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3 CONDIÇÕES E RELAÇÕES DE TRABALHO NO TRANSPORTE RODOVIÁRIO

3.3 Relações Situadas, Interações Passageiras e Interações de Passagem

3.3.2 As relações com os (im)pares

Nos terminais, assim como nos veículos, as interações com outsiders30, impostas

pela obrigatoriedade, ainda que sejam abreviadas, colocam aos rodoviários em contato com inconvenientes, ao menos aos tolerantes, e propiciam também relações de natureza diversa:

Osmar, 48 anos, rodoviário há 13, afastado da função de motorista há mais de um ano, está em reabilitação trabalhando como despachante há um mês: ‘A rodoviária de Salvador é bastante grande (...), então as pessoas que vem do interior da Bahia e se deparam com rodoviária de Salvador, elas ficam às vezes assustadas, muitas vezes perdidas, sem saber como se localizar, sem saber a quem pedir referências. E as pessoas que trabalham na rodoviária, motoristas, despachantes, eles se queixam que os passageiros fazem perguntas às vezes óbvias, na frente dos ônibus, vendo o letreiro e perguntam se aquele ônibus tem aquele destino. Muitas vezes a bandeira do ônibus é outra porque algumas empresas, elas são unificadas (...), às vezes o carro que está com o nome da Castor, ele vai transportar passageiros que compraram uma passagem para o carro da Miramar, muitas vezes eles ficam confusos em relação a isso. Algumas vezes aborrecem os rodoviários quando perguntam se o carro das 10:20 é o das 10:15, ou 10:19 o carro tá lá. Os rodoviários muitas vezes não tem paciência porque parece óbvio.’ Sobre a rodoviária de Salvador: ‘tem coisas feias, coisa ruins, coisas tristes. Porque se você quiser ver gente bonita e alegre é só no aeroporto, que é gente que tem dinheiro’. Ele não relata o que vê e o entristece para os filhos, se emociona e com olhos marejados de lágrimas diz ‘que consegue deixar aqui [na rodoviária] essas coisas (...), que no rodoviário ainda tem coisa boa, de ser rodoviário, que é o fato de interagir, o fato de ver os colegas, o fato de ver pessoas’, e que chega mais cedo para isso, para interagir, ver os colegas (Diário de Campo, 04/08/2011).

Na rodoviária acontece muita coisa, tem pessoas de bem, mas vou te contar, na rodoviária existe muitas pessoas vulgares, que os motoristas 70% tem casos extraconjugais, um disse que não passava três dias sem ter uma mulher (Lúcio, 61 anos, despachante há mais de três décadas, Diário de Campo, 04/10/2010).

Jonas tem 28 anos, motorista há 01, casado, se queixa que a principal dificuldade, o principal problema, o motivo de descontentamento com a

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Insiders são membros de um grupo específico ou coletividade ou ocupantes de um status social específico,

carreira é ‘o estresse, o contato com os passageiros, os passageiros não dão bom dia. Os passageiros chegam e fazem as perguntas que eles objetivam, esse carro vai pra tal lugar? Esse carro vai sair agora? Como é que faço para pegar carro para outro lugar?’O rodoviário que está ao lado dele completa. ‘E é falta de dinheiro também, falta de educação, não é tanto a falta de dinheiro, mas é o estresse que os passageiros provocam, a falta de educação dos passageiros’ (Diário de Campo, 04/08/2011).

As interações entre rodoviários e passageiros ocorrem em diferentes momentos e não exclusivamente nos veículos e na relação entre o prestador do serviço e seu cliente. Nos terminais os rodoviários são impelidos a responder dúvidas de passageiros-clientes de diferentes empresas, se estabelece uma relação de consumo transversal e não remunerada, trabalhadores de uma empresa prestando serviço de orientação a clientes de outra empresa. A relação com os passageiros é ambígua, é ao mesmo tempo um atrativo da atividade e fonte constante de conflitos e estresse (MENDES, 2004; PAES-MACHADO; LEVENSTEIN, 2002; COSTA; KOYAMA; MINUCI; FISCHER, 2003). Em recente estudo conduzido com motoristas urbanos de Belo Horizonte –MG, os constantes conflitos produzidos no contato com os passageiros foi identificado como a principal dificuldade no trabalho e fator de desgaste (MENDES, 2004). Enquanto que em Florianópolis- SC, as observações conduzidas pelos pesquisadores identificaram bom relacionamento entre rodoviários e passageiros (BATTISTON; CRUZ HOFFMANN, 2006).

