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1.5 Gênero Social

1.5.2 Estereotipia

As formalizações semânticas não espelham as formas representadas em nossa mente e, nesse ponto, Bakhtin critica Saussure e a oposição dicotômica língua/fala, definida como uma oposição entre o social e o individual, juntando-se aí a uma certa concepção estruturalista pós- saussureana, observa Amorim (2004, p. 107).

Em trabalho anterior, lembrei (TAMANINI-ADAMES, 2008, p. 167) que a questão do sentido que atribuímos às coisas do mundo remonta de Aristóteles33 até, mais recentemente, Frege (1978), o qual fez uma distinção entre significado e referência no século XIX. Entretanto, só com Saussure (2001), no início do século XX, a noção de significado foi sistematizada. Embora esse autor tenha excluído o referente do conceito de signo, remetendo

33 Cf.: ARISTOTE. Rhétorique (Livre 1 et 2). 2e éd. Trad. M. Dufour et A. Wartelle. Paris: Société d‘Édition

a realidade para além de seu estudo, suas ideias incentivaram pesquisas no último século sobre ―significado, referência e referenciação‖.

No Curso de Linguística Geral, Saussure (2001, p. 80-81) postula que o sistema de signos é compartilhado por pessoas do sistema histórico-cultural, ou da instituição social. O signo linguístico, o qual para ele é a união de uma representação mental e uma imagem acústica, é arbitrário porque também é arbitrária a ligação entre essa representação mental chamada ―significado‖ a essa imagem acústica chamada ―significante‖. O linguísta (id., p. 83) acrescenta dizendo que o signo é arbitrário em relação ao significado, com o qual não tem nenhum laço natural na realidade.

Baseada em Scliar-Cabral (2002), apontei (TAMANINI-ADAMES, 2008, p. 172) que, em virtude do caráter abstrato dos conceitos, é difícil conceber como eles estarão representados na memória semântica, embora Scliar-Cabral (2002) entender que, não obstante o significado ser um evento mental, ainda deve ser necessário especificá-lo, e a forma mais fácil seria adotar a teoria saussureana da indissolubilidade do signo linguístico, em que para cada significado (conceito) corresponderia um significante (imagem acústica). Contudo, essa teoria colocaria enormes problemas teóricos e empíricos, já que não existe uma relação unívoca entre um conceito e sua suposta representação fonêmica, seja ao aceitarmos uma representação composicional de traços semânticos, ou uma rede semântica constituída de nós, ou uma hierarquia de estereótipos.

Tradicionalmente a referência tem sido compreendida como um problema de representação do mundo, devendo as formas linguísticas selecionadas para tal fim serem avaliadas em termos de sua correspondência ou não com objetos do ―mundo real‖ que lhes cabe espelhar, postulam Koch et al. (2005, p. 07). Segundo Salomão (2005, p. 165), da perspectiva reconhecida pelos trabalhos de Vygotsky e Bakhtin, linguagem e mundo estão interligados: a mente é parte do mundo, não o representando, mas agindo sobre ele, e o transformando ao transformar-se. Assim, analisada em meio às práticas sociais e às situações enunciativas, a língua deixou de ser identificada com a capacidade apenas mental, racional e intuitiva de corresponder à realidade, concluem os autores (id., p. 08).

Woodward (2000, p. 17) diz que é por meio dos significados gerados pelas representações que damos sentido à nossa experiência e àquilo que somos, posicionando-nos como sujeitos. Na verdade, de acordo com Salomão (2005, p. 162), uma vez que cada um dos sujeitos que participa de um grupo social adquire, pela aprendizagem, o conjunto de representações das experiências das gerações precedentes, na forma de um acervo de modelos

culturais, esse indivíduo passa a ter acesso a uma base de dados que seria incapaz de constituir sozinho no decurso de sua vida pessoal.

Para Vinnicombe & Singh (2002), o estereótipo constitui um conjunto de crenças, teorias e visões de um ou vários grupos sociais sobre o seu objeto de estereotipia, e tem como função formar e orientar tanto a comunicação como os comportamentos, surgindo, conforme Billigmeier (1990), como representações partilhadas que refletem e têm origem em projetos, problemas e estratégias dos grupos sociais.

Yim & Bond (2002) acrescentam que os estereótipos referem-se a percepções socialmente partilhadas de sujeitos pertencentes a grupos diferentes, as quais adquirem um caráter de rigidez e alto grau de generalização, sendo uma de suas características enquanto produtos de interação social, ―precisamente, a sua irracionalidade e em grande medida invulnerabilidade mesmo face à evidência de informação disponível correta‖ (BILLIGMEIER, 1990, p. 474).

Para Shin & Kleiner (2001), um estereótipo tem um ponto de aplicação normalmente restrito, um forte componente afetivo e encontra-se com frequência na base de atitudes de discriminação social. Contudo, os autores (id.) enfatizam que essa rigidez própria do estereótipo não implica que ele comporte necessariamente uma percepção falsa da realidade. Entretanto, de qualquer modo, eles adquirem um enorme grau de estabilidade no tempo e um alto nível de convencionalidade social que os torna dificilmente alteráveis, mesmo quando os atores sociais que os detêm dispõem de ulteriores informações que invalidam o seu conteúdo. Assim, a irracionalidade do estereótipo não advém em primeiro lugar do seu conteúdo - que pode não remeter para informações falsas, apenas deficientemente processadas - mas da inflexibilidade do seu caráter, mesmo em face de eventuais evidências racionais que o contradigam.

