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A avaliação do desacordo no direito é significativa às normas complexas ao menos sob dois aspectos: i) quanto ao dissenso sobre a intenção da lei (ou do legislador) da qual advém a norma de possível adequação insuficiente; e ii) quanto ao dissenso na escolha interpretativa acerca da existência e dos critérios de decisão para uma norma desse gênero.

O primeiro aspecto, que trata de uma questão mais pontual, é relevante, porque a vontade da lei ou do legislador é frequentemente usada como argumento central para a constatação de suficiência ou insuficiência normativa na prática

jurídica84. Ocorre que, por várias razões, esse tipo de argumentação, apesar de possível e aceitável, só deve ser tomada como complementar a outros fundamentos. Isso é sustentado através de visões bastante diversas – algumas das quais inclusive repudiam completamente esse tipo de fundamentação.

Streck (2018, p. 272), por exemplo, rejeita tanto perspectivas objetivistas (vontade da lei) quanto subjetivistas (vontade do legislador)85, em razão do atual paradigma pós-positivista ou não positivista. Ele acarretaria inexoravelmente uma distinção entre texto e norma, na qual a interpretação do direito não é o ato revelador da vontade da lei ou do legislador86.

Imerso no contexto do direito como integridade87, Dworkin (1986, p. 314) situa o ponto de vista de Hércules como examinador das vontades históricas dos legisladores. Ele consideraria essas intenções, todavia, como meros atos políticos interpretativos, que compõe apenas uma das expressões da integridade a ser considerada pelo juiz:

O ponto de vista de Hércules não exige tal estrutura. Ele entende a ideia do propósito ou da intenção de uma lei não como uma combinação dos propósitos ou intenções de legisladores particulares, mas como o resultado da integridade, de adotar uma atitude interpretativa com relação aos eventos políticos que incluem a aprovação da lei. Ele anota as declarações que os legisladores fizeram no processo de aprová-la, mas trata-as como eventos políticos importantes em si próprios, não como evidência de qualquer estado de espírito por detrás delas (DWORKIN, 1999, p. 380).

Em uma outra perspectiva, enxergando a dificuldade de se utilizar o elemento volitivo como normatividade sob um espectro da prática e conveniência no Direito, Grimm (2016, p. 207) identifica dois problemas específicos. O primeiro é o de que na maioria dos casos é difícil – senão impossível – discernir o entendimento original ou a intenção original. O segundo é similar a um problema enfrentado pelo positivismo: há um espaço extremamente limitado – ou mesmo nenhum – para adaptar normas legais à mudança social.

Em uma postura estimável, Jeremy Waldron situa pragmaticamente a intenção do legislador no contexto dos desacordos. A fim de elucidar sua posição

84 Sobre isso, cf. a seção 2.2 deste trabalho.

85 Para um aprofundamento acerca dessas diferentes correntes, cf. FERRAZ JUNIOR, Tercio Sampaio.

Introdução ao estudo do direito: técnica, decisão, dominação. 8. ed. São Paulo: Atlas, 2015. p. 222 e ss.

86 Para aprofundamento dessa questão no pensamento do autor, cf. STRECK, Lenio Luiz.

Hermenêutica Jurídica e(m) Crise: uma exploração hermenêutica da construção do Direito. 11. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2013, passim.

acerca da interpretação conforme a vontade da lei ou do legislador, todavia, é necessário esclarecer elementos centrais de sua teoria sobre o direito e sobre a política.

Para ele, não somente a aplicação, mas especialmente a produção do direito se insere nas “circunstâncias da política”88, marcadas pela existência de dissenso político ou moral e pela necessidade de estabelecimento de uma autoridade para resolver desavenças (WALDRON, 1999a, p. 102). Essa autoridade, por sua vez, teria como lógica elementar a necessidade de uma decisão final e de um processo decisório final frente aos desacordos entre as pessoas (WALDRON, 1998, p. 333).

Nesse contexto, a chave mediadora entre a autoridade e os procedimentos que intermediam o dissenso é a participação. Ela é vista como o direito dos direitos (WALDRON, 1998, p. 337), que, em meio a um dado procedimento89, no qual os desacordos podem ser incorporados e respeitados, é conferida validade ao direito.

Exatamente por causa disso, a teoria waldroniana refuta propostas de interpretação da lei que consideram as intenções da lei ou do legislador:

Se a autoridade da lei deriva exatamente do fato de ter sido aprovada de acordo com um conjunto de procedimentos que levam em consideração os desacordos, recorrer à intenção do legislador, como, por exemplo, a debates e posicionamentos que foram vencidos na votação final, é, na concepção de Waldron, justamente desrespeitar a opinião ou o ponto de vista que foi vitorioso de acordo com a decisão majoritária (CONSANI, 2015, p. 2437). A interpretação de uma lei, então, deve partir da consideração dela como um ato do parlamento em si, e não um ato da maioria. Uma dada legislação, considerada na pluralidade que compõe as circunstâncias da política, é apenas a emergência de “mais uma” (pluribus unum) dentre variadas visões, conceitos e propostas trazidas e fundamentadas em um procedimento coletivo de decisão (WALDRON, 1999a, p. 144). Dessa maneira, figurar-se uma intenção abstrata em meio a todo esse dissenso consistiria em um erro.

