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3. A TERRA DE MAKUNAIMA

4.2 Princípios de institucionalização

4.2.1 Alunos da Educação Especial: de pessoas invisíveis a sujeitos da

A chegada dos alunos com deficiência ao sistema oficial de ensino não se deu por mecanismos naturais. Melhor dizendo, os serviços educacionais especializados, destinados ao atendimento de crianças com deficiência, não ocorreram como consequência da matrícula dessas no ensino regular.

Há falas no sentido da existência, no início dos anos 1970, de 01 aluno aparentemente normal, mas que “não aprendia”, matriculado na Escola São José, que teria despertado as discussões iniciais sobre a necessidade de um atendimento especializado específico. Tratava- se, no entanto, de um caso isolado, sendo os demais alunos que foram surgindo nos períodos iniciais, casos intencionalmente localizados pelos professores ou profissionais da Secretaria de Educação a partir de informações da comunidade.

Em termos práticos, para que os primeiros trabalhos de educação de pessoas com deficiência fossem desenvolvidos, foi necessária a realização de um processo de recrutamento60 nos bairros por crianças e adolescentes que apresentassem o perfil dos então classificados como excepcionais. Dessa forma, identificada uma criança que se supunha apresentar alguma deficiência, profissionais da própria equipe de professores, deslocavam-se à residência das famílias e, constatada a situação de excepcionalidade, passava a um processo de esclarecimento aos pais e familiares quanto à necessidade de que esta fosse encaminhada para a escola, neste momento ainda em classes especialmente destinadas a este fim.

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Expressão presente em um relatório governamental da época, coerente com a concepção militar que permeava o período, mas que pode ser traduzido, numa lógica atual, como um processo de “busca ativa”. Na perspectiva da Vigilância Epidemiológica e Sanitária, o sentido de busca ativa é ir à procura de pessoas com o fim de uma ‘identificação sintomática’ (Brasil, 2001). Vista em um sentido mais amplo, a busca ativa, de acordo com Lemke e Silva (2010), pode ser entendida como “um movimento de ir à contracorrente do automatismo da demanda espontânea, no sentido de cartografar as necessidades de saúde para além dos agravos de notificação compulsória de determinado território”.

Mesclam-se faixas etárias e condições de deficiência, com a predominância de alunos com deficiência auditiva e mental, conforme descreveremos em maior detalhamento mais adiante.

Cumpre salientar a inexistência, neste período, em Roraima, de mecanismos formais de avaliação clínica, psicológica ou pedagógica das crianças, jovens ou adultos em condição de excepcionalidade, atendo-se os professores às indicações dadas pela aparência física destes ou comportamentos explicitamente manifestos.

Em uma das entrevistas que realizamos, questionada sobre como era feito inicialmente o diagnóstico que possibilitaria definir a condição de excepcionalidade dos que seriam candidatos a alunos da nascente Educação Especial, a expressiva professora Clarice Diniz, a quem dificilmente faltavam palavras, num movimento corporal em que mimetiza um corpo disforme, retorcido, indica que o critério passava prioritariamente pelo impacto visual provocado pelo indivíduo.

Entendemos que este critério levava a que apenas as crianças com maior profundidade de comprometimento fossem identificadas e, mais do que isso, conforme debatido em outro momento da entrevista, acabava por representar uma compreensão limitada da situação, por exemplo, de crianças cuja condição impactava mais diretamente no físico do que no cognitivo, como aquelas com Paralisia Cerebral entendidas, neste contexto, como crianças com pouca condição de desenvolvimento.

Além do recrutamento domiciliar, a professora Célia Macedo relata também um processo de avaliação de crianças que, em alguns casos, já haviam sido matriculados em escolas também:

“Nós íamos saber nas escolas onde tinha crianças com problemas e tal. A gente fazia aqueles testes básicos que nós aprendemos naquela época, que até hoje o da visão ainda é o mesmo. [...]. Nós observávamos e quem fazia o teste era a Yvanete. Que era essa prima do professor Aldo. Ela era da Secretaria de Educação de Manaus na época, ela veio de lá.”

A professora Yvanete Vieira da Silva fez parte da equipe que acompanhou o professor Aldo Costa no processo de estruturação da Educação Especial em Roraima. Vinda também de Manaus, tinha experiência nesta área na Secretaria Estadual de Educação do Amazonas e respondeu pela Coordenação da Educação Especial nos anos iniciais do trabalho.

O processo de trazer crianças para a sala de aula, nem sempre se dava sem resistência dos pais ou familiares. O esconder crianças com deficiência no interior das casas, entendendo- as como um castigo divino ou como fonte de vergonha para as famílias, era comum. Mais do

que isso, predominava naquele momento a descrença na sua condição humana, a concepção de serem as pessoas com deficiência, pessoas sem capacidade de se desenvolverem, aprenderem e participarem da vida social e comunitária. Na fala de Clarice Diniz:

“Foi luta. Os pais deram mais trabalho do que as crianças. Porque ele tinha um filho lá...Deixa lá. É uma coisa. Como eles diziam...é uma coisa que não vai ter produção nenhuma. “Não é assim pai...ele tem alguma coisa boa.” E quando eles foram vendo que as crianças estavam, principalmente na parte social, estavam se desenvolvendo, aí eles começaram. “Olha....na casa... no bairro X tem uma criança.” Nós íamos lá. E ficou o boca a boca sabe. “No bairro tal tem uma criança.” E nós íamos lá, conversávamos com o pai, e tínhamos que ter bom papo para derrubar.”

