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3. A TERRA DE MAKUNAIMA

3.5 Fluxos migratórios

Mesmo tendo uma geografia complexa e condições climáticas peculiares que, em alguns momentos, pode ter, como consequência, a construção de uma imagem inóspita, o extremo norte do Brasil atrai, desde o período colonial, um volume expressivo de migrantes, por diferenciadas razões ao longo do tempo.

Como já nos referimos anteriormente, o mito do El – Dorado, presente já no imaginário europeu, foi um dos fortes elementos que motivou as primeiras expedições a esta região, fazendo-se presente novamente no século XX, com a busca desordenada pelas riquezas minerais contidas no subsolo desta região.

Também em iniciativas que se apresentaram desde o período do Brasil Colônia, repetindo-se no Império e em anos mais recentes, o incentivo à ocupação territorial tomando por base a atividade agrícola e a pecuária se fez presente. Em muitos casos, foram políticas indutoras da ocupação do espaço, com a doação de terras e a oferta de incentivos variados à permanência de colonos na região. Freitas (1990, p. 78) afirma que:

Nos Territórios a ocupação foi feita por minifúndios (de maior poder modificador da taxa de incremento populacional). Os minifúndios, por trabalharem com a mão-de-obra familiar exigem do Estado maiores investimentos em áreas de Saúde, Educação e Segurança Pública.

Santos (2000, p. 11) aponta para a perspectiva de que, neste século, “a região foi objeto da política que se propunha equacionar o problema dos homens sem terras do Nordeste, com as terras sem homens da Amazônia”.

Várias são os estudos que se referem aos fluxos migratórios em Roraima. Estudos cujo foco central é o processo econômico, social e cultural que envolve a chegada de novos

habitantes a Roraima. Destes, tomamos como referência Santos (2010), Souza (2004) e Magalhães (2006).

Souza (2004) elabora um estudo sobre os processos migratórios em Roraima que embora tomando como objeto central a presença dos Gaúchos nas comunidades locais, apresenta um painel amplo dos movimentos migratórios, desde os primeiros momentos de tentativa de ocupação do nosso “vazio” até os movimentos gerais dos diferentes migrantes dos vários estados brasileiros (destacadamente do nordeste) que vieram a efetivar a ocupação do Estado com maior intensidade no terço final do século XX. Três tabelas que apresentam dados numéricos relativos aos indicativos de nosso crescimento populacional nos ajudam a refletir sobre a importância da migração em Roraima. Em um primeiro momento, reproduzimos aqui uma análise dos dados censitários gerais dos anos de 1950 e 2000 (SOUZA, 2004 ):

Tabela 05 - População residente para o Brasil, Região Norte e Roraima – 1950/2000

1950 1960 1970 1980 1991 2000

Brasil 5.1941.767 70.070.457 93.139.037 119.002.706 146.825.475 169.799.170

Região

Norte 1.834.185 2.561.782 3.603.860 5.880.268 10.030.556 12.900.704

Roraima 17.834 28.304 40.885 79.159 217.583 324.397

Fonte: IBGE – Censos Demográficos de 1950/2000

Enquanto observamos a população brasileira crescer em torno de três vezes e meia em cinquenta anos e a população da região Norte crescer em torno de sete vezes, em Roraima essa população apresenta entre os anos de 1950 e 2000 um crescimento em torno de 18 vezes. Esta dinamização do crescimento dá-se, entretanto, de maneira mais acentuada a partir dos anos 1970/1980, conforme pode ser melhor analisado na tabela a seguir:

Tabela 06 - Taxa média geométrica de crescimento populacional para o Brasil, Região Norte e Roraima

1940/1950 1950/1960 1960/1970 1970/1980 1980/1991

BRASIL 2,39 2,99 2,89 2,48 1,93

REGIÃO NORTE 2,29 3,34 3,47 5,02 3,85

RORAIMA 5,49 4,65 3,75 6,83 9,63

Fonte: IBGE, Censos Demográficos de 1950/1991.

Destacando a relevância do processo migratório neste crescimento populacional, Souza (2004) nos apresenta ainda um relatório do acompanhamento de entrada de migrantes

por via terrestre realizado pela Secretaria do Trabalho e Bem Estar Social entre os anos de 1996 e 2002.

São dados que trazem indicativos relevantes do processo de entrada de indivíduos e famílias de condição socioeconômica mais precária, dado que a dificuldade de trânsito via terrestre o coloca como meio de acesso pouco atrativo para usuários em melhor condição socioeconômica, em especial os que se deslocam já com alguma ocupação previamente definida.

Tabela 07 - Migração em Roraima por via terrestre - 1996/2002

Ano Entrada Saída

1996 7.687 1.743 1997 10.279 2.542 1998 15.393 2.905 1999 13.034 2.227 2000 11.078 2.677 2001 11.201 3.859 2002 12.270 4.188 Total 80.942 20.141

Fonte: Divisão de Apoio ao Migrante/SETRABES

Magalhães (2006) ao analisar o processo histórico do extrativismo vegetal no período de 1943 a 1988 na mesorregião sul de Roraima, finda também por apontar alguns elementos relevantes sobre os processos de migração ocorridos no Território, apontando como a mudança no perfil dos migrantes ao longo dos anos vai alterando os mecanismos de relação social e econômica com o ambiente.