Essas interações rompem e recompõem, ao mesmo tempo, o tênue tecido que separa as interações formais, burocráticas e delimitadas pelas tarefas prescritas à função de motorista e cobrador. A regra é a mudança, a novidade constante, onde laços de solidariedade, cumplicidade, jogos lúdicos, atritos e tantas outras interações alteram o cotidiano, forjando cada dia de modo único. O contato com o ‘artigo humano’ protege e expõe, flagela e cura, desgasta e renova, atrai e repele, conforta e fere:

Pedro, 37 anos, cobrador há 8 anos. ‘A gente lida com duas coisas difíceis: dinheiro e público. É o trabalho do cobrador, por isso tem que ficar atento, tem muita gente de má fé. O responsável é o cobrador, se falta R$0,05... passageiro fala: cobra, quebra essa pra mim, tá faltando cinco centavos. Mas se você deixa faltar R$0,05, passageiro vem pra cima [dizendo] que a gente tá querendo encher o papo, então são dois pesos e uma medida. A gente é tudo: despertador, meteorologia do tempo, psicólogo, guia, tem que saber nome de rua, locais. Por isso que digo que tem que ter amor pra trabalhar como rodoviário, tem que ser digno pra fazer bem feito. A gente gosta, mas continua também porque qualquer emprego tem que ter NS, nível superior. O bom é o contato com o público, dar risada. Ao dia são 400 a 500 passageiros transportados. Quando o passageiro não tem, a gente coloca do bolso.’ Quando pergunto

o gasto que ele tem com esse auxílio, me diz que é em torno de 12 a 13 reais ao mês, certa vez esse mesmo valor foi apontado por outro rodoviário. ‘A empresa nos paga pra chegar até a ela o mínimo possível, então somos conselheiro, meteorologia. A empresa não paga só pra ser cobrador e motorista, paga pra resolver pepino.’ Pedro fala comigo enquanto toma café em uma mesa plástica de uma pequeno trailer em uma rodoviária minúscula do interior, comia dois pães com manteiga e leite com café, como não houve tempo de terminar seu café, sai com os pães em uma sacola, tomando seu café e se desculpa por ter que sair (Diário de Campo, 01/06/2011).

Marcelo, 40 anos, motorista há 1,4 anos, diz que tem muitos amigos, ‘ganha lanches, agrados e sente-se querido por passageiros’, se emociona, diz ‘a gente não sabe quem é ladrão, eu já achei que era ladrão e aí era polícia. Então a gente a depende deles [passageiros], já teve situação de precisar pegar testemunha por conta de acidente, e [passageiro] chegou a dar o telefone e falar: olha Marcelo, é só ligar. Então isso é bonito, a gente trabalha com Pessoas31

(Diário de Campo, 01/06/2011).

Durante a produção de dados, entrevistas com trabalhadores de outros segmentos e do próprio setor de transporte rodoviário, que migraram recentemente para atendimento a passageiros, permitiu que se observassem especificidades atribuídas à clientela deste segmento, descrita como queixosa, insatisfeita e agressiva:

Heitor, 23 anos, é despachante há seis meses. Diz que o trabalho é o de orientar o tráfego. Trabalhou antes com vendas, mudou porque diz ser melhor o salário como despachante. Em relação à diferença entre passageiro e cliente do comércio diz que passageiro é mais exigente e mal educado, agride com palavras e às vezes fisicamente (Diário de Campo, 04/10/2010).

É comum os rodoviários classificarem os passageiros de um determinado turno e linha como unidade, grupo “difícil” de lidar, “gente boa”, agradáveis ou desagradáveis. Nessa situação de copresença, característica da atividade, coexistem diferentes subjetividades e coletividades que, na perspectiva dos rodoviários, se metamorfizam em um grupo mais ou menos homogêneo com condutas prescritas: o de passageiros em deslocamento para um destino, que a depender das características do veículo e itinerário (incluindo origem e destino) se comportam de modo distinto de um itinerário para outro. De modo semelhante, os rodoviários se percebem agrupados como uma categoria sólida pelos passageiros.

Mas, muitas vezes a visão que as pessoas tem é: ignorante, é burro... o que você pensar. Porque na realidade, exemplo, os passageiros de um coletivo como um todo é diferente dos passageiros de um carro desse ai [intermunicipal executivo], entendeu? A pessoa senta, fica lá, você para o carro ninguém fala nada. Pode parar um coletivo que: ‘porra motorista tá atrasado, porra!’ É totalmente diferente. Até essas pessoas que viajam lá quando vem aqui, eles se sentem assim, quando eles sentam, pelo ambiente, pelo carro, eles vem as pessoas todas quietinhas, caladinhas, ficam também caladinhos. Mas, coletivo, começa a conversar, aquela agonia. Tem um pessoal fazendo batucada, é diferente. É igual a motorista vê todo alinhado, com o carro todo sujo, você vê assim no painel (Carlos, 35 anos, rodoviário intermunicipal há 4/5 anos).

