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3 CONDIÇÕES E RELAÇÕES DE TRABALHO NO TRANSPORTE RODOVIÁRIO

6.2 Scripts do “Baculejo”: o Roteiro de uma Viagem ao Inferno

6.2.1 O vapt-vupt do busú

Fase 1. A copresença

Nos serviços comerciais, se a renda obtida com os roubos é menor, os esforços para abordar o ônibus também são, pois se trata de um alvo facilmente acessível. Um observador atento que resida próximo a rodovias ou viaje em determinada linha será capaz

68 Por reconstituições entende-se a recomposição do evento incluindo a cronologia de ações e papéis dos

envolvidos a partir de entrevistas com as vítimas diretas (aquelas que tiveram seus bens tomados) e observadores, entrevistas com policiais, análise de documentos (notícias publicadas) e questionários.

de prever a aproximação do veículo e os locais de parada onde possa ser embarcado. A copresença é estabelecida com a simulação de uma situação rotineira, o ofensor se coloca como passageiro em ambas a situações: nas rodoviárias e nos pontos de embarque e desembarque. Alguns assaltantes se camuflam como clientes aguardando o melhor momento para a abordagem enquanto outros passam algum tempo planejando o ataque quando surge a oportunidade (MAYHEW, 2000a).

Fase 2. É estabelecido um frame de roubo comum entre ofensor e vítima(s)

A grande maioria dos ofensores inicia o frame após estarem embarcados como passageiros comuns; como o time desses roubos é muito dinâmico, as intenções dos ofensores são declaradas rapidamente, dois ou três pontos após seu embarque. Ao contrário do que ocorre nos veículos executivos, o rodoviário não é necessariamente confrontado com o frame de roubo inicialmente, passageiros e/ou cobrador de passagens podem ser lançados no frame e só mais tarde o motorista vivenciar a experiência de definição de situação de roubo. A esse respeito foram observadas as seguintes formas do ofensor estabelecer o frame:

• No momento de embarque, ou na situação de embarque/desembarque de passageiros o ofensor anuncia o assalto e ameaça o rodoviário: o roubo pode ser iniciado e concluído ainda na escada de acesso ao veículo ou fora dele, quando o cobrador sai do veículo, em alguns casos apenas os passageiros próximos ao rodoviário percebem o roubo. Esses roubos são mais comuns na zona urbana de cidades da Região Metropolitana de Salvador. Quando trabalham em dupla motorista-cobrador, nem sempre aquele que não foi abordado nota do parceiro:

Jaqueline, 33 anos, rodoviária há cinco anos. Sofreu um assalto na véspera de São João de 2007, na linha de Camaçari, 18:30hs da tarde, ‘já era noite, estava escuro, o rapaz pediu o ponto, estava com 02 sacos de lixo, mais como se fosse saco de encomenda, de bagagem, saco de farinha, fingiram que iam embarcar. Quando o carro parou, mais 03 homens saltaram do mato já mascarados e os dois que já estavam no mato vestiram a máscara, na verdade, eram camisetas’. Ela estava fora do carro e eles a fizeram ir pra frente do carro, ela ficou ‘com as mãos para cima, exatamente como as pessoas ficam quando elas são rendidas’ (Diário de Campo, 04/08/2011).

Luciano é instrutor há dois anos, rodoviário há 7, 36 anos de idade, foi policial militar dois anos. Há dois dias a esposa que é cobradora ‘foi

assaltada quando parou para retirar bagagem no ponto da Jaqueira, dois homens surgiram e deram voz de assalto, ela grávida disse que tinha que pegar a pochete no carro, o motorista não percebeu e quando ela entrou, ele puxou o carro. Não houve disparos. Quando ela disse pra os assaltantes que ia pegar a pochete um deles dizia ao outro: atira nela rapaz, atira nela, você tá esperando o que? Atira!’ (Diário de Campo, 02/03/2011).

• O(s) ofensor(es) embarca(m), instantes depois anuncia(m) o roubo. Ao mesmo tempo passageiros e rodoviários se deparam com a definição de situação de roubo e são co-orientados para o frame de roubo.

• Embarcado(s) no veículo como suposto(s) passageiro(s) os ofensores anunciam o roubo aos passageiros, o motorista toma conhecimento do roubo momentos depois, durante sua evolução. Em outro oposto, há assaltantes que embarcam como passageiros comuns, alguns pontos depois, antes de desembarcar, anunciam o assalto ao rodoviário, apenas os passageiros imediatamente próximos ao rodoviário notam o enquadre, esses podem ou não serem assaltados. Quando os motoristas acumulam a função de cobradores, algumas vezes são as únicas vítimas do roubo.

Entrevisto Cristiano, 40 anos, rodoviário há 16, foi assaltado há 10 anos, ia para Monte Gordo, ‘no ponto da Brasil Gás um rapaz de cerca de 25 anos embarcou, foi até o fundo do ônibus, voltou e sentou no meio do veículo’. Vendo e considerando ‘a atitude suspeita’, pensou em ‘fingir uma quebra’ do veículo, mas não houve tempo, o assaltante abordou o motorista e levou o dinheiro pessoal dele. Os passageiros não perceberam o assalto, o motorista não registrou a ocorrência porque diz temer represália, não teve o valor perdido reposto (Diário de Campo, 02/03/09).

