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2.1 Inserção no Campo: o Relato de uma Trajetória Metodológica

2.1.2 O Encontro de um Lugar no Campo

Paralelamente à busca de informações junto à Polícia Rodoviária Federal e do Batalhão de Polícia Rodoviária da Polícia Militar, outras estratégias de aproximação com os rodoviários foram exploradas. Nas primeiras incursões no terminal rodoviário soteropolitano um jovem funcionário da AGERBA permitiu minha entrada à área de embarque de acesso exclusivo a funcionários e passageiros com bilhetes. Nessas ocasiões,

fui apresentada a alguns rodoviários e os entrevistei. Todavia, um desconforto tal qual havia sido percebido nos empresários também foi identificado nesses rodoviários, logo, esta estratégia de aproximação foi abandonada. Sentimentos de desconfiança pareciam ter se originado da suspeita de que eu fosse uma delatora, por ter sido apresentada por um fiscal da AGERBA. Era preciso conseguir acesso às áreas restritas da rodoviária sem a necessidade de ser acompanhada pelos fiscais da Agência.

Frente às dificuldades encontradas iniciei duas novas estratégias de acesso aos rodoviários: diretamente no terminal rodoviário e nas empresas de transporte. O acesso aos rodoviários dentro do terminal ocorreu via autorização formal do coordenador geral do terminal rodoviário, a cada incursão, o supervisor de segurança liberava minha entrada da pesquisadora nas áreas restritas de embarque e desembarque de passageiros. A solicitação de acesso ao terminal foi renovada via ofício ao menos outras três vezes.

A partir dessa concessão foi possível observar algumas constâncias no cotidiano desses profissionais. Os rodoviários dispunham de pequenos intervalos entre as viagens, onde se alimentavam, buscavam outros colegas para conversarem ou faziam pequenas compras e ligações telefônicas. Nessas pausas de trabalho eu me apresentava, a entrevista era iniciada, mas dificilmente concluída. As entrevistas ocorriam dentro dos veículos, em um café e restaurante, em espaços mais esvaziados, entre ônibus, distante de passageiros ou entre o vai-e-vem de pessoas que no ambiente ruidoso dos roncos de motores e ‘zunzunzum’ das conversas dos passantes, de modo estranho, garantia a privacidade da fala dos interlocutores (entrevistadora-entrevistados) que conversam em tom baixo.

A restrição de tempo dos rodoviários durante suas rotinas de trabalho não permitia a introdução gradual do tema central da investigação – a vitimização por roubos -; partindo do tema e perguntas menos densos, menos ansiógenos, para os mais tensos, o que demandou o desenvolvimento de um roteiro bastante abreviado. O roteiro inicial foi alterado para ser adaptado à dinâmica da interação e ao tempo disponível dos rodoviários. A princípio, utilizei dois roteiros, um abreviado e outro extendido (que incluia condições de trabalho, além da vitimização). A versão mais extendida permaneceu inapropriada e em campo nunca pôde ser devidamente completada nos terminais rodoviários.

Assim sendo, foi necessário trabalhar com entrevistas distintas, uma voltada para vitimização e outra para condições de trabalho (Apêndices 1 e 2). Muitas vezes essas se mesclavam, conforme a dinâmica de cada encontro. Imediatamente depois, as notas esquemáticas das entrevistas feitas em diário de campo eram recuperadas e desenvolvidas, algumas vezes com o uso de gravador, onde eu narrava as entrevistas. Em relação à

interação desenvolvida durante a entrevista, foi constatado que uma abordagem amistosa favorecia uma maior colaboração, inclusive na indicação de outros participantes para o estudo.

Em entrevista realizada na AGERBA soube que até 2008, jornalistas, cabos eleitorais e fiscais se passavam por pesquisadores para obter informações privilegiadas dos rodoviários. A fim de demonstrar a veracidade do estudo em desenvolvimento e de minha identidade como pesquisadora, no início de cada entrevista, durante a fase de apresentação, testei uma nova estratégia, me colocava como pesquisadora e também psicóloga e exibia meu Registro Profissional do Conselho de Psicologia. A combinação de abordagem amistosa e comprovação de identidade alteraram significativamente de forma positiva a interação e a qualidade dos dados produzidos, quando comparados com a abordagem utilizada nos primeiros meses de atividade exploratória. Com cuidado e delicadeza era enfatizado o papel de pesquisadora, para que não gerasse nos entrevistados a expectativa de uma intervenção terapeutica e que eles não se sentissem inibidos pelo temor, baseado em estereótipos, de que ‘seriam analisados’ e seus segredos, descobertos, embora em uma pesquisa, a análise seja uma tarefa, mas não no sentido de análise clínica.

