro momento de contenção legiferante dos Estados membros, um segundo de contenção do poder de regulamentação da economia e uma terceira de contenção da atividade legislativa no âmbito de direitos e garantias individuais. Mesmo através de formas diferentes de expressão, o que

49 Foi uma Corte composta com o intuito de reforçar o conservadorismo na Suprema Corte

estadunidense. A despeito disso, a Corte Rehnquist atravessou fases diversas, sendo ora mais ora menos conservadora. Cf. CAMPOS, Carlos Alexandre de Azevedo. A Evolução do Ativismo Judicial na Suprema Corte Norte-Americana. Revista do Ministério Público do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, v. 1, n. 60, p. 59-117, jun. 2016. p. 98 e ss.

50 Tratando de juízes alinhados ou representantes dessa posição, e avaliando a conjuntura atual da

Suprema Corte, diz Campos (2016, p. 106): “Roberts e Alito, assim como Scalia, Thomas, Kennedy e alguns outros nomeados pelos ex-presidentes Republicanos, não são e não têm sido juízes que pura e neutralmente aplicam os significados originais da Constituição. Ao contrário, eles criam regras e princípios próprios de forma assertiva e expansiva para assegurar a prevalência do resultado que acham o mais adequado”.

51 A colocação de Schacter (2018, p. 214) tem exatamente por vista esclarecer essa questão,

apontando que a crítica à supremacia judicial foca especialmente na finalidade (no sentido de que os juízes reclamam a autoridade final para vincular os outros poderes), enquanto a crítica ao ativismo judicial, em si, foca em como as cortes interpretam o direito. Essa perspectiva, esgota todas as possibilidades de resolução ativista de um caso em moldes substanciais ou substancialistas em sentido geral. Ainda que isso possa significar o recurso a uma teoria procedimentalista para lidar com essa questão, no contexto estadunidense também tem sido oferecidas outras alternativas. Nesse sentido, cf. WALDRON, Jeremy. The Core of the Case against Judicial Review. The Yale Law Journal, New Haven, v. 115, n. 6, p. 1346-1406, abr. 2006.

52 Nessa toada, os ativistas conservadores são atingidos pela mesma crítica direcionada aos ativistas

liberais, especialmente da Corte Warren: “É possível afirmar a desconfiança da Corte em relação ao próprio processo democrático como apto a reparar eventual violação à Constituição, visto que essa inconstitucionalidade também afetava o funcionamento adequado do processo democrático, e os legisladores não eram confiáveis para adequar a legislação, porque eram os próprios interessados e beneficiados pela lei inconstitucional (BARBOZA; KOZICKI, 2016, p. 747).

permaneceu constante foi a construção judicial ativa do significado e impacto de normas jurídicas.

Em arremate, então, a proposta ativista de enfrentamento de problemas sociais e normativos, frequentemente identificada com o fenômeno de judicialização da política53, tende a estender a atividade de criação normativa no âmbito do Judiciário. Suas dimensões envolvem uma diversidade de elementos, tais como a interpretação constitucional e legal criativa, a autoexpansão de poder decisório, o avanço de direitos indeterminados e, nesse contexto, a falta de deferência aos outros poderes (CAMPOS, 2016, p. 110).

Mais que uma metodologia, esses fatores do ativismo judicial desvelam uma

postura impulsionadora para o reconhecimento de normas insuficientemente

adequadas. A despeito de numerosas distinções de parâmetros, também revelam distintas formas de decidir frente a essas prescrições normativas.