Elementos como valores das passagens, características físicas dos veículos, duração da viagem, itinerário, conduta e trajes dos demais passageiros, vestimentas dos rodoviários, procedimentos operacionais exibidos pelos rodoviários - como, por exemplo, se dirigir aos passageiros e anunciar o roteiro da viagem e orientá-los sobre o uso de cinto de segurança – são marcadores que definem e tipificam uma situação modelando condutas individuais e coletivas, em alguma medida.

As relações estabelecidas intra-rodoviários (insiders) (MERTON, 1964) também são percebidas como satisfatórias e insatisfatórias, atuando tanto como mantenedoras, quanto como deletérias da afeição à atividade. Despachantes e motoristas instrutores estão em condições de trabalho e vulnerabilidade bastante distintas daquelas enfrentadas por motoristas e cobradores. Os primeiros, emitem bilhetes (em terminais menores), fazem a conferência destes e de documentos portados por passageiros no embarque e desembarque, auxiliam na identificação e acomodação de bagagens, informam usuários e manejam ânimos de passageiros, ou seja, exercem suas atividades exclusivamente nos terminais rodoviários e tem contato frequente com motoristas e cobradores. Já os motoristas instrutores são ao mesmo tempo tutores e fiscais que acompanham motoristas em roteiros novos, são solicitados para resolver problemas diversos, estão tanto nos terminais, nas garagens, quanto nas vias; a diversificação de tarefas os colocam em menor contato com os passageiros quando comparados aos motoristas e cobradores.

Motoristas instrutores são vistos de modo ambíguo, como pertinentes à classe e como controladores a serviço do empregador (outsiders), estando tanto em espaços institucionais, como em trânsito, e raras vezes compartilham condições de trabalho semelhantes a dos motoristas e cobradores.

Diante dos múltiplos motivos de descontentamentos que concorrem com a relação entre rodoviários e instrutores, poucos rodoviários queixam-se voluntariamente da relação

com os instrutores, quando se expressam sobre as pressões no trabalho, os incluem como “pressão psicológica” que a empresa exerce. Em entrevista, uma psicóloga clínica que atende rodoviários de uma das maiores empresas do estado descreveu a relação entre os motoristas e instrutores como uma relação de intimidação. Uma relação que também pode ser de assédio moral, desqualificação e hostilidade:

Em 2000, Mara identificou que os motoristas instrutores também necessitavam dessa intervenção [grupo terapêutico que realiza com motoristas]. Ao contrário dos demais motoristas, não viajam mais, treinam os novatos e são vistos com desconforto pelos outros motoristas. A presença de um instrutor intimida tanto que há apelidos como Hitler, Sadan e Miseravão (Psicóloga, 50 anos, trabalha com rodoviários há 12 anos, Diário de Campo, 06/06/2008).

Luciano é instrutor há dois anos, rodoviário há sete anos, 36 anos de idade, foi policial militar dois anos. Na ambientação [treinamento que fazem antes se serem integrados à equipe] para se tornar motorista ouviu que os motoristas são arranjeiros e armengueiros. Arranjeiros que não se profissionalizam, são acomodados, não evoluem, e armengueiros porque fingem que fazem coisas e não fazem, fingem que trabalham muito, mas enrolam (Diário de Campo, 02/03/2011).

A satisfação no relacionamento entre motoristas instrutores versus motoristas e cobradores está sujeita ao nível de controle, modo de exercitar poder e rechaço dos primeiros em relação aos últimos. Na ambientação, nos treinamentos que se seguem ao longo da carreira, na figura do palestrante, dos gerentes, do controlador de tráfego, do fiscal secreto, do motorista instrutor e tantos outros agentes de controle humanos e mecânicos (bafômetros e câmeras de vídeo), o trabalhador é (con)formado no modelo de mercadoria comercialmente vantajoso ao empregador. Por delegação, os controladores de tráfego e instrutores fiscalizam e regulam vestimentas e comportamentos dos rodoviários, o disciplinamento/adestramento é tão mais rígido quanto maior a inserção, status e poder econômico do empregador.

