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Desenvolver um processo de pesquisa de natureza histórica, mostrou ser um desafio bastante além do que inicialmente imaginamos. Em primeiro lugar, porque entendemos, já no inicio do processo de trabalho, que não haveria a possibilidade de alcançar a compreensão da problemática que nos inquietava, em seu processo de estruturação, privilegiando apenas um tipo de fonte de pesquisa ou estabelecendo uma única forma de interrogação das fontes.

Dentre as múltiplas fontes de pesquisa que buscamos, destacamos as entrevistas com professores, técnicos e dirigentes do sistema de ensino e pais de alunos que utilizaram os serviços especializados de educação especial em Roraima, documentos de natureza administrativa, documentos de natureza pedagógica, instrumentos de normatização legal, como Leis, Decretos, Pareceres, Resoluções e Portarias e referenciais bibliográficos diversos como teses, dissertações e livros de memórias produzidos por outros pesquisadores que nos antecederam.

O contato com essas fontes se deu de maneira não linear, havendo um intercalar entre o acesso a documentos, que suscitavam questões que vieram, por vezes, a ser elucidadas em entrevistas; e entrevistas que nos remetiam a outros documentos e questões, numa espiral que, em alguns momentos, aparentava ser inesgotável, e que talvez, efetivamente, o seja, exigindo a disciplina de estabelecimento arbitrário de um momento de “encerramento” do processo de coleta e organização de dados bem como do privilegiar os que nos causassem maior impacto, no movimento de seleção e opção por perspectivas próprios ao trabalho do historiador.

A seleção dos entrevistados foi sendo construída no diálogo com os profissionais em atuação na Divisão de Educação Especial na atualidade e em análise dos documentos já existentes. Alguns indivíduos eram quase que unanimemente referenciados pelos demais colegas como pioneiros. Inicialmente quatro professoras apresentavam um volume maior de indicações. Sequencialmente, estas mesmas professoras trouxeram à tona os nomes de outras colegas ainda passíveis de serem localizadas e, a partir de seus relatos fomos sentindo a

necessidade de estabelecer também contato com outros profissionais que demonstraram ter tido impacto significativo no processo de trabalho. Em anexo, apresentamos um quadro sinóptico com informações básicas relativas ao perfil desses entrevistados (ANEXO A).

A análise dos documentos tomou em consideração que estes, por sua própria natureza, podem ter sido produzidos levando em consideração o fato de serem, em alguns casos, elementos que iriam definir o acesso ou não à liberação de recursos financeiros, ou de cargos e benefícios, podendo, em determinadas situações, favorecer ou limitar vantagens político eleitorais. Essa mescla de interesses é potencialmente um motivador para a apresentação de discursos que mascaram ou apresentam informações distanciadas do fato concreto. Neste sentido, o cotejamento dos dados apontados nos documentos com os relatos apresentados pelos participantes da pesquisa, favoreceu uma ampliação da compreensão dos processos em sua totalidade.

É evidente que os relatos das entrevistas, não estão livres de apresentarem-se mesclados a interesses diversos, mas estamos nos pautando pelo alerta posto por Thompson, no tocante ao processo de “interrogação dos fatos” aqui pontuados na forma de documentos ou relatos: “antes que qualquer outra interrogação possa ter início, suas credenciais como fatos históricos devem ser examinadas: como foram registrados? Com que finalidade? Podem ser confirmados por evidências adjacentes? E assim por diante” (THOMPSON, 1981, p.39). Sempre cientes de este ser um “aspecto básico do ofício de historiador”.

Havíamos projetado a realização de apenas um encontro com cada informante, no qual utilizaríamos um roteiro semelhante, guardadas as especificidades do lugar ocupado por cada entrevistado. No entanto, em alguns casos, foi necessária a realização de um segundo processo de entrevista formal, ou de novas conversas informais, de forma a buscar, no acesso à memória dos entrevistados, maior clareza quanto à natureza de alguns documentos e /ou fatos relatados por outros entrevistados.