A abordagem desenvolvida foi guiada pela sensibilidade, pelo interesse legítimo, real e sensível pela vida daquelas pessoas. Isso significava alguns rituais de passagem que distinguiria um especulador dissimulado, de uma pesquisadora realmente interessada em ouvir e compreender. Os rodoviários também demonstraram maior disponibilidade e interesse em colaborar quando nas interações adotei uma postura de reconhecimento e aceitação da autoridade explicita e implicita da função deles. Isso significou, por exemplo, aguardar quando um motorista interrompia a entrevista para falar com passageiros que solicitavam informação ou para brincar com colegas que passavam pelo local. Significou reconhecer uma relação de poder onde, no seu ambiente de trabalho, durante parte do tempo o entrevistado estabelecia as regras da encenação. Quando a abordagem assumiu essa nova configuração, passei a ser reconhecida pelos rodoviários entrevistados nas incursões que se seguiam, recebendo acenos quando esses a avistavam. Eu não pretendia e de minha perspectiva, não parecereia no mesmo lugar deles, mas, seguramente, estava mais próxima de compreendê-los quando os via e com eles me relacionava enquanto sujeitos e coletividade.

Nessa construção de um lugar no campo e um modo de relacionar-me rituais de interação foram desenvolvidos gradualmente. A preparação para cada incursão a campo se iniciava no dia anterior com a reflexão sobre a escolha das vestimentas a serem usadas. Era

preciso pensar no lugar que ‘eu’ ocuparia e nas projeções que seriam elencadas a partir do ‘meu ser e estar em campo’: uma mulher branca na faixa de 30 anos, com sotaque indefinido (entre o paulista e mineiro), pesquisadora e psicóloga.

Decidi não negar minha identidade, mas tentava diluir e atenuar demarcadores de feminilidade e geração. Minhas roupas eram simples, discretas e sem marcas conhecidas, mas não forjavam um status socioeconomico superior ou inferior ao que possuo. Esses cuidados já haviam sido interiorizados por mim em experiências pregressas, em uma delas me lembro dos comentários de uma paciente sobre o incomodo provocado pelo som do choque das pulseiras utilizadas por sua colega de trabalho, quando essa falava e gesticulava. Ao atentar para esses detalhes a intenção era ocupar o lugar ao fundo, deixar o ator no palco e ‘tentar’ manter-me mais próximo do lugar de platéia.

Percebi que não deveria usar maquiagem, se utilizava, algum comentário era feito pelos mais próximos, aqueles que já conhecia há algum tempo e havia entrevistado diversas vezes. Mesmo um esmalte nas unhas era notado, certa vez ouvi: “Ah, você fez a unha, francesinha, né? A minha nem fiz, está feia, só com base e está descascado. Vou pedir pra minha mulher fazer” (Carlos, motorista). Os detalhes colocados são símbolos, signos que destacam a subjetividade do entrevistador, o colocam em palco mais do ele desejaria. Por outro lado, ao verbalizar a respeito desses detalhes, da forma como colocavam, os rodoviários exibiam sinais de confiança e intimidade. Em momento algum, qualquer rodoviário manifestou interesse de gênero; havia momentos que estavam tão imersos em suas narrativas que xingavam e reproduziam xingamentos ouvidos nos assaltos. Nessas ocasiões muitos seguiam com naturalidade, alguns se desculpam, e eu respondia com um sorriso que indicava que não havia incômodo. Quando estavam menos tensos, muitos deles se referiam a mim como “rapaz” ou “menina”.

O ritual ainda incluía um aperto de mão no ínício da entrevista, interrupções mínimas na narrativa do entrevistado, demostração de interesse legítimo no discurso, impresso no tom de voz, no modo de olhar, no aperto de mão ao término da entrevista e uma despedida com votos de boa viagem/bom descanso, em alguns casos, aguardar o ônibus sair da plataforma e acenar ou corresponder ao aceno, ao toque de buzina do rodoviário, com outro aceno, como despedida.