Nas empresas menores os uniformes são entregues ao trabalhador uma vez ao ano, ou uma vez ao longo dos anos, embora seu uso seja exigido e controlado por sansão disciplinar. Resulta que, aqueles que se preocupam e dispõem de recursos pessoais, repõem com investimentos pessoais os uniformes exigidos; outros, por razões diversas, utilizam uniformes desbotados, puídos, com reparos visíveis. Nas empresas maiores, geralmente, as que disponibilizam viagens de longa distância, e mais ainda, se são viagens executivas ou executivas interestaduais, os uniformes incluem gravatas, camisas com bordados que

lembram pilotos de aeronaves, o polimento dos sapatos são verificados, além do cuidado com os cabelos e unhas. Os trechos a seguir retratam o controle e exigências dos empregadores e a discrepância nas condições proporcionadas para atendê-los:

Jaqueline, 33 anos, cobradora há cinco anos. A ‘farda é uma vez só, na empresa desde esses 02 anos e 04 meses. Depois tive que comprar; comprar no mercado e repor do bolso. Depois a empresa pede de volta’, quando engravidou, ela teve que mandar fazer a farda, precisou fazer uma calça, ela mesma pagou e como teve que fazer outra camisa, teve que devolver a antiga (Diário de Campo, 04/08/2011).

Tem empresa lá fora que não tem plano de saúde, aqui tem. Tem empresa que paga menos, aqui [na Delta] paga mais. Tem farda gratuita, sapato, não sei o que, né?! Comida! Café. Tudo, né? Entendeu? (Claudio, 47 anos, motorista há 25 anos).

Jean 54 anos, trabalha como despachante há 1 ano e 4 meses. Diz que eles recebem 03 camisas quando entram, 02 calças, 01 meia, 01 cinto, 01 sapato. Seis meses depois eles recebem uma nova camisa, ‘então, não falta roupa, sempre tem roupa, uso uma camisa por baixo, para proteger, evitar ter suor. A empresa cobra muito, essa empresa cobra muito boa aparência, o fiscal chega ao ponto de fazer críticas sobre o sapato, se o sapato não estiver engraxado, se o sapato não estiver certinho, se o sapato não estiver arrumadinho’. Ele diz que eles ‘não tem lazer, que não tem lazer’, que eles ‘não tem vida. Nosso lazer é o trabalho, é dar o prazer para quem está se distraindo, esse é o nosso lazer’ (Diário de Campo, 04/08/2011).

Pelo uso do poder disciplinar (FOUCAULT, 2007) se elege, domestica e controla corpos, afetos visíveis (máscaras32 públicas), (pseudos) padrões psicológicos ou supostos modos de reagir a eventos, condutas individuais e coletivas, conferindo aos subgrupos de rodoviários características que os mesclam/unificam e distinguem. No setor de serviços, vende-se o produto, o produtor e o modo de produção. Posto de outro modo, o passageiro adquire o transporte para um destino e o modo como este serviço será prestado, o que inclui o agente humano, o rodoviário em seu modo de produzir a mercadoria adquirida. A busca do empregador pela ‘satisfação’ do cliente impõe ao rodoviário um modo de produção determinado por regras de conduta interacionais e emocionais, quando entra em cena o consumidor.

O conceito ‘trabalho emocional’, foi cunhado por Hochschild (1983) para descrever a construção e imposição de “um padrão de sentimento ideal construído na interação

32 Goffman (1983) define ‘máscara’ como parte do desempenho de uma pessoa para definir uma situação

para aqueles que a observam, permite que os outros leiam traços projetados do caráter e papel social do observado.

social, e procuram manusear e administrar suas emoções profundas para adequá-las a essa expectativa quando não estão sentindo assim internamente” (BONELLI, 2004, p.357). No âmbito das atitudes, as manifestações emocionais ocorreriam em dois níveis, um mais superficial, que se refere mais à dramatização quando em cena com estranhos; e no nível mais profundo, o modo de sentir, e não apenas as expressões externas seriam treinadas (HOCHSCHILD, 2003). No contato com o público, o trabalhador, além do produto base da relação (o deslocamento físico), produz um estado emocional observável que por si, resulta em um estado emocional no observador/consumidor. O empregador, então, controla também o ‘trabalho emocional’, ou melhor, o produto emocional.

Esse processo de construção de estados emocionais assume para alguns rodoviários o status de ethos profissional, enquanto modo de portar-se no cotidiano e reagir a eventos. Observou-se em campo, mesmo no trato com a pesquisadora, algumas vezes, uma postura servil. Trata-se de um controle que é exercito verticalmente e horizontalmente, pelos superiores e pares e que algumas é tão diluído nas práticas cotidianas e legitimados que quando alcançados, conferem ao indivíduo um senso de dever cumprido, um orgulho de si mesmo.