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Segundo Ramalho (2005, p. 281), o expoente da Análise Crítica do Discurso, doravante ACD, é reconhecido em Norman Fairclough que, em Language and power (1989) e

Discurso e mudança social (2001[1992]), ―apresenta uma concepção de linguagem como

forma de prática social atrelada às noções de poder e ideologia que se aproxima do enfoque discursivo-interacionista de Bakhtin‖. ―Não há linguagem fora do mundo, nem mundo fora da linguagem‖, professa Norman Fairclough (2001); e a linguagem, agindo em todos os contextos e práticas, demonstra que os fenômenos linguísticos são sociais, assim como os fenômenos sociais são linguísticos.

O discurso contribui para a constituição de todas as dimensões da estrutura social que, direta ou indiretamente, o moldam e o restringem: suas próprias normas e convenções, como também relações, identidades e instituições que lhe são subjacentes. O discurso é uma prática, não apenas de representação do mundo, mas de significação do mundo, constituindo e constituindo o mundo em significado. (FAIRCLOUGH, 2001, p. 91)

―A Análise Crítica do Discurso concebe o uso da linguagem como prática social, não como atividade puramente individual, como no caso da linguística saussuriana, nem como reflexo de variáveis situacionais, como na sociolinguística‖, continua Fairclough (id., p. 90). A prática discursiva ―é constitutiva tanto de maneira convencional como criativa: contribui para reproduzir a sociedade (identidades sociais, relações sociais, sistemas de conhecimento e crença), como é, mas também contribui para transformá-la‖ (ibid., p. 92).

Além da descrição ou da aplicação superficial, a ciência crítica de cada campo de conhecimento levanta questões que vão além, como as que dizem respeito à responsabilidade, interesses, e ideologia. Ao invés de focalizar problemas puramente acadêmicos ou teóricos, a ciência crítica toma como ponto de partida problemas sociais vigentes, e assim adota o ponto de vista dos que sofrem mais, e analisa de forma crítica os que estão no poder, os que são responsáveis, e os que dispõem de meios e oportunidades para resolver tais problemas. (van DIJK, 1986, p. 4)

Wodak (2004, p. 224) considera o contexto de uso da linguagem como um elemento crucial. Lembrando Fairclough, a autora postula que a ACD tem um interesse particular na relação entre a prática social da linguagem e o poder. A ACD tem sido usada para se referir à abordagem linguística crítica adotada por pesquisadores que consideram a unidade comunicativa básica a unidade mais ampla do texto, e as pesquisas decorrentes dessa perspectiva se voltam para os discursos institucional, político, de gênero social, e da mídia, que materializam relações mais ou menos explícitas de luta e conflito.

Atualmente, entretanto, o termo ―crítica‖ está sendo usado, de modo convencional, num sentido mais amplo, reconhecendo que, ―em questões humanas, as interconexões e as redes de causa e efeito podem ser distorcidas a ponto de saírem do campo de visão. Assim, a atividade crítica consiste, essencialmente, em tornar visível a natureza interligada das coisas‖ (FAIRCLOUGH, 1985, p. 747).

Há, no mínimo, duas acepções de discurso em ADC: como substantivo abstrato, significando linguagem e outros tipos de semiose como momentos da vida social e, mais concretamente, como um substantivo contável, significando modos particulares de representação de parte do mundo (FAIRCLOUGH, 2003, p. 26). Este momento irredutível, que se enquadra na primeira acepção, articula-se dialeticamente, em constantes relações mutáveis, com outros momentos constituintes de (redes de) práticas sociais (relações sociais, fenômenos mentais e atividade material), cada qual, a exemplo do momento semiótico, com seus próprios mecanismos causais, agindo em diferentes estratos e gerando efeitos no mundo. A semiose, dotada de força gerativa, interioriza elementos da ação social, das relações sociais, das crenças de pessoas, e, também, do mundo material em que se desenvolve a ação, além de ser interiorizada por eles em diferentes formas de articulação. [...] a ADC de vertente faircloughiana trabalha com as noções de vida social constituída em torno de práticas, ou seja, maneiras habituais, em tempos e espaços particulares, pelas quais pessoas aplicam recursos para (inter)agirem, e discurso, um momento sempre presente em práticas sociais, submetido a relações dialéticas constantes com os demais momentos, quais sejam, relações sociais, fenômenos mentais e atividade material. (RAMALHO, 2006, p. 318)8