Nas entrevistas realizadas individualmente, foi solicitado a cada participante que retomasse sua própria trajetória de formação e, quando pertinente, articulasse essas memórias aos espaços e aos fatos ocorridos. Posteriormente, procurando manter ao máximo o desenvolvimento da entrevista em acordo com o fluxo de memória do entrevistado, solicitávamos o detalhamento quanto aos processos de implantação e desenvolvimento da educação especial, com foco na descrição dos espaços, personagens que o utilizavam e relações que ali se desenvolviam.

Estas entrevistas foram realizadas em espaços definidos em acordo com o interesse e disponibilidade do entrevistado. Os contatos iniciais foram, em sua maioria, feitos via telefone em que se informava os objetivos do contato e o que se pretendia tratar em uma conversa presencial. Ajustada a agenda e o local para o encontro entre pesquisador e entrevistado, no primeiro encontro, o pesquisador informava os objetivos de seu trabalho e dava as informações básicas relativas ao andamento dos trabalhos, convidando o entrevistado a contribuir com sua experiência.

No ato de realização da entrevista, esclarecia-se o tratamento ético a ser dado aos dados coletados, apresentava-se o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido para conhecimento e assinatura dos participantes e solicitava-se a autorização para a áudio gravação do diálogo que, após transcrito, foi novamente apresentado aos entrevistados para leitura e validação das informações prestadas, com os eventuais ajustes que estes considerassem relevante fazer.

Estamos cientes da seletividade da memória14 e, em vários momentos nos deparamos com relatos divergentes entre participantes ou incompatíveis com elementos concretos indicados por fontes documentais. Auxiliando na reflexão sobre a possível fragilidade desses dados, Castanho (2010, p. 73) nos tranquiliza ao recordar que:

A memória, especialmente a individual, não é a solução para todos os problemas historiográficos, como pretende uma certa visão fragmentária da história, muito ao gosto pós moderno. De qualquer forma, a memória é nutriente da história e merece a importância que se lhe dá na teoria da história contemporânea.

Entre os entrevistados que conosco compartilharam suas memórias, priorizamos, os professores, técnicos que atuaram diretamente com os alunos, ex-alunos e pais de alunos egressos das instituições especializadas em educação especial, por entender que estes, com sua vivência do cotidiano dos serviços, são os elementos centrais que nos oportunizariam um olhar “de baixo”, sobre o processo de desenvolvimento das instituições. Isso não invalidou, no

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“Cabe refletir aqui que a memória é, hoje, referência muito importante para a luta pelos direitos civis, é compreendida como atributo constituinte da cidadania, é valorizada na formação de identidades culturais dos diferentes grupos sociais. Há, nessa revitalização da memória, uma explícita positividade política e a percepção de que a memória é a atualização do passado, ao mesmo tempo que é a aceitação dos traços do passado no presente, da memória como sinônimo da vida” (KAUFMANN e MARTINS, 2009, p. 258 – 259).

entanto, os contatos obtidos com os dirigentes dos sistemas – Secretários de Estado ou Diretores de Divisão, por exemplo, que também foram ouvidos, quando possível.

Estamos aqui lidando com as especificidades de um grupo social que se identifica pela vivência com a deficiência e, como salientam Kaufmann e Martins, (2009, p. 259) “memória e poder estão intrinsecamente associados nas questões de identidade dos grupos sociais.” Além disso, nos alertam que,

Na educação, a retomada das discussões sobre memória tem significado retomar o “lugar do sujeito”, já que a memória, concebida como capacidade cognitiva (a memória/conhecimento) ou como função política (memória voluntária e memória coletiva), permite-nos repensar os sujeitos diretamente envolvidos em processos educativos, por práticas interventoras, ação institucional e regulamentada através de dispositivos de regulação social.

Em relação ao acesso a documentos, é necessário considerar que Roraima é um Estado cuja ocupação por populações não indígenas é relativamente recente, se tomarmos como referência o processo de colonização vivenciado no restante do país. Viveu, ao longo de sua história, um processo de gestão administrativa pautado pela descontinuidade e protagonizado por pessoas, na maior parte das vezes, sem vínculos diretos com a região.

