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3 CONDIÇÕES E RELAÇÕES DE TRABALHO NO TRANSPORTE RODOVIÁRIO

3.4 A (Des)valorização Profissional

3.4.1 Dor e sofrimento: profissão maculada

A partir dos 35 anos os motoristas intermunicipais de curta distância, especialmente que trabalham em viagens comerciais, questionam a continuidade na profissão, mesmo aqueles que encontram prazer na atividade. As condições de trabalho desgastantes, o estresse provocado pelo trânsito e relações descorteses com o público, a dieta inadequada os levam a desenvolver doenças osteomusculares, vasculares e digestivas, que diminuem sua empregabilidade no setor.

Enquanto no transporte em veículos mais luxuosos e de tecnologia mais moderna há melhor conforto e menor sofrimento físico do trabalhador, “o transporte urbano mói o sujeito, pega toda a carne e joga o osso” (Carlos, 35 anos, rodoviário intermunicipal há 4/5 anos), e de modo semelhante, no transporte semi-urbano/intermunicipal de curta distância, cujas condições são bastante similares ao transporte urbano, a saúde do rodoviário é deteriorada, tornando a atividade “uma profissão maculada, porque começa cedo e termina cedo” (Daniel, 25 anos, motorista há 2 anos, Diário de Campo, 02/02/2009). Os rodoviários se percebem como trabalhadores que possuem uma carreira breve, tal qual se possuíssem ‘prazo de validade’, doentes, são rejeitados pelo mercado de trabalho que outrora serviram:

Está visto aí. Só quem está realmente fora do sistema, mas a gente vê. (...) Motorista, as empresas pegam até quarenta anos, passou de quarenta e cinco não pega. Não pode pegar mais. Agora empresa assim, por exemplo, como a Planeta [que opera em longa distância entre municípios e estados] já pega alguém mais experiente, mas poucas empresas, a partir de quarenta já não pega mais. E outra coisa também fundamental, eu ia pegar o jornal e te mostrar aqui, mas infelizmente eu esqueci em casa. Pedindo motorista que tinha assim embaixo: ‘Observação: que nunca trabalhou em empresa de ônibus e nem com combustíveis fósseis.’ Ou seja, com carreta, né? Que tem...porque uma vez que trabalhou nessas empresas já não servem mais, tem que pegar aquele sem experiência, entendeu? Pra botar no regime dela. (...) A pessoa deve dar uns cinco anos sem dar problema nenhum. Aí depois de uns cinco ou seis anos a pessoa começa a enjoar do trabalho e ...no meu caso também eu já estou desanimado. Nem pela empresa, mas pelo sistema. Conheço tanta gente aí, quarenta anos aí, que trabalha e fica sem trabalhar. Aí tem que ir pra essas empresinha fazer bico. Que a gente chama bico, pra tentar se aposentar futuramente. Quer dizer, empresa grande só quer menino, passou de quarenta anos ou até mais... Essa ai a que eu trabalho, só pega até quarenta e três anos. Passou de quarenta e quatro num pega mais’ (Carlos, 35 anos, rodoviário há 4/5 anos).

Pergunto sobre a saúde, se teve algum reflexo do trabalho, ela diz que a coluna ‘acabou por causa do trabalho. Arregaçou, é a primeira coisa que acaba é a coluna. Pode perguntar para todo mundo, que acabou’ (Jaqueline, 33 anos, cobradora há 5 anos).

A literatura a respeito da saúde dos trabalhadores do setor de transportes indica que essa população possui um risco aumentado de desenvolvimento de problemas músculo- esqueléticos, gastrointestinais, obesidade (COSTA; KOYAMA; MINUCI; FISCHER, 2003; NERI; SOARES; SOARES, 2005) e hipertensão (COSTA, KOYAMA; MINUCI; FISCHER, 2003; NERI; SOARES; SOARES, 2005; BATTISTON; CRUZ HOFFMANN, 2006). Independente do tipo de veículo e modalidade de viagem as queixas sobre dores e hérnias de disco na coluna vertebral são frequentes, tanto em cobradores quanto em motoristas. Tais enfermidades são corroboradas pela literatura e pelo profissional de saúde entrevistado (médico que acompanha rodoviários de uma grande empresa baiana) que constatou uma relação de doenças que afetam seus pacientes: hipertensão, varizes, doenças na espinha dorsal, como ilustrado nas narrativas a seguir:

O estresse é tamanho que fica todo mundo doente, esses bancos, a comida, pode ver que é todo mundo com barriga, com gordura acumulada no abdômen, alimentação é ruim, como rápido e qualquer coisa, então leva a hipertensão e esses bancos ruim... hérnia de disco (Roberto, 45 anos, rodoviário há 16 anos, Diário de Campo, 15/05/2011).