Entre os conceitos considerados indispensáveis para a ACD estão o conceito de poder e o conceito de ideologia, que se propõem instrumentos para que se investigue criticamente ―como a desigualdade social é expressa, sinalizada, constituída, legitimada, e assim por diante, através do uso da linguagem (ou no discurso)‖ (WODAK, 2004, p. 224).

Os conceitos de ideologia, poder, hierarquia e gênero social, assim como variáveis sociológicas estáticas, foram considerados relevantes para a interpretação ou explicação do texto. Os temas investigados variam de acordo com os vários departamentos e estudiosos que aplicam a ACD. Questões de gênero social, de racismo, os discursos da mídia, ou as dimensões da identidade, tornaram-se proeminentes. (WODAK, 2004, p. 226)

Para Thompson (2002), o estudo da ideologia é o estudo ―de como o significado é construído e transmitido através de formas simbólicas de vários tipos‖ e, nesse caso, ―a ideologia está ligada ao signo, de forma que não existe ideologia sem signos‖ (BAKHTIN, 2006, p. 16).

No meio social, as diversas condições sócio-econômicas essenciais para a dinâmica e articulação do grupo em sua rede de relações interpessoais agem sob os sentidos e sob as significações interindividuais, formando signos e os saturando de valores (recortes valorativos) e de orientações (ideológicas). (ACOSTA-PEREIRA, 2008b, p. 133)

Wodak (2004, p. 226) diz que, se a dominação estrutura o discurso, então o discurso está situado no tempo e no espaço, pois é historicamente produzido e interpretado. A autora acredita que ―as estruturas de dominação são legitimadas pelas ideologias dos grupos que detém o poder‖ e a ―ACD possibilita a análise das pressões verticalizadas, e das possibilidades de resistência às relações desiguais de poder, que figuram como convenções sociais‖.

As teorias críticas, visando à conscientização e à emancipação dos sujeitos, são como guias para a ação humana, não só descrevendo e explicando, mas também expondo enganos. ―Ainda que adotem conceitos diferentes de ideologia, as teorias críticas pretendem despertar nos agentes a consciência de que, com frequência, eles são enganados a respeito de suas próprias necessidades e interesses‖, sublinha Wodak (id., p. 236).

Não sendo poderosa em si mesma, a ACD muitas vezes adota a perspectiva dos que sofrem; ela frequentemente se propõe a analisar a linguagem daqueles que acredita serem os responsáveis pela existência de desigualdades, daqueles que estão no poder e dispõem dos meios e oportunidades para melhorar as condições gerais da sociedade.

―Os textos costumam ser espaços de luta uma vez que guardam traços de diferentes discursos e ideologias em disputa pelo controle‖ (ibid., p. 237). Os textos contêm as diferenças discursivas negociadas dentro deles. Essas diferenças discursivas, por sua vez, são regidas por diferenças de poder que são em parte codificadas e determinadas pelo discurso e pelo gênero. A ACD esforça-se para desenvolver uma teoria linguística que incorpore a concepção de poder como condição central da vida social. Então, estudando a

intertextualidade e a recontextualização de discursos que competem entre si, a ACD volta-se também para a noção de luta pelo poder e pelo controle.

De acordo com Wodak, ―o poder envolve relações de diferença, particularmente os efeitos dessas diferenças nas estruturas sociais‖ (id., p. 237). A linguagem está permanentemente ligada às questões sociais e, consequentemente, ao poder social de várias maneiras, classificando-o, expressando-o, e estando presente nas disputas por ele. A linguagem tem sido utilizada para desafiar e subverter o poder numa alternância de distribuição ao longo da história.

