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Esta investigação teve como objetivo estudar o fenômeno da responsabilidade enunciativa no gênero discursivo crônica. A partir da análise dos dados, apresentamos os resultados de nossa pesquisa. Para tanto, retomamos as questões orientadoras da investigação, conforme transcrevemos a seguir:

• Que vozes estão presentes no gênero discursivo crônica e quais seus efeitos de sentido?

• Que marcas linguísticas nos levam a identificar essas vozes?

• Como o estudo do gênero discursivo crônica atrelado ao estudo do fenômeno da responsabilidade enunciativa impactam na formação sócio-cultural-textual-discursiva dos discentes?

Os resultados da pesquisa nos permitiram concluir que:

a) O gênero discursivo crônica apresenta uma heterogeneidade de PDV, marcados no nível linguístico por diferentes tipos de representação da fala, modalizadores, elementos gráficos e ortográficos, verbos de atribuição da fala, índices de pessoas, conectores, marcas de asserção e marcadores do discurso reportado, entre outros;

b) As marcas linguísticas que desempenham um papel particularmente relevante na sinalização da orientação argumentativa do enunciador são as marcas de asserção, como também aquelas usadas para marcar o discurso de outra fonte enunciativa, que podem ser notadas através de marcadores de discurso reportado, elementos gráficos e ortográficos, verbos de atribuição de fala, diferentes tipos de representação da fala (discurso direto, indireto) e índices de pessoas. Assim, destacamos como PDV frequentes encontrados na primeira crônica analisada, o PDV do locutor, que pode ser percebido nas marcas de asserção, referidas