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Análise da Crônica “Carta ao Prefeito” – Rubem Braga

5 A RESPONSABILIDADE ENUNCIATIVA NO GÊNERO CRÔNICA

5.1 Análise da Crônica “Carta ao Prefeito” – Rubem Braga

Percebemos na crônica analisada várias marcas de (não) assunção de responsabilidade enunciativa, por exemplo: conectores, modalizadores, índices de pessoas, dêiticos espaciais e temporais, marcas de asserção. Vejamos os exemplos a seguir:

EXEMPLO 01.

Crônica: Carta ao Prefeito Marcas de (não)

responsabilidade enunciativa

Acostumei-me, assim, a viver perigosamente. Não sou covarde como esses equilibristas estrangeiros que passeiam sobre fios entre os edifícios. Vejo-os lá em cima, longe, dos ônibus e lotações, atravessando a rua pelos ares e murmuro: eu quero ver é no chão.

- marcas de asserção, referidas a primeira pessoa;

- modalizadores.

No exemplo 01, a presença da primeira pessoa desinencial nos verbos ser e querer em frases assertivas, no presente do indicativo, revela a assunção da responsabilidade enunciativa pelo locutor. Assim, nas assertivas “Não sou covarde como esses equilibristas estrangeiros que passeiam sobre fios entre os edifícios” e “eu quero ver é no chão”, temos o engajamento do locutor no texto.

EXEMPLO 02.

Crônica: Carta ao Prefeito Marcas de (não)

responsabilidade enunciativa

Também não sou assustado como esse senhor deputado Tenório Cavalcanti, que mora em Caxias e vive armado; moro bem no paralelo 38, entre Ipanema e Copacabana, e às vezes, nas caladas da noite, percorro desarmado várias boites desta zona e permaneço horas dentro da penumbra entre cadeiras que esvoaçam e garrafas que se partem docemente na cabeça dos fiéis em torno. E estou vivo.

- índice de pessoas;

- marcas de asserção, quando referidas a primeira pessoa; - modalizador.

No exemplo 02, o locutor também assume a responsabilidade pelo dizer ao usar os verbos na primeira pessoa do singular do indicativo em “Também não sou assustado como esse senhor deputado Tenório Cavalcanti, que mora em Caxias e vive armado”. O mesmo acontece com os verbos “morar”, “percorrer”, “permanecer” e “estar”.

O uso do modalizador “docemente” marca o engajamento do locutor e, consequentemente, a assunção do PDV dos enunciados, uma vez que o locutor emite opinião sobre os enunciados. Assim, podemos perceber o engajamento do locutor em “... e permaneço horas dentro da penumbra entre cadeiras que esvoaçam e garrafas que se partem docemente na cabeça dos fiéis em torno. E estou vivo”.

EXEMPLO 03.

Crônica: Carta ao Prefeito Marcas de (não) responsabilidade enunciativa

Sei também que não me resta nenhum direito terreno; respiro o ar dos escapamentos abertos e me banho até no Leblon, considerado um dos mais lindos esgotos do mundo; aspiro o perfume da curva do Mourisco e a brisa da Lagoa e – sobrevivo. E compreendo que, embora vós administreis à maneira suíça, nós continuaremos a viver à maneira carioca.

- índice de pessoas; - conector;

- marcas de asserção, quando referidas a primeira pessoa;

O exemplo 03 traz a presença da primeira pessoa desinencial nos verbos saber,

respirar, banhar, aspirar, sobreviver e compreender em frases assertivas no presente do

indicativo, o que mais uma vez instaura a assunção da responsabilidade enunciativa pelo dizer por parte do locutor.

Vale destacar, nesse exemplo, o uso do conector adversativo “embora”. Os conectores adversativos, segundo Gomes (2014, p. 107), “por si só já possuem o poder de modificar a orientação argumentativa do enunciado”. Nesse sentido, o uso de “embora” assinala a “mudança do PDV, pois contrapõe a ideia do locutor” (Cf. GOMES, 2014) que, após tecer “ironicamente” elogios à administração do prefeito, muda sua orientação argumentativa através do enunciado, “... embora vós administreis à maneira suíça, nós continuaremos a viver à maneira carioca” (GOMES, 2014, p. 107). Porém, mesmo ao manifestar uma ideia de oposição, o uso do conector adversativo “embora” faz prevalecer a ideia de que todos

continuarão vivendo à maneira carioca, ou seja, enfrentando todos os problemas apontados na cidade do Rio de Janeiro.

EXEMPLO 04.

Crônica: Carta ao Prefeito

Marcas de (não) responsabilidade enunciativa

Eu é que não me queixo; já me aconteceu escapar de morrer dentro de um táxi em uma tarde de inundação e ter o consolo de, chegando em casa, encontrar a torneira perfeitamente seca.

- marcas de asserção, quando referidas a primeira pessoa;

- Modalizador.

No exemplo 04, o locutor assume a responsabilidade pelo dizer ao usar o verbo na primeira pessoa do singular do indicativo em “Eu é que não me queixo...”.

Destacamos, também, o uso do modalizador “perfeitamente”, enquanto marca do engajamento do locutor, e, consequentemente, a assunção do PDV dos enunciados, uma vez que o locutor emite sua opinião sobre o dizer. Nota-se esse engajamento quando o locutor afirma: “já me aconteceu escapar de morrer dentro de um táxi em uma tarde de inundação e ter o consolo de, chegando em casa, encontrar a torneira perfeitamente seca”. Dessa forma, o uso do modalizador marca o engajamento do locutor que enfatiza a falta d’agua, o que podemos considerar como uma crítica ao prefeito.

EXEMPLO 05.

Crônica: Carta ao Prefeito Marcas de (não) responsabilidade enunciativa

Mas não é para dizer isso que vos escrevo. É para agradecer a providência que vossa administração tomou nestas últimas quatro noites, instalando uma esplêndida lua cheia em Copacabana.

- Conector;

- marcas de asserção referidas a primeira pessoa.

Novamente, o locutor usa um conector adversativo. O uso de “mas” assinala, nos dizeres de Gomes (2014, p. 107), “a mudança do PDV, por contrapor a ideia do locutor”, que, novamente, após tecer de forma irônica elogios à administração do prefeito, afirma que não o

escreveu para esse propósito, mas para agradecê-lo também de forma irônica, por todos os problemas que, possivelmente, teriam sido resolvidos, ao mencionar, de forma metafórica, que o prefeito havia instalado uma esplêndida lua em Copacabana.

Pelo exposto, percebemos que o locutor usa, quase sempre, a primeira pessoa do singular, assumindo, portanto, a responsabilidade enunciativa pelo dizer, em um texto narrativo que corrobora, de maneira argumentativa, para tecer uma forte crítica ao sistema político.