A linguagem constitui um meio articulado com precisão para construir diferenças de poder nas estruturas sociais hierárquicas. Pouquíssimas estruturas linguísticas não foram colocadas, em algum momento, a serviço da expressão do poder através de um processo de metáfora sintática ou textual. (WODAK, 2004, p. 237)

Interessa à ACD o modo como a manipulação do poder está expressa através do uso de diferentes formas linguísticas. As formas gramaticais presentes no texto sinalizam o poder, mas igualmente sinalizam o ―controle que uma pessoa exerce sobre uma ocasião social através do gênero‖ (ibid., id.). Assim, dentro das ocasiões sociais associadas aos gêneros, é que se exerce e se desafia o poder institucionalizado na maior parte das vezes (isso é discutido no item 1.4).

Fairclough (1989), estabelecendo as teorias sociais que dão suporte à ACD, analisa uma variedade de textos para ilustrar o campo, seus objetivos e métodos de análise. Mais tarde, Fairclough (2001) e Chouliaraki e Fairclough (1999) explicam e elaboram alguns avanços da ACD, ao mostrar como o quadro analítico para investigar a linguagem em relação ao poder e em relação à ideologia se desenvolveu, bem como a utilidade da ACD em revelar a natureza discursiva de muitas das mudanças sociais e culturais contemporâneas.

A linguagem da mídia, particularmente, é analisada de modo a confrontar sua aparente transparência e imparcialidade com o espaço de lutas ideológicas e de poder que representa (isso é melhor discutido no item 1.4.1). Segundo Wodak (2004, p. 230-231), Fairclough ilustra o papel mediador e construtivo da mídia com inúmeros exemplos, e demonstra a falácia da crença na neutralidade das instituições midiáticas, as quais costumam se dizer objetivas por acreditarem dar espaço ao discurso público, refletir os fatos de forma desinteressada e expressar os argumentos dos jornalistas. Assim, toda a enunciação (vide item 1.2) está impregnada de conteúdo ideológico, e todo enunciado cria o novo, mas só o pode fazer a partir do já existente, sob pena de não ser compreendido, escreve Sobral (2005, p. 25).

No caso das ―revistas de mulheres‖, por exemplo, Caldas-Coulthard (2005, p. 124- 125), conclui que vários tipos de ideologias são suas âncoras: ‖a ideologia do consumo, a ideologia do conselho e a ideologia da informação‖, em que a primeira seria a principal, sendo a própria feminilidade definida através do consumo. Também pesquisando o gênero social feminino (vide item 1.5), Magalhães (2005, p. 181), baseada na ACD, investigou as vozes e a interdiscursividade em três diferentes gêneros, focando nos modos pelos quais a identidade feminina era textualmente mediada em um contexto de mudança social, e observou a coexistência de identidades novas e velhas entre mulheres de três gerações diferentes, sugerindo a necessidade da discussão acerca da identidade em relação à diferença. Concordando com as autoras supracitadas, nessa pesquisa, verifico como a identidade da mulher pós-menopausa está sendo veiculada na mídia.

É importante registrar, para concluir o presente item, que a abordagem da ACD começou a ser utilizada no Brasil no início dos anos 1990, com os trabalhos pioneiros das pesquisadoras Carmen Rosa Caldas-Coulthard e Izabel Magalhães - e teve um marco quando da publicação, em 1996, do livro Texts and practices: readings in critical discourse analysis, editado por Carmen Rosa Caldas-Coulthard e Malcolm Coulthard. -; atualmente, pesquisas ancoradas na abordagem da ACD e da LSF (vide item 1.3.1) vêm sendo desenvolvidas em programas de pós-graduação na área das ciências da linguagem em diversas universidades brasileiras, conforme enfatizam Figueiredo & Moritz (2008, p. 57).