Em relação ao perfil dos migrantes, informações estatísticas (RORAIMA, 1981) dão conta de que no período de outubro a dezembro de 1980 ingressaram no Território 2170 migrantes. Destes, 1156 eram garimpeiros, 346 agricultores, 323 envolvidos em atividades de outra natureza e 345 dependentes.

Santos (2010) estuda os processos de migração e organização dos trabalhadores que se deslocaram entre os anos de 1970 e 1990 no sudeste de Roraima, no contexto dos assentamentos de Jauaperi e Jatapu e o surgimento das vilas e aglomerados ao longo da Perimetral Norte durante este processo. Estabelece sua análise a partir do entendimento de ser a migração uma “estratégia de resistência frente a um longo processo de expropriação da terra em seus estados de origem”.

Corroborando esta análise, na apresentação de um Termo de Referência realizado em meados de 1985 no âmbito da Secretaria de Planejamento e Coordenação do Governo de Roraima que relata um trabalho denominado como “Metodologia da Aprendizagem da Participação e Organização das Comunidades”, há um volume expressivo de depoimentos de trabalhadores rurais e em como estes viviam suas relações com Roraima e como vivenciavam os processos de educação. Em um dos depoimentos vemos uma manifestação que referenda essa perspectiva:

“70% do povo que vem nesses projetos de assentamento, são expulsos por latifundiários em outras regiões ou expulsos das periferias das grandes cidades. Uma outra parte, vem explorar este povo.”

Alguns depoimentos apontam para a dificuldade das famílias em atribuir importância à escolaridade na vida de seus filhos. Outros, entretanto, registram que “a escolinha foi

construída pela comunidade”. Relatam ainda que “Tem 120 pessoas que moram nos lotes e querem vir para a Vila, pois os filhos estudam”. Referindo-se a estrutura de escolas da

comunidade reafirmam essa fala da busca dos colonos pela oferta de educação escolar, em alguns casos construindo eles próprios instalações para escolas na comunidade:

“tem uma na vicinal 15 que tem 32 alunos de 1ª a 4ª série. Esta escola foi construída pela comunidade e apesar de humilde e sem conforto ela está funcionando muito bem. Nós construímos ela na metade do caminho, para as crianças não andarem muito.”

Mas não são só os pais que discutem as dificuldades vivenciadas. Na perspectiva de um professor:

“A nossa escola não tem condições, é quente como fornalha. Ano passado escrevemos com as crianças no chão porque não tínhamos lápis, e o trabalho tinha que ser feito. Tenho criança aqui que desmaiou em sala por falta de alimento. Eles chegam cansados, sem comida.”

Não encontramos nestes depoimentos quaisquer registros quanto à existência de pessoas com deficiências ou de necessidade de educação para algum grupo específico. De maneira geral, há o apontamento para o fato de ser o ensino ministrado nas escolas rurais um ensino de menor qualidade em comparação com o oferecido nas escolas urbanas, sem apresentar as necessárias diferenciações de práticas pedagógicas e conteúdos que oportunizariam a fixação do homem do campo que poderia advir da formação técnica

adequada à produção econômica das comunidades rurais. Como destaca um professor de zona rural:

“Não sei se a Divisão do Interior da Secretaria de Educação é para marginalizar ainda mais o interior. Eu não entendo essa divisão que se faz. Sou contra a discriminação que se faz do colono e do sujeito da cidade.”

Verifica-se ainda, no relato dos colonos, a preocupação com o fato de os conteúdos serem dissociados da realidade e, de o próprio sujeito designado para a docência nestas localidades trazer uma bagagem cultural dissociada daquele universo:

“eles podiam observar que em cada vicinal ou vila, existem elementos que tem condições de dar aulas; porque não aproveitar esse elemento para ensinar?”

É na década de 1940 que vemos se consolidar a entrada de Roraima no mapa da vida política e econômica brasileira. É nesta década que o Estado Novo do Presidente Getúlio Vargas estabelece a criação dos Territórios Federais 35 em pontos estratégicos do país. Mundialmente, registra-se o clima de instabilidade da Segunda Guerra e preocupações com o vazio demográfico da região amazônica.