A despeito de essa ser uma razão forte e consistente para minimizar ou, eventualmente, até mesmo expurgar a relevância da interpretação baseada na intenção da lei ou do legislador – como pretende Waldron –, considera-se que um

88 Waldron usa esse termo como uma adaptação ao de “circunstâncias da justiça”, usado por John

Rawls em sua teoria da justiça. Para uma detalhada visão desse conceito, cf. RAWLS, John. Uma teoria da justiça. São Paulo: Martins Fontes, 1997. p. 136 e ss.

89 Conforme se apresentará mais adiante, o procedimento de decisão adequado, para Waldron, é o da

procedimento verdadeiramente participativo é um procedimento abertamente argumentativo. E, sendo a atividade interpretativa exercida pela Jurisdição essencialmente argumentativa (ALEXY, 2015b, p. 211), não pode haver um fechamento a priori para quaisquer argumentos que venham a ser trazidos.

Ao contrário, as fundamentações das mais diversas, mesmo contraditórias com uma realidade dissensual da sociedade, podem ser trazidas para a discussão em um procedimento de decisão. O que cabe ao procedimento, todavia, é ponderar os diferentes argumentos oferecidos no caso concreto. Em resultado, pode-se inclusive redundar na relativa ou completa irrelevância da interpretação mediante a vontade da lei ou do legislador. Isso, entretanto, só não pode acontecer antes sequer da oportunização do enfrentamento dessa proposição em um contexto específico, situado.

Frente a isso, tem-se que, a despeito da pluralidade de desacordos na produção de leis, os argumentos genéticos – que se referem à vontade da lei ou do legislador – são aceitáveis na argumentação sobre a existência de normas complexas. Sua relevância, todavia, é condicionada a argumentos contrários que, no caso concreto, podem ser determinantes até para a sua absoluta irrelevância.

O segundo aspecto significativo às normas complexas refere-se ao desacordo não simplesmente nas considerações acerca de um tipo de argumentação – como o foi no primeiro aspecto –, mas sim no dissenso quanto à própria escolha interpretativa em si: o dissenso sobre a existência e os critérios de decisão frente a uma insuficiente adequação normativa.

Em cenários de aparentes infindáveis confrontos entre interesses e opiniões, Günther (2006, p. 33) afirma que um compromisso precisa ser firmado. Através dele, o dissenso poderá ser trabalhado, apesar de ser integralmente eliminado somente em raras ocasiões. De toda forma, a gestão do dissenso conduz à limitação significativa de insatisfações, ainda que isso não signifique sua completa superação (GÜNTHER, 2006, p. 33).

O próprio Waldron (1999b, p. 162) também assenta claramente – apesar de neste momento estar tratando do contexto da política – que o desacordo substancial leva à necessidade de fixação de um procedimento decisório. Ele acrescenta que esse procedimento tem a tarefa não de reacender controvérsias que geraram as desavenças no início. Para ele, mesmo diante do dissenso, é necessário o

compartilhamento de uma teoria da legitimidade para o procedimento decisório que seja hábil a resolver as controvérsias (WALDRON, 2006, p. 1371).

Sabendo que o espaço no qual a interpretação de normas complexas se insere é mesmo uma zona cinzenta, na qual todos os argumentos estão sujeitos ao dissenso entre concepções teóricas radicalmente discordantes e no mínimo há uma suspeita forte sobre a falta de pilares legítimos para a afirmação de uma normatividade no caso, parece haver a necessidade de estabelecimento de um procedimento pelo qual essas incertezas e dissensos podem ser solvidos.

Em face dessa carência por um procedimento e da realidade de uma comunicação alimentada pelo alto risco de dissenso, Habermas (1994, p. 38) identifica, como uma alternativa, contextos do mundo da vida90 nos quais há um massivo pano de fundo consensual (Hintergrundkonsens). Neles, a integração social seria orientada ao entendimento mútuo por meio do agir comunicativo91 (kommunikatives Handeln).

A partir dessa orientação por uma possibilidade de entendimento no tema das insuficiências normativas, transformando o risco de dissenso em uma oportunidade para impulsionar procedimentos argumentativos institucionalizados juridicamente (HABERMAS, 1994, p. 680), parte-se ao problema da aplicação das normas complexas.