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1.5 Gênero Social

1.5.3 Identidade

Para Possenti (2002, p. 156), o estereótipo (anteriormente visto no item 1.5.2) - construção social e imagética que representa de modo reducionista e com força frequentemente negativa um grupo social ou uma pessoa em particular - relaciona-se com a identidade no sentido dessa ser também uma representação imaginária, não sendo uma cópia do real.

Como bem diz Pires (1999, p. 128), ―a memória histórico-social bakhtiniana, de natureza polifônica e coletiva, desempenha um papel fundamental na construção da identidade do sujeito, pois ―buscar uma identidade é procurar elos com a história‖ e, consequentemente, essa constituição identitária subjetiva é ―um movimento em direção ao

outro, um reconhecimento de si pelo outro que tanto pode ser a sociedade como a cultura, e o elo de ligação é a linguagem‖ (ibid., p. 70).

Segundo um dos principais teóricos sobre o assunto, o norte-americano Eli Zaretsky (1994), o termo ―identidade‖, vindo da filosofia pós-estruturalista, refere-se a duas questões fundamentais: aquilo que dá a algo sua natureza essencial e sua continuidade, e o que faz duas coisas iguais. O conceito de identidade, então, envolve negação e diferença: algo é uma coisa e não outra. Mas o pós-estruturalismo complicou a questão da ―política da identidade‖ ao introduzir o termo ―política da diferença‖, a qual se preocupa mais em subverter do que conquistar, desestabilizando identidades ao privilegiar termos como ―lugares, espaços, alteridade e posições do sujeito‖, em detrimento de outros tais como ―grupos, direitos, valor e sociedade‖, escreve Zaretsky (id.). A identidade social da mulher não é unitária, mas resulta de diferenças. Identidade e diferença que, para Fairclough (1997, p. 296), são dois lados da mesma moeda que representam atualmente os maiores dilemas da vida social.

Se identidades de grupo são um fato da existência social e se as possibilidades de identidades individuais repousam sobre elas tanto em sentido positivo quanto negativo, então não faz sentido tentar acabar com os grupos ou propositadamente ignorar sua existência em nome dos direitos dos indivíduos. (SCOTT, 2005, p. 29)

O fenômeno da política da identidade foi antecipado pelo movimento negro norte- americano nos anos 50 e 60 do ultimo século. Porém, a força mais importante na redefinição da questão da identidade foi, sem dúvida, a emergência do movimento de liberação das mulheres no final dos anos 60 ao desnudar a natureza social da família, a natureza ―pública‖ do ―privado‖. ―A política de identidade pressupõe universalismo‖, diz Zaretsky (1994); mas tanto para grupos étnicos quanto para grupos compostos por gays, lésbicas e mulheres, uma identidade ―branca, masculina, ocidental, heterossexual e androcêntrica‖, ainda funciona como uma lógica de dominação – e aqui acredito que uma identidade ―jovem‖ também funcione.

[...] a sexualidade torna-se o eixo principal da identidade e do ser no mundo, fundamentando-se em termos de valores institucionais tais como procriação, casamento, família; a hegemonia da heterossexualidade, prática sexual entre outras, como atesta a multiplicidade de culturas, torna- se naturalizada. (SWAIN, 2001, p. 18)

Vieira (2005, p. 207) traz à tona a questão da globalização, a qual, modificando as ordens do discurso, também traz mudanças na constituição da identidade da mulher diante de novas práticas discursivas. As transformações das relações sociais dificultam a construção

identitária feminina na medida em que alteram a vida e a intimidade das pessoas, modificando-lhes o modo de ser.

As diferentes ordens do discurso, responsáveis pelas mudanças do sujeito, constituem a identidade feminina e, por estarem submissas a momentos históricos específicos, abrigam experiências particulares, emoções e vivências culturais que permitem a construção social da subjetividade da mulher. Cada época, a seu modo, influencia o sujeito na forma de pensar e de agir. (VIEIRA, 2005, p. 210)

A tecnologia e a mídia são potentes agentes fragmentadores da identidade da mulher no mundo contemporâneo. Em decorrência da nova ordem econômica, continua Vieira (id., p. 208-209), os sujeitos passam por profundas transformações que implicam mudanças políticas, culturais e tecnológicas, uma vez que recebem influências, principalmente do avançado sistema de comunicação. Segundo Vieira (id., p. 209), a transformação das relações sociais dificulta a definição identitária em geral e, em particular, do gênero feminino. Mesmo que as identidades estejam em contínua construção, existe um descompasso em relação a essa mudança e à evolução global. Dessas diferenças resultam dificuldades, especialmente para as mulheres, em construir uma nova identidade.