Muitas vezes, pequenos gestos como oferecer balas, pastilhas e chicletes abria nos rodoviários um sorriso, alguns aceitavam, outros, em resposta ao gesto de oferta, sentiam- se já próximos o suficiente para tocar meus ombros enquando a aceitavam ou recusavam. Por isso, a esses pequenos gestos chamo de ‘conectivos da interação’, à medida que

favorecem a interação, são simples, mas de efeitos profundos. Esses gestos de partilha, de afeto, de amistosidade davam à pesquisadora um outro lugar, uma proximidade maior: uma pessoa simples; “é psicóloga formada, mas faz conta da gente”; é mulher, mas “não se abre” (não é vulgar ou oferecida); é “de uma educação que faz gosto’. Tais projeções foram percebidas em falas diretas e nas entre-linhas. Me tornava consciente do lugar que passei a ocupar à medida que, em geral, os entrevistados expontaneamente indicavam e apresentavam colegas para serem entrevistados, não durante a entrevista, mas em outros dias, quando eu retornava na rodoviária de Salvador, quando aqueles entrevistados mais de uma vez, acenavam e buzinavam ao me verem; e sobretudo, quando os relatos passaram a ser mais densos.

Aos poucos, a pesquisadora foi aprendendo que o ‘tempo’ dos rodoviários é um tempo outro, tempo que corre diferente daquele vivido nas interações até então, estabelecidas ao logo de sua prática como psicóloga clínica institucional. Nada que havia vivido se comparava ao time, ao ‘tempo deles’ (rodoviários), à rapidez com que emergiam em um mergulho profundo em suas narrativas e com que retornavam à superficialidade dos discursos rotineiros. Nem mesmo a experiência de atendimento psicólogico com pacientes hospitalizados, que acabaram de se descobrir soropositivos, ou com mulheres violentadas sexualmente, em seu primeiro atendimento, alguns deles, horas depois do estupro, revelaram essa possibilidade de rapidamente entrar em um frame8 (GOFFMAN, 1974)

íntimo, explorá-lo, e em seguida, retomar a superficialidade do discurso. Depois de revelaram-se, ao final, as despedidas já eram mais afetuosas, distintas do contato estabelecido no início da interação. Havia nos sorrisos, apertos de mãos e olhares, uma cumplicidade característica de quem sente que foi compreendido, e em alguma medida, uma espécie de gratidão por parte deles, que se repetiu e se confirmou mais tarde, com a releitura da entrevista realizada com uma psicóloga que os definiu como pessoas que desejam contar suas histórias, falar de seus medos sem sentirem-se menosprezados.

Ainda em 2010, as entrevistas foram intensificadas, buscou-se por um lado, reconstruir a organização social dos roubos, e por outro, analisar as condições de trabalho dos rodoviários no estado. Com respeito às condições de trabalho, esforços foram empenhados com a finalidade de entrevistá-los em momentos fora da rotina de trabalho; pouco êxito foi obtido, raras entrevistas foram realizadas em outros espaços externos às

8Goffman defende que as definições de uma situação são construídas de acordo com princípios de

organização que governam os eventos, onde nosso envolvimento é subjetivo. O termo frame, algumas vezes traduzido como enquadre, foi utilizado pelo autor para se referir a elementos básicos como somos capazes de identificar (GOFFMAN, 1974, p.10).

rodoviárias. Em 2011 segui com viagens de curta e longa (até 12 horas) distância a destinos populares e conhecidos como hotspots com a finalidade de compreender o ambiente e as condições de trabalho do rodoviário. Nos primeiros dias de agosto de 2011 as entrevistas e observações foram interrompidas com minha partida para intercâmbio doutoral de quatro meses na Universidad Nacional de Lanus, na República Argentina. Antes de partir estive na rodoviária de Salvador e comuniquei àqueles que tinha maior contato a minha saída do campo. Em ‘terras estranhas’ tentei com distanciamento físico, o aprofundamento analítico e produzi as seções que considero mais ‘sensíveis’ às vivências dos rodoviários: ‘Condições’ (3.2), ‘Relações de Trabalho’ (3.3), ‘Desvalorização Profissional’ (3.4) e ‘As Experiências das Vítimas’ (7).

Durante a produção de dados, as análises e a escrita da tese busquei considerar as repercussões que surgiriam a partir da entrada de uma pesquisadora em um campo que lhe era novo e como as relações de gênero - uma mulher entrevistando homens em papéis costumeiramente masculinos e marcados por estereótipos - se apresentariam nas interações entre mim e os participantes e nos resultados da pesquisa. Reconheço que nem sempre logrei êxito quanto a esses objetivos. Nesse sentido, foram significativamente importantes a utilização da triangulação de fontes como método de confirmação dos dados e o exercício reflexivo e autocrítico, onde mentalmente questionava minhas fontes, suas falas, minhas falas e minha capacidade de relativizar, situar as falas, considerando os impactos das identidades dos atores em interlocução nessas narrativas.