Então [segue narrando], a gente tem medo, medo de reação, medo de revide, tá de costas. É um estresse todo mundo é doente, quer saber o que tem? Tudo hérnia de disco e hipertensão, eu mesmo tenho 4 hérnias, pressão alta que outro dia chegou 22/14’ (Mariano, 46 anos, rodoviário há 21 ano, Diário de Campo, 16/05/2011).

Outros quadros apontados pelo médico não tem sido identificados ou analisados com frequência na literatura: doenças gastrointestinais, transtornos do sono, doenças metabólicas (taxas altas de colesterol e diabetes) e transtornos sexuais (impotência e baixa libido), mas foram igualmente encontrados por Garaño (2002), apontando para semelhanças no adoecimento de trabalhadores do setor de transportes de passageiros. Quando comparadas com outros serviços, os empregados do setor de transporte de cargas e de passageiros têm aumentadas as chances de doenças de coluna e costas em 15,0% e 17,0%, respectivamente, os trabalhadores no setor de transporte de passageiros têm 28,0% a mais de chances de desenvolver tendinite (NERI; SOARES; SOARES, 2005).

Aspectos do posto, ou instrumento do trabalho, que envolvem ruído, temperatura, movimentos repetitivos, poluição, desempenho mecânico e repetitivo da tarefa e aspectos relacionais são descritos como capazes de provocar sofrimento físico e emocional. A temperatura atingida no interior do veículo, por exemplo, em lugar dos 27ºC considerados adequados, pode atingir 50ºC (no verão em Pernambuco), provocando inquietação (irritabilidade e agressividade, desatenção e sonolência (BATTISTON; CRUZ HOFFMANN, 2006). Circulam ainda em linhas intermunicipais baianas da região metropolitana ônibus que possuem motor dianteiro, como os referidos em Pernambuco. Os efeitos da rotina fatigante e dos turnos longos se cronificam no corpo, na empregabilidade e nas relações sociais e familiares.

O trabalho e seus significados é um dos construtores da subjetividade, atua positivamente se vivenciado de forma gratificante produzindo realização, ou como fonte de sofrimento, levando ao desenvolvimento de doenças psicossomáticas, adoecimento e morte (GARAÑO, 2002). O sofrimento emocional surge, para Garaño (2002), quando o trabalhador percebe que não pode controlar as condições de trabalho, e dentre as dimensões das condições de trabalho que impactam no sofrimento e saúde do trabalhador, a falta de reconhecimento pelos superiores e pares é uma delas.

Pode-se afirmar, a partir das evidências encontradas que a necessidade de ‘reconhecimento’ e de ‘consideração’ do profissional e do valor da atividade exercida inclui as dimensões: relacional – o reconhecimento da importância de sua atividade, o contato com passageiros, empregadores e seus representantes, colegas, a existência e a qualidade de contatos indesejáveis com outros atores, como assaltantes e motoristas de automóveis; financeira - remuneração pelo turno e pelas horas extras; e a dimensão laboral - as condições do veículo, dos locais de pausa, a acumulação de demandas, os turnos. A remuneração, embora seja um atrativo inicial, não é vista como compatível com as tarefas desempenhadas, não atua como recompensa adequada pelo desgaste e riscos enfrentados cotidianamente. Enquanto as relações afetivas, apesar de seu potencial para agregar sofrimento e vitimização no trabalho, ainda são percebidas como fonte de realização, sobretudo as estabelecidas com passageiros e pares.

4

ANTECEDENTES

DOS

ROUBOS

A

ÔNIBUS

INTERURBANOS

A análise da evolução dos roubos em uma escala temporal, proposta desta seção, demandou resgatar narrativas perdidas no tempo, retomar antigas histórias contadas por narradores hoje ausentes, estabelecer relações, semelhanças e distanciamentos com os relatos dos roubos ocorridos em outros estados e diálogo com outros territórios.

Recuperadas principalmente do banco de notícias publicadas no jornal Folha de São Paulo35, vozes de vítimas, observadores, policiais e jornalistas formaram um corpus documental que possibilitou estabelecer uma breve análise histórica comparativa entre os roubos em território baiano e outros estados. Desde a primeira notícia publicada pelo jornal até a data de 31/12/2009, totalizando 108 documentos.

Não se teve como objetivo a construção da “genealogia” dos roubos a ônibus nas estradas nacionais, mas investigar suas possíveis tendências e evoluções em fonte documental jornalística de amplo alcance geográfico. Nesse resgate, muitas vozes e tempos se encontraram no artesanal processo de interpretação, compreensão e explicação (CASAL, 1996), reconhecendo-se as limitações da fonte documental.