De acordo com Vieira (2005, p. 212), ―o texto é o lugar privilegiado para a negociação da identidade e da diferença‖. Novas identidades são construídas textualmente pelas práticas discursivas, associadas às identidades existentes, cujos limites entre vozes são redesenhados, com outras vozes somadas ao discurso, ao mesmo tempo.

Identificamos aqui o problema da construção da identidade através da designação de seu outro, problema que está sempre presente em Ciências Humanas e, principalmente, em sua escrita: as indicações de alteridade no texto – os outros integrados e os outros não aceitos, os outros citados no corpo principal do texto e os outros citados no rodapé, etc. – constituem também as fronteiras através das quais se tece a representação que faz o texto de sua própria identidade. (AMORIM, 2004, p. 39)

Vieira (id., p. 237) acredita que a consolidação da identidade feminina, decorrendo da construção discursiva, depende mais de influências de valorações masculinas do que femininas, e por isso devem ser mudadas as práticas discursivas masculinas a respeito da mulher, para que ela possa construir-se em outra direção.

Uma instância de interdiscursividade no discurso de gênero é a coexistência de um discurso tradicional que constitui identidades femininas na esfera privada (lar) e novos discursos de gênero que relacionam as mulheres à esfera pública (trabalho, política...). Em um estudo acerca

das propostas femininas para a Constituição brasileira de 1988, essas duas identidades são encontradas. (MAGALHÃES, 2005, p. 183-184)34

Vieira (2005, p. 213) não acredita em sujeitos completamente livres ou totalmente assujeitados, mas sim em sujeitos ativos e agentes de seus discursos que se tornam assujeitados e repetidores de discursos pré-existentes em alguns momentos, e que são, em determinados papéis, responsáveis pela constituição da identidade. Embora não existam sujeitos livres ao ponto de produzir ideias novas desvinculadas de qualquer influência ideológica, pois, ao interagir na sociedade, rendem-se às formas de pensar, comuns ao grupo social, existem sujeitos ativos que estabelecem uma negociação entre o papel de assujeitado e de livre, estabelecendo um meio-termo. Assim, cada sujeito apresentará marcas exclusivas que se incorporam a sua identidade.

Com as mudanças tecnológicas e sociais dos tempos pós-modernos, o sentido de identidade individual e social se fragmenta diariamente. Mulheres são especialmente afetadas, já que suas maneiras de ser e de se apresentar ao mundo são ameaçadas por discursos persuasivos que impõem e valorizam certos ‗estilos de vida‘ enquanto desvalorizam ou excluem outros. Seus corpos se tornam um ‗lócus‘ de comodificação nos discursos, da propaganda, do tratamento do corpo, nas práticas de emagrecimento, nas academias de ginástica e na cirurgia plástica. Na cultura de consumo, a mulher é constantemente ‗informada‘ que deve ser eternamente jovem, magra e bonita. Ao manipular (e muita vezes mutilar) seu corpo, a mulher pós-moderna se transforma e, desta forma, medeia a relação entre a sua identidade própria e uma identidade social imposta pela sociedade de consumo. (FIGUEIREDO & MORITZ, 2008, p. 59)

―A diferença sexual, em tese, depende do fato de alguém ter nascido moça ou rapaz‖ (VIEIRA, 2005, p. 220-221); mas, ―depois que alguém nasce, começa um longo processo social de construção de identidade, cujos efeitos sobre cada indivíduo são imprevisíveis‖. No caso da identidade das mulheres, são difíceis e lentas as mudanças sociais, ―pois cada alteração deve desconstruir processos históricos de séculos de preconceitos e de crenças, solidamente estratificados no seio da sociedade‖ (ibid., p. 223). Nesse caso, é pertinente dizer, com Simone de Beauvoir, que ―não se nasce uma mulher‖: mulher essa que, para Vieira (id., p. 227), ―é uma espécie de mundo em construção e mudança, cuja identidade reflete as cores da sociedade contemporânea com suas qualidades, erros, falhas e fragilidades‖.