Até recentemente foi administrado por gestores deslocados a esta região para realização das “missões” a que foram designados, por vezes em períodos bastante curtos15. Desconhecendo ou conhecendo apenas superficialmente as necessidades e potencialidades locais, estes gestores trazem em sua bagagem suas próprias equipes de trabalho, compostas, majoritariamente, de profissionais também desvinculados da região e que retornam aos seus estados de origem tão logo se considere concluído seu período de permanência. A definição do momento em que esta “conclusão” se dá, normalmente não esta relacionada ao trabalho desenvolvido, mas a interesses do campo do poder político.

O Estado de Roraima não tinha, e não tem, até o presente momento, espaço específico em que se dê o arquivamento de seus documentos públicos. Isso é ainda agravado pela tradição local de “apagamento” de pistas feito por um volume expressivo de seus dirigentes ao final dos períodos de gestão, seja no intuito de não deixar elementos de responsabilização por eventuais falhas e desvios, seja no intuito de que o trabalho que entendem ser “seu” e não

da comunidade que o remunerou, não venha a ser replicado ou aproveitado por seus sucessores.

Nos momentos de saída, o transporte de documentos públicos para espaços pessoais privados e a destruição, por fragmentação ou queima de documentos, é prática corrente no cotidiano dos órgãos públicos e privados. Eventuais documentos que sobrevivam a essas práticas são, em diferentes ocasiões, descartados como material velho, inservível ou deterioram-se pela ação dos fatores climáticos tradicionais da região amazônica: excesso de calor e umidade, além do ataque de insetos, próprios de arquivamentos realizados sem os cuidados técnicos necessários à conservação de documentos históricos.

No exato momento em que realizávamos nossa busca por documentos, tivemos acesso a um farto material composto de documentos em papel, fitas de áudio e vídeo, que se encontrava em um prédio público, cujo telhado desabara pela ação das chuvas. A permanência de documentos da mais alta relevância em um prédio já oficialmente desocupado de onde se retirou todo o equipamento e mobiliário considerado importante indica, por si só, o valor atribuído aos registros documentais oficiais pelos gestores institucionais.

Dessa forma, o acesso a documentos mostrou-se um desafio peculiar, traduzido em uma garimpagem por diferentes caminhos, órgãos e instituições. Em alguns casos, apenas documentos que consideramos “secundários” puderam ser localizados. Citamos, como exemplo, o fato de que, para o entendimento da lógica de formação de professores utilizada localmente na segunda metade do século XX, período em que se qualificaram as professoras pioneiras para a atuação em educação especial, foi necessário privilegiar os indícios coletados pela análise de certificados e históricos de curso dos profissionais participantes, por não terem sido localizados arquivos específicos que registrem a trajetória histórica da formação de professores na Secretaria Estadual de Professores ou no Centro de Formação de Professores de Roraima (CEFORR).

O fato de ter atuado diretamente por alguns anos como profissional da equipe técnica da Divisão de Educação Especial da Secretaria Estadual de Educação do Estado de Roraima, de ter reconhecida uma condição de “roraimada”16 desde a década de 1990, facilitou o acesso informal a arquivos diversos como os da Secretaria Estadual de Planejamento (SEPLAN) e os de determinados serviços especializados em educação especial. Esses acessos ocorreram, principalmente, pelo apoio de técnicos que atuam diretamente no sistema e que,

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Expressão popular local com que se categorizam os que escolheram Roraima como local onde construir suas vidas profissionais e familiares, mesmo tendo nascido em outras localidades.

informalmente, abriram as portas para o acesso a arquivos diversos. Solicitações formais a instituições maiores como Secretarias de Estado foram solenemente ignoradas ou simplesmente tiveram seu acesso negado por seus dirigentes, com exceção da SEPLAN, acima referenciada.

Na SEPLAN, encontravam-se, em uma biblioteca de uso interno, acessível à população, documentos como Relatórios e Planos de Trabalho de vários governos desde a década de 1970. São arquivos que têm uma organização pouco clara, mas que são mantidos com o empenho pessoal de profissionais que, apesar das limitações técnicas para a conservação deste material, comprometem-se com sua sobrevida, zelando pessoalmente pela defesa destes ao ataque de cupins, formigas e umidade, e que trabalham com boa vontade e compromisso para sua disponibilização aos pesquisadores interessados.