Yim & Bond (2002) acreditam que o estereótipo é uma forma de categorização da realidade que possui uma forte coloração avaliativa e afetiva, frequentemente negativa, mas que também pode surgir com conteúdo positivo. Mas, sejam eles negativos ou positivos, os estereótipos têm como função reduzir a incerteza e organizar a realidade envolvente, tornando-se eles mesmos elementos reais constituintes desse mesmo meio.

Convivemos com clichês, fórmulas e estereótipos. Em alguns casos, trata-se mais de elementos da língua(gem). Em outros, trata-se de construtos histórico-sociais - pensam-se frequentemente os grupos humanos por meio de estereótipos, o que frequentemente condiciona discursos na política, na literatura, na publicidade, na escola, ao mesmo tempo em que é nesses lugares que eles surgem e se mantêm. As fórmulas circulam muito mais do que se imagina, talvez. E numerosos discursos se fundam em estereótipos. [...] O fenômeno sempre ocorreu, mas talvez

se tenha intensificado no mundo contemporâneo. A mídia é talvez seu principal veículo [...]. A relação entre língua, ideologia e sociedade é frequentemente de mão dupla/tripla. Um estereótipo social pode ser crucial para um texto, um texto pode seguir ou ser uma fórmula. (POSSENTI & ALKIMIN, 2008, p. 01)

Para Amossy (1991), os estereótipos são o prêt-à-porter do espírito: ideias pré- concebidas que cada sujeito faz de uma classe ou tipo de pessoas, representações coletivas através das quais esse sujeito apreende a realidade cotidiana e constrói as significações do mundo. De maneira recíproca, a produção cultural se nutre das imagens que circulam nessa sociedade pós-moderna assentada em um estoque pré-existente de representações coletivas, fazendo modificações necessárias e, com isso, alcançando mais ou menos sucesso. E, nesse vai-e-vem incessante, as imagens se firmam em nossa mente através de uma divulgação abundante das ideias e representações advindas da mídia.

Frege (1978) defende que a representação é historicamente determinável, mas ―sentido‖ e ―referência‖ estão atados à busca da verdade e, de acordo com Grillo (2003, p. 90), a distinção fregeana sentido-referência/representação pode ser equiparada com a dicotomia fato/valor ou objetividade/subjetividade. Assim, para que a objetividade dos gêneros informativos seja alcançada, a função da linguagem teria de ser primordialmente referencial e informativa, bem como concebida como um instrumento neutro de acesso ao real, conclui (id., p. 99).

Entretanto, se as palavras ganham sentidos a partir dos processos interativos do qual participam, como diz Bakhtin (1997), tornando-se signos ideológicos revestidos de valores atribuídos por sujeitos na concepção dialógica, é um contra-senso falar em uma linguagem neutra, cujo sentido possa ser aferido exclusivamente pelo valor de verdade das proposições.

Se a referência de um sinal é um objeto sensorialmente perceptível, minha representação é uma imagem interna, emersa das lembranças de impressões sensíveis passadas e das atividades, internas e externas, que realizei. [...] A representação é subjetiva: a representação de um homem não é a mesma de outro. [...] A representação, por tal razão, difere essencialmente do sentido de um sinal, o qual pode ser a propriedade comum de muitos e, portanto, não é uma parte ou modo da mente individual [...] (FREGE, 1978, p. 64-65)

Do ponto de vista comportamental, a relação entre estereótipos e comportamento discriminatório nem sempre é automática, alertam Vinnicombe & Singh (2002). No caso da representação feminina, o que o estereótipo faz é criar uma imagem rígida de mulher, que não existe por si só, mas que vai sendo construída nas interações sociais a partir das representações pré-existentes e que, tornando-se uma crença, por vezes exagerada, está

associada a uma categoria dada que é aceita e partilhada socialmente por um grupo de pessoas que se identificam com tal imagem.

Resultado de contradições e ambivalências, a figura feminina é produzida na cultura de massas contemporânea como sujeito, no sentido de agente de práticas sociais, tanto quanto como objeto. O reflexo dessa ambivalência entre o moderno e o tradicional faz com que repercutam no meio social os estímulos a sugestões político-emancipacionistas, mas também os estereótipos ligados às visões mais tradicionais. (PIRES, 1999, p. 141)

Segundo Swain (2001, p. 12-13), as composições de gênero social determinam os valores e os modelos do corpo feminino, criando ―paradigmas físicos, morais, mentais cujas associações tendem a homogeneizar o ser mulher, desenhando em múltiplos registros o perfil da verdadeira mulher‖. Embora o modelo masculino também seja submetido a modelos estereotípicos de comportamento, ―a hierarquia que funda sua instituição no social desnuda o solo sobre o qual se apoia a construção dos estereótipos: o exercício de um poder que se exprime em todos os níveis do social‖ (ibid., id.). Além dos papeis sociais feminino e masculino, as imagens de gênero social também constroem os corpos biológicos, não só enquanto sexo genital, mas ―moldando-os e assujeitando-os a práticas normativas que hoje se encontram disseminadas no Ocidente‖ (ibid., id.).

A maior beleza é a do corpo livre, desinibido em seu jeito próprio de ser, gracioso porque todo ser vivo é gracioso quando não vive oprimido e com medo. É a livre expressão de nossos humores, desejos e odores; é o fim da culpa e do medo que sentimos pela nossa sensualidade natural; é a conquista do direito e da coragem a uma vida afetiva mais satisfatória; é a liberdade, a ternura e a autoconfiança que nos tornarão belas. É essa a beleza fundamental. (KEHL, 1982, p. 14-15)