Nas falas desta e de outras professoras destaca-se a análise de que, em sua maioria, os familiares não manifestavam interesse em matricular suas crianças com deficiência em atividades escolares. Esta posição era revista, em alguns casos, quando considerado como positivo e de possível “liberdade/descanso”, o período em que as famílias não necessitariam dispender atenção e cuidados às crianças.

Posteriormente, a lógica do desinteresse pela participação em serviços educacionais se reverte e passa-se a observar a chegada de alunos por iniciativa dos próprios pais ou responsáveis. Em alguns casos há a ocorrência de situações em que expectativas além do viável se apresentam, como nos conta Célia Macedo que ao longo da carreira atuou na área da Deficiência Auditiva:

“Os pais, a gente tinha que trabalhar muito. Eles pensavam que tinha que deixar as crianças na escola e eles iam ficar bons, e de imediato assim, eles iam aprender a ler e a falar, principalmente os deficientes auditivos, O sonho dos pais era que as crianças falassem. Eles não queriam ter aquela coisa de ‘não, o seu filho vai aprender de tudo um pouquinho’...”

Romper esse universo de descrença nas potencialidades das crianças com deficiência ou, de outro lado, com expectativas de que esta fosse passível de cura, foi um desafio enfrentado pela equipe pioneira e apenas parcialmente vencido a partir da avaliação dos resultados benéficos em termos de aprendizado e desenvolvimento que passaram a ser observados pelos responsáveis pelas crianças. Estes resultados, viriam a tornar-se, por si mesmos, razão para que as famílias passassem a reivindicar o acesso de suas crianças aos serviços de educação especial. Na fala de Clarice Diniz,

“Quando as crianças começaram a vir para a escola, não tinham educação nenhuma. Não sabiam nem ir ao banheiro. Quando as crianças começaram a ser trabalhadas, que chegavam em casa e que diziam assim: “mamãe eu quero ir no banheiro fazer xixi”. A mãe já ficava...Por eles, os pais, os meninos não tinham férias não, porque era muito fácil.”

Há uma mescla entre os objetivos de um trabalho escolar que previsivelmente deveria focar no desenvolvimento acadêmico, com as necessidades de desenvolvimento de padrões essenciais inclusive de autocuidado que os familiares não acreditavam ser possível desenvolver e que, portanto, não investiam esforços para conquistar. Cumpre salientar ainda que essa descrença na potencialidade de desenvolvimento e de aprendizagem das crianças com deficiência, não era uma particularidade das famílias. Também entre os demais profissionais da educação, colegas atuantes nas escolas de ensino regular, a concepção de que essas crianças deveriam ocupar espaços próprios, apartados das crianças categorizadas como normais era presente.

No entendimento coletivo, a escola, primeiro espaço onde se buscou institucionalmente atender às crianças com deficiência, não era o lugar daquele grupo que se avizinhava. Nos relatos das professoras pioneiras, a presença das crianças com deficiência nas escolas de ensino regular, não foi alvo de acolhimento. Como afirma a professora Carlota Figueiredo, não houve:

“Conscientização na comunidade escolar, que não conhecia aquele tipo de trabalho, então ‘xingavam’ as crianças, chamavam de doido, e era aquela coisa toda.[...] a escola não acolheu. Eles não ficavam satisfeitos. Achavam que aquele trabalho era inútil, que aquelas crianças não precisavam de atendimento e que deviam ficar nas suas casas.”

As salas de aula cedidas para a realização de atividades destinadas ao ensino especial, parecem ser sentidas por seus professores e alunos como “não pertencentes” à escola, dissonantes com o trabalho do ambiente escolar. O não fazer parte dos projetos da escola, nem em aspectos básicos, como o acesso ao lanche, o uso de quadras esportivas ou do pátio de recreio é uma constante.

Uma das escolas que tradicionalmente teve espaços cedidos à educação especial, a Escola Monteiro Lobato, de localização em região central da cidade de Boa Vista, executa esta cessão sem acolher efetivamente aos alunos. No relato da professora Célia Macedo,

“ Ninguém aceitava; ninguém queria, nem o diretor. As crianças não podiam ficar na área fora da sala de aula, nem no pátio da escola. Merendavam dentro da sala. Tudo era feito dentro da sala”.

Este mal estar em relação à presença daqueles ‘diferentes’ transpassa todo o período de circulação das crianças nas escolas de ensino regular e irá direcionar a busca por alternativas

várias até que se chegue à construção de uma área própria, especificamente direcionada à educação de pessoas com deficiência. Não havia, entretanto, meios de se manter estas pessoas fora dos espaços sociais. Na síntese da professora Clotilde Rodrigues: “e as crianças cada vez

chegando mais....que ninguém sabia que tinha tanto aluno deficiente. Mas tinha.”

Inserir essas pessoas na comunidade, oportunizando a elas o acesso à educação como direito humano fundamental, demandou a constituição de espaços cuja pertinência embora possa ser alvo de questionamentos, será apresentada no próximo tópico.