Nos serviços especializados de educação especial, documentos de natureza diversa como ofícios, memorandos, relatórios, laudos, entre outros, foram localizados. Não são arquivos que guardem uma regularidade temporal, havendo longos períodos em que inexistem quaisquer registros, mas nos permitem o acesso a indícios que, articulados aos relatos das pessoas que vivenciaram os serviços, oportunizaram uma reconstituição da trajetória histórica dos serviços de Educação Especial em nosso Estado.

De maneira geral, dispomos hoje de um total de aproximadamente 22 horas de entrevistas gravadas em arquivos de áudio, contemplando as memórias de 16 pessoas, das quais 11 tem suas falas indicadas ao longo do texto e aproximadamente 8.000 páginas de documentos oficiais17, reproduzidos em arquivos xerográficos. Consultamos ainda um acervo de 14 estudos e pesquisas produzidos sobre a história de Roraima e o desenvolvimento de seus sistemas educacionais, na forma de Trabalhos de Conclusão de Curso18 a saber: 04 monografias, 05 dissertações e 05 teses, além de livros de memória e história de Roraima.

Entre os documentos oficiais, dispomos tanto de documentos públicos como Portarias, Leis e Decretos disponibilizados em diários oficiais, quanto documentos institucionais, como atas de reunião de professores e de professores com pais, diários de classe, projetos internos e, em especial Planos de Ação e Relatórios de Atividade de Governo – Territorial ou Estadual - e das Secretarias de Educação e Assistência Social, por exemplo, destes governos.

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No anexo C apresentamos uma relação dos principais documentos utilizados neste trabalho.

18Apresentamos no anexo D uma listagem relacionando estes materiais, aparentemente um volume pequeno,

mas de extrema relevância se considerarmos que não dispomos de Programas de Pós-Graduação em Educação ou em História em nenhuma instituição local.

Estes instrumentos foram interrogados a partir dos questionamentos postos pela problemática de pesquisa que nos inquietou e serão disponibilizados como banco de dados para estudos posteriores nossos, ou de outros pesquisadores que se interessem por temáticas adjacentes ou outros focos dentro dessa temática. Nossa intenção é o direcionamento posterior deste material ao Centro de Documentação do Departamento de História da Universidade Federal de Roraima, atualmente em fase de estruturação.

2. PERCORRENDO TRILHAS ABERTAS

Desenvolver um trabalho acadêmico implica, obrigatoriamente num processo de revisão bibliográfica que permita tomar conhecimento da trajetória construída pelos pesquisadores que nos antecederam e refletir sobre caminhos a percorrer que tragam contribuição à produção científica de nosso tempo.

Nesse caso especificamente, refazer as trilhas já percorridas assumiu sentidos vários. Simbolicamente, o uso de trilhas é processo amplamente utilizado pelos povos que tradicionalmente habitavam o espaço que veio a constituir-se no atual Estado de Roraima. Trilhas que possibilitavam a transposição de rios, igarapés e montanhas. Trilhas de aproximação-distanciamento com diferentes perspectivas culturais. Trilhas no rumo da interlocução com as diversas formas do viver humano aqui construídas ou mesclada em práticas transpostas de outros espaços, com referências culturais por vezes contraditórias e conflitantes.

Em nosso caso, um desafio que se mostrava especificamente importante e que abordaremos neste capítulo era a retomada da trajetória de construção de saberes que tivessem como foco a história da educação especial no Brasil. Percorrer as trilhas já abertas pelos tantos pesquisadores que nos antecederam, buscando compreender não apenas os processos históricos salientados por eles, mas também as perspectivas de fundamentação teórico- metodológicas, bem como as delimitações temporais e espaciais adotadas em seus trabalhos.

Nesse sentido, tomamos como pontos de referência a consulta a dissertações, teses e trabalhos científicos apresentados em eventos que se reportassem à temática da História da Educação Especial, bem como a busca de artigos em revistas científicas indexadas que tomassem como objeto a História e a Educação Especial como seus focos específicos buscando compreender o espaço ocupado pela história da educação especial nestes periódicos.