Em 2010 Marcelo começou a trabalhar, em 01/02, no carnaval, dias depois, em 05/02 dois homem entraram em Plataforma e realizaram um assalto. Marcelo não percebeu o assalto em curso, ‘só via duas pessoas aparentemente uma se debatendo’, pensou se tratar de ‘convulsão, mas era um assaltante tomando os tênis de um passageiro’. Se deu conta de que era um assalto quando ouviu um deles gritar ‘atira nele, atira nele que ele não quer parar. Então o cobrador interveio e disse: não atire não que ele [motorista] é novato, não tá por dentro’ (Marcelo, 40 anos, motorista, é rodoviário há 1,4 anos, Diário de Campo, 01/06/2011).

Enquanto que nas rodoviárias dificilmente o rodoviário consegue rejeitar passageiros “suspeitos”, nos pontos de embarque ao longo do itinerário, “dar janela” ou ignorar o passageiro é um recurso utilizado com frequência; nesses casos, alguns seguem como se desconhecessem a existência da parada, outros sinalizam com a mão que o ônibus

está lotado. Homens jovens, sozinhos, em duplas ou trios ao longo da rodovia despertam a insegurança nos rodoviários que lançam mão desse recurso como forma de prevenir a vitimização. Casais ou “tipos suspeitos” em meio a outros passageiros ativam a “cisma” de rodoviários que seguem em frente penalizando passageiros ao deixá-los para trás. As defesas utilizadas e a percepção de risco são discutidas na seção que trata das experiências das vítimas.

Fase 3. A transferência de bens

A participação das vítimas na transferência de bens está relacionada ao papel prévio da vítima (passageiro e rodoviário), ao objeto de cobiça e perfil dos ofensores. Além da renda das passagens e bens dos passageiros, os pertences pessoais do cobrador e/ou do motorista podem ser subtraídos. Sob a mira de arma de fogo o rodoviário é obrigado a atender a ordem do ofensor e entregar o que lhe é pedido. Em relação aos passageiros, dois modos de transferência foram observados: a vítima entrega o bem solicitado e/ou o ofensor toma o bem desejado. Para gerar complacência, tapas, coronhadas e ofensas são empregados. Em algumas ocasiões o assaltante age sozinho, com a arma de fogo ou faca apontada para o motorista obriga um dos passageiros a fazer a coleta de dinheiro e celulares transportados pelos passageiros.

Na presença de mais de um ofensor, enquanto um deles sustenta o frame de roubo com o rodoviário, o(s) outro(s) saqueia(m) os passageiros, o mesmo ofensor que mantém o rodoviário refém acumula a tarefa de fazer a segurança do(s) comparsa(s). Outra forma de ação é a cobertura simultânea da frente e do fundo do veículo, após a voz de assalto o saque é realizado ao mesmo tempo por ofensor(es) que parte(m) do fundo para à frente do veículo, enquanto o outro(s) prossegue(m) o saque no sentido oposto.

Os cobradores são mais propensos a serem as vítimas iniciais, em seguida, os passageiros, o motorista pode ou não ser poupado. Vistos como cofres vivos, portadores da féria da empresa e sendo algumas vezes jovens ou mulheres, os cobradores são também motivo de preocupação dos motoristas que temem reações de pânico ou não colaborativa por parte dos colegas. Bolsos de camisas e calças dos rodoviários podem ser revistados pelos ofensores, que se encarregam de tomar o que lhes interessarem.

Poucas vezes foi observado o desvio do veículo de seu itinerário. Um grupo liderado por jovem (caso de Tácio) tornou-se conhecido entre os rodoviários pela frequência com que atuava, em uma dessas abordagens o roubo se prolongou por cerca de

duas horas; com tempo suficiente para escolher os objetos de seu interesse, os ofensores vasculharam os pertences das vítimas:

Um assalto durou cerca de duas horas, o bando ao anunciar o assalto alterou o letreiro para Turismo, mexeram nas sacolas, diziam que a namorada precisava de tênis bonito pra ir à praia, buscavam nos pertences dos passageiros, hora diziam que precisavam de outro item. Foram para Feira de Santana e voltaram, saltaram na Jaqueira do Carneiro que é próxima a Brasil Gás; o grupo é o do filho de um rodoviário tatuado no braço com o nome Nélia (Élio, 38 anos, 15 anos de profissão, 25/11/2010).

Fase 4. Os ofensores deixam o setting do roubo

Sejam eles novatos ou mais experientes, os ofensores que roubam veículos comerciais são mais propensos a deixar o veículo poucos pontos após o embarque em trechos de fácil acesso a rotas de fuga, todos seguem em fuga à pé, carregando em mochilas os pertences das vítimas. Não há ameaças, às vítimas não é dada qualquer ordem nesse último estágio da interação. Alguns ofensores que desembarcam ao longo do trecho repetem a prática do delito ‘alguns ônibus depois’. A ação costuma ser rápida, desde a copresença com as vítimas até a fuga, o tempo despendido não costuma ultrapassar 20 minutos, se assemelha aos roubos a ônibus urbanos na cidade de Salvador analisados no estudo de Paes-Machado e Levenstein (2002), o que aponta para a possibilidade de penetração da criminalidade urbana em outros espaços. Para garantir a segurança da fuga, não é incomum os ofensores trocarem de roupas após o delito, evitando serem reconhecidos.