De município vinculado ao extenso estado do Amazonas, cuja capital Manaus distava significativamente dos principais vilarejos e aldeamentos, o espaço geográfico que veio a ser definido como Território Federal do Rio Branco, com capital sediada no Município de Boa Vista passa a ter sua interlocução direta com o Governo Federal, sediado no Rio de Janeiro, e posteriormente, em Brasília. Mais do que isso, torna-se parte de estratégias políticas do poder central, não só na perspectiva de uma Integração à nação, mas da própria Defesa Nacional 36. Santos (2004, p. 89) destaca que:

Após a crise da borracha, no início do século XX, o governo central havia falhado em implantar um planejamento regional, mas, ao tempo do Estado Novo (1937 - 1945) havia mais vontade, controle e continuidade, além de uma forte ideologia desenvolvimentista. A criação do território obedeceu a

35 O Brasil já tinha, desde 1904, instituído a figura do Território Federal, a partir da anexação do Acre após

disputa com a Bolívia. Freitas (1990) aponta, no entanto, que apenas na Constituição Federal de 1937 é que se estabelece o poder da União de criar Territórios Federais dentro do interesse da 'defesa nacional'. Em 1942, cria- se o Território de Fernando de Noronha e em 1943 os Territórios Federais do Amapá, Rondônia e Rio Branco, cuja denominação foi em 1962 mudada para Roraima, em função da confusão que por vezes se estabelecia com a capital do Acre: o município de Rio Branco.

36 Os Territórios Federais, criados constitucionalmente como mecanismos de “defesa nacional” viriam a ser considerados durante os governos militares pós-1964, “áreas de segurança nacional, a ponto de, os três Territórios remanescentes, serem divididos irmãmente entre as Forças Armadas: Roraima governada pela Aeronáutica, Amapá pela Marinha e Rondônia pelo exército” (FREITAS, 1991, p. 40).

um plano estabelecido: em 1940 o presidente Vargas visitou a Amazônia, passando pelo Pará e o Amazonas. Era tempo de guerra, em que a França e a Holanda estavam vencidas pela Alemanha, e a Inglaterra tinha imensas dificuldades em manter a luta contra Hitler praticamente sozinha e, as Guianas, possessões europeias eram limítrofes do Brasil na Amazônia.

Política e economicamente, o fato de ser território federal, acarreta em uma centralização administrativa, com a concentração de poder na figura de um governador, determinado no âmbito de embates políticos estabelecidos na capital federal. Além disso, não existem as figuras dos poderes legislativo ou judiciário. Estes governadores eram assessorados por um Secretário Geral e costumavam se fazer acompanhar de diretores de áreas específicas, normalmente equipes vindas integralmente do local de origem do governador do momento, sem vínculo com a região.

A estruturação do território de Roraima, vinculada ao Ministério do Interior, permitia apenas a eleição de um deputado federal e a designação do prefeito da capital era atribuição do governador. Entre as décadas de 1940 e 1960 mudanças na condução política do poder central levam a uma oscilação no ritmo de desenvolvimento, registrando-se uma troca de dirigentes bastante acentuada e a presença, de maneira geral, de governadores com conhecimento limitado acerca da região, acarretando uma descontinuidade de projetos. A rotatividade de governadores é estimada por Freitas (1993, p. 160), em uma permanência de 15,8 meses.

O primeiro governador territorial, o Capitão Ene Garcez dos Reis, que chegou ao Território do Rio Branco em abril de 1944, permanecendo apenas até 1945, ano da queda de Getúlio Vargas, trouxe consigo uma equipe de quase duzentos homens, dentre eles um técnico em administração do Governo Federal, Araújo Cavalcanti, que elabora um Plano de

Recuperação e Desenvolvimento que, conforme destaca Santos (2004), em alguns aspectos se tornará fundamento de ação de dirigentes militares, ainda nas décadas de 1970 e 1980, tal a profundidade de análise em que se desenvolveu 37.

Para que se estime o impacto da chegada desta equipe, é importante considerarmos que era um momento em que, segundo Magalhães (2006, p. 119), 80 % da população do Território - 10.400 habitantes se concentravam nos Campos Gerais, onde se desenvolvia a pecuária;

37O governo que se instalou no edifício da Prelazia católica, o único que tinha condições para tal, foi, segundo

uma tradição local, “duro e ditatorial”. Era a “ordem” que chegava, apoiada por um contingente armado de 200 homens: houve proibição de reuniões e ajuntamentos, recolhimento das pessoas às 18 horas aos seus lares e os valentes de antes eram caçados e após, castigados à luz do dia, como exemplo. Segundo Oliveira(2003) essas medidas eram para firmar um símbolo do poder político central, numa terra na qual alegava-se estar dominada pelo banditismo e pela falta de justiça. (SANTOS, 2004, p. 91)

2.000 habitantes residiam em Boa Vista; 1500 habitantes ocupavam a região montanhosa de garimpo e 1090 habitantes residiam em Caracaraí e outras vilas, ocupando-se do extrativismo. Dentre as ações desenvolvidas por Ene Garcez, destaca-se a criação das primeiras escolas públicas e a contratação do arquiteto Darcy Derenusson que, tomando por base o traçado de outras cidades planejadas, como Belo Horizonte, estabelece o traçado a ser implantado na estruturação da cidade de Boa Vista.

O projeto que faz a distribuição de ruas amplas e arborizadas em forma de leque que pode estender-se direcionando o crescimento urbano por um longo período prevê a instalação na praça central de onde emanam os “raios-avenida” de um complexo arquitetônico que abarca os vários espaços de poder institucional: Palácio do Governo, Catedral Católica, Fórum e Tribunais de Justiça, Bancos, entre outros.