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3 CONDIÇÕES E RELAÇÕES DE TRABALHO NO TRANSPORTE RODOVIÁRIO

3.2 Condições de Trabalho

3.2.1 Isolamento e Vulnerabilidade

Nas observações e entrevistas o isolamento surgiu como uma dimensão da atividade profissional que possibilita o sofrimento de violências. Ao executar suas atividades laborais deslocando pessoas por itinerários predeterminados, evitar localidades com altos índices de criminalidade não é uma escolha pessoal dentro de uma atividade caracterizada pela previsibilidade e padronização. A previsibilidade de horários e trajeto do rodoviário também os torna alvos de agressores externos ao veículo, tanto para atos de vandalismo (em protestos por diversas motivações) quanto roubos, que se agravam com o isolamento vivenciado pelos rodoviários interurbanos.

A expressão ‘isolamento’ não é citada pelos rodoviários, talvez, porque trabalham com pessoas, o que seria incompatível; no entanto, não significa que sejam alienados a esse respeito. Enquanto nos coletivos urbanos o motorista tem a companhia do cobrador de passagem, nos coletivos interurbanos sua presença é exceção, sendo obrigatória apenas nas linhas semi-urbanas. O isolamento enquanto categoria analítica será desdobrado

brevemente em isolamento institucional, isolamento físico-urbano e isolamento socioafetivo.

O isolamento institucional é caracterizado pela precariedade ou inexistência de infra-estruturas de apoio, abandono, negligência e desamparo institucional ao qual o rodoviário está sujeito. Há empresas em que os ônibus são renovados, checados e reparados com periodicidade regular, mantendo-se a qualidade do instrumento-ambiente de trabalho e do meio de transporte. Em outras, os veículos em más condições de conservação são conduzidos pelos rodoviários por estradas com longos trechos sem possibilidade de socorro mecânico. De forma espontânea a temática surge na narrativa de Cesar, motorista, Jaqueline, cobradora e uma passageira:

É um lema que nós temos e a empresa também prega pra gente. É o caso de todas elas, tirando a Delta. Se o carro deu defeito você não pode passar para o passageiro ... Você tem que ... [simula com a mão o movimento de um conserto mecânico] se der pra acudir.... Se não der, você tem que parar e chamar a empresa. Tem aqueles [passageiros] que [perguntam]: ‘o que é aí?’ Você não tem que dizer o que aconteceu: ‘não, foi um probleminha aqui’. Tem aqueles curiosos, aí você diz uma coisa qualquer: ‘foi um cabo’ (Cesar, 49 anos, motorista há 29 anos).

Ela se queixa que passou por um período muito ruim nessa empresa e nas outras, porque os carros quebravam e ficavam na pista muitas horas esperando. ‘E tem uma estrada, uma BR de acesso a uma cidade chamada Lamarão, onde o carro quebrou’ ela estava grávida de sete meses, há um ano e ‘não tinha nem sinal de celular’. Eles esperaram o socorro desde 13 até 17hs. Muitas vezes ela ‘trabalha até às 22hs, também, entra 6hs da manhã e tem que dobrar o turno, mas tem um bom horário de almoço’ (Jaqueline, 33 anos, cobradora há 5 anos).

São Camilo é vice campeã em condições ruins, quebra, falta higiene, a pior é Bragança. Já caiu uma roda do veículo em movimento no leito, que anda mais rápido, mas não aconteceu nada. Já deixou de viajar porque a Agerba prendeu ônibus porque não tinha condições (Helena, 33 anos, passageira, professora universitária).

A insuficiência da infra-estrutura das estradas baianas em recursos socorristas (distribuição de postos da polícia, entre outros pontos de apoio) obriga os rodoviários interurbanos, na ocorrência de panes, a responder por reparos mecânicos emergenciais; o treinamento oferecido pelas empresas inclui aulas de mecânica automotiva para problemas gerais, preparando-os para situações que não lhes cabe dentro da Classificação Brasileira de Ocupações. Frente ao caos provocado pela interrupção não planejada de uma viagem, o motorista se divide em mecânico, para reparar o veículo, e apaziguador para conter a fúria

dos passageiros. Não há dados sobre acidentes ou interrupções de viagens causadas por falhas ou mau funcionamento de veículos nas rodovias, mas a falta de manutenção dos veículos da capital é apontada como responsável por muitos acidentes (REBOUÇAS; BRITO, 2009) e queixa frequente entre os motoristas intermunicipais. O desamparo institucional ganha dimensão quando se observa que a atividade de cobrador/trocador de passagens não é regulamentada por lei.

No trabalho solitário, nas viagens sem a presença do cobrador, o rodoviário é privado de trocas sociais, interações comuns nos ambientes profissionais entre colegas de trabalho. Um motorista entrevistado verbalizou a insegurança causada pelo isolamento e pelo contato com o público ignorado “todo mundo conhece o motorista, mas o motorista não conhece ninguém, tem aqueles que costumam pegar a linha nuns horários, mas tem horário que a gente não conhece ninguém, não sabe se é bandido, se é trabalhador” (Diário de Campo, 26/05/2009). A aplicação do substantivo “passageiro” àqueles que utilizam o transporte coletivo guarda em si a conotação adjetiva como algo transitório e efêmero. Os usuários/passageiros conhecem a rotina dos rodoviários, o contrário nem sempre é válido, aumentando a insegurança nos trabalhadores, sobretudo quando há elementos que ativam a suspeita de risco de roubos, como quando os rodoviários observam comportamentos associados à conduta comum de assaltantes e quando estereótipos de gênero e raça são ativados pela presença de passageiros tipificados como suspeitos:

José, 34 anos, motorista há 12 anos. Escapou de uma tentativa de assalto em 05/09/2008. Ouviu de um colega assaltado no dia anterior que ‘um rapaz moreno com caroço na bochecha direita havia praticado o delito’. Naquela noite ele separou as maiores notas de dinheiro e deixou apenas alguns trocados no bolso. ‘Na rodovia embarcou o rapaz com caroço na face’, José reconheceu quando pegou os 10 reais da mão do rapaz para dar o troco, o rapaz disse que desceria em Palmares. ‘Quando estava chegando em Palmares, o funcionário da DERBA já havia descido nesse ponto, o assaltante não havia aparecido, de repente ele aparece’ junto ao motorista. O motorista dá o troco que não tinha antes ‘e o assaltante não tira o olho do dinheiro, aparente frustrado com a pouca quantidade’, o motorista abre aporta do veículo e o suposto assaltante ‘desce encarando’ o motorista ‘e continua encarando’ quando fecha a porta. A atitude chama a atenção de um passageiro que diz: ‘motorista esse homem ficou lhe encarando’. José responde: ‘e você nem sabe, escapamos de um assalto agora, esse homem aí assaltou um ônibus ontem’. Reclama que não tem cobrador para lhe ajudar também, que toda viagem se preocupa com assalto, principalmente de noite quando o carro está cheio. Reclama que ‘não tem proteção da empresa: é só a gente e deus’ (Diário de Campo, 15/10/2009).

O trabalho em dupla favorece a cumplicidade entre os rodoviários, a comunicação entre eles ocorre por códigos culturais; pelo retrovisor, por assovios, batidinhas de moedas ou canetas no caixa do cobrador, acender e apagar luzes internas. Nessas interações eles velam pela própria segurança, queixam-se de passageiros ou chamam atenção um do outro para conduta de passageiros.

Nas viagens mais longas, que ultrapassam seis horas de direção, o motorista que inicia a viagem deve ser substituído por um motorista “carona” com quem viaja ou que embarca em algum ponto de apoio na hora da troca. O trabalho em dupla não elimina a possibilidade de vitimização por crimes violentos, mas pode atuar como prevenção de ataques sem uso de arma de fogo. Em um relato, um rodoviário afirmou durante uma viagem de Salvador a Monte Gordo desconfiou de dois passageiros que adentraram no veículo na rodovia. Ele apagou as luzes internas do veículo (um sinal para que o cobrador se aproximasse dele), em seguida relatou ao colega sua desconfiança. Com as luzes acesas o cobrador de volta ao seu posto observou os suspeitos e visualizou uma faca “peixeira” sob a camisa de um deles. O cobrador retornou e avisou ao motorista que em seguida simulou uma pane no veículo, parando-o na rodovia.

Não é possível afirmar se houve prevenção de um delito, de qualquer modo observa-se que a atuação tornou possível o desenvolvimento de defesas informais. Não foram verificados aspectos danosos ou queixas do trabalho em dupla. Na relação de pareceria, o motorista se preocupa com a reação do cobrador frente à situação de roubo, teme reações emocionais inadequadas, mas a presença de um colega de trabalho ainda é preferida. O isolamento sócio-afetivo torna o trabalhador que atua longe de uma equipe mais vulnerável à violência no trabalho limita as defesas e as interações que tornam a rotina menos árdua e tediosa.

A presença de acompanhantes no exercício de atividades isoladas como um fator protetor contra a vitimização foi estudado em outros ramos de atividade, como por exemplo, nas construções prediais e dentro de centros urbanos. Felson (1994) nomina de ‘guardiões capazes’, que não seriam apenas pessoas, bem como objetos cuja presença interfere na ocorrência do crime quando aumentam a possibilidade de fracasso do ofensor. A noção de guardiões equivale ao conceito de controle social da abordagem da desorganização social, segundo Peixoto, Andrade e Moro (2007). Segundo os autores, as semelhanças estariam em alguns indicadores representativos de capacidade do ‘guardião’, tais como o número de pessoas vivendo na residência, o nível de proteção exibido entre os vizinhos e a disposição para usar mecanismos de controle formais e informais; mais

eficazes do que policiais, refletiriam a contribuição da eficácia social, ou seja, confiança mútua e solidariedade, bem como sua disposição para intervir em prol do controle social (FELSON, 1994).