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3 CONDIÇÕES E RELAÇÕES DE TRABALHO NO TRANSPORTE RODOVIÁRIO

6.1 O Alvo

Dentre as propriedades do alvo, que incluem o valor do alvo, acessibilidade, inércia e visibilidade (COHEN; FELSON, 1979), os dois primeiros estruturaram diferentes modos de o ofensor estabelecer a copresença com a vítima e encerrar a interação. São as propriedades dos alvos, com suas especificidades que atraem distintos ofensores.

Diferentemente dos carros de passeio, que podem ser subtraídos juntamente com os pertences de seus ocupantes, os ônibus não são considerados um bem em si ou um instrumento de fuga, suas características físicas criam dificuldades ao empreendedor do crime. No âmbito nacional há algumas raras menções de ônibus tomados como instrumento de fuga e abandonados após serem utilizados. Logo, o foco dos autores do delito é exclusivamente os bens em posse dos ocupantes do veículo e/ou a renda das passagens.

A mobilidade do alvo, por sua vez, coloca em cena elementos que se relacionam diretamente afetando sua acessibilidade. Ao planejar o roubo, um assaltante minimamente precavido deve considerar um script que inclua uma abordagem, a subtração de pertences e uma fuga segura. Obstáculos e vantagens para o roubo perpassam por fatores como origem e destino da viagem, trajeto, programação de paradas e suas condições, propriedades físicas do veículo, velocidade empregada ao longo dos trechos e ocupantes reais ou potenciais do veículo. Dentre todos esses elementos se destacam o ‘tipo de serviço

prestado’ e a ‘linha’ (itinerário), por permitirem estruturar diferentes abordagens delituosas (VIODRES-INOUE; PAES-MACHADO, 2010).

Considerando-se as paradas de embarque/desembarque ao longo do percurso e as condições de conforto do ônibus, a AGERBA64 define oito tipos de serviços no transporte de passageiros, que nada mais são que condições mais ou menos confortáveis para o deslocamento. Para fins de análise, esses serviços foram agrupados em duas grandes categorias (executiva65 e comercial), uma fusão que respeita as características fundamentais dos serviços e os scripts, desde a abordagem do alvo pelo autor do delito ao seu encerramento.

6.1.1 Os executivos

As disparidades econômicas existentes na sociedade brasileira se reproduzem na mesma intensidade no transporte coletivo. É possível se deslocar em condições luxuosas e confortáveis ou em condições insalubres e incômodas. As viagens na modalidade executiva podem superar o conforto de automóveis sedan nacionais. Os veículos utilizados nesse serviço possuem ar condicionado, banheiro, poltronas reclináveis (por isso são mais utilizados em viagens mais longas), há veículos com itens opcionais televisores com exibição de filmes, saída de som individual e porta-copos nas poltronas, água mineral, apoio para pernas, cobertores e travesseiros. Quando comparados aos ônibus utilizados nas viagens comerciais/convencionais, os executivos são mais novos e em melhores condições de conservação; pelo número limitado de paradas, restritas às rodoviárias ou pontos de apoio, completam o itinerário em menor tempo. Por conta do trânsito mais denso e das altas temperaturas diurnas, as partidas de viagens mais longas são mais comuns no turno noturno.

64 A resolução 27/01 da Agência Estadual de Regulação de Serviços Públicos de Energia, Transportes e

Comunicações da Bahia – AGERBA regulamenta as seguintes categorias funcionais das linhas regulares: I - comercial: veículo convencional;

II - comercial com ar: veículo convencional, com ar condicionado;

III - executivo: veículo convencional, com ar condicionado e número reduzido de paradas; IV - leito: veículo leito, sem ar condicionado;

V - semileito executivo: veículo semileito, com ar condicionado; VI - leito executivo: veículo leito, com ar condicionado;

VII - semi-urbano: veículo tipo urbano;

VIII - misto: veículo tipo urbano com local para carga.

65 Os veículos em serviço do tipo IV, V e VI também realizam paradas em número bastante reduzido.

O conforto e a economia de tempo de viagem atraem um seleto grupo de passageiros capazes de custear o valor das passagens. Conhecidos e desconhecidos, o rodoviário distingue os passageiros pela frequência com que viajam: há rostos familiares e identidades conhecidas de funcionários públicos, professores e estudantes que viajam com alguma regularidade. Anônimos e desconhecidos, clientes “passageiros” são tão rotineiros quanto os “conhecidos” e não gozam das mesmas regalias que esses últimos. Estranhando a ausência de um passageiro costumeiro no embarque, alguns rodoviários fazem “uma horinha” checando bagagens ou pneus na espera do retardatário.

A clientela seleta traz consigo pertences, hoje, indispensáveis na vida moderna: telefones celulares, câmeras digitais, computadores e reprodutores de músicas portáteis,

ipod, além de jóias, perfumes especiais, relógios e roupas importadas e valores em espécie.

Alguns desses passageiros são comerciantes que partem com capital compra/venda de mercadorias ou retornam de centros de abastecimentos carregados de encomendas. Outros, especialmente em meses de férias, viajam para visitar parentes e/ou compras desses mesmos artigos para presentes e uso pessoal. O transporte desses bens e valores tornam o veículo altamente cobiçado, dada a facilidade de repasse dos mesmos no mercado de receptação ilegal das conhecidas “feiras do rolo”, nas revendas de semi-novos (roupas e equipamentos) ou ainda para o uso pessoal dos ofensores.

6.1.2 Viagens comerciais no “pinga-pinga”

A diversidade de tipos de veículos empregados no serviço comerciais é tão ampla quanto à encontrada nos executivos. Há desde veículos semelhantes aos coletivos urbanos até alguns modelos de ônibus utilizados no serviço executivo. Logo, a principal distinção entre os tipos de serviço são as diversas paradas obrigatórias realizadas pela modalidade comercial ao longo do itinerário. As condições de conforto são restritas, as poltronas podem ou não ser reclináveis, ar condicionado é exceção, disponibilizados apenas na falta do veículo “convencional”, quando um ônibus ocioso de uso executivo é utilizado.

O preço das passagens é inversamente proporcional ao conforto, quanto menor o valor, maior o desconforto da viagem. Nas paradas de embarque e desembarque mais populosas, vendedores ambulantes adentram o veículo aos gritos ou com versos ensaiados anunciando seus produtos. Em horários de pico (primeiras horas da manhã e ao cair da

noite) passageiros viajam em pé nos corredores66, o que não impede a entrada dos vendedores de amendoim, salgadinhos e bebidas.

O “costume do povo” e a pressão das empresas para aumentar o volume de passageiros e renda mantem pontos de parada não reconhecidos pela AGERBA, sobretudo, os pontos de desembarque - um “pinga-pinga” - de passageiros ao longo do trecho. O banho do veículo, que dizem ser diário, é incapaz de remover a sujeira do assoalho, produzida no entra-e-sai frenético de pessoas; incidentes provocados por passageiros com indisposição gástrica muitas vezes são resolvidos pelos próprios motoristas.

Relações sócio-afetivas são tecidas com trabalhadores e estudantes que viajam diariamente no mesmo horário. A intimidade é estimulada/forçada pelos pequenos anteparos que separam rodoviários e passageiros. Embora mais humildes que os passageiros executivos, os usuários e trabalhadores do serviço comercial também tem seus atrativos aos olhos do ofensor, é exceção àquele que não possui telefone celular, alianças de casamento e tocadores de música que engrossam o capital transportado sob a ótica do valor do delito, além do valor das passagens vendidas ao longo do itinerário, mantido por motoristas ou cobradores (VIODRES-INOUE; PAES-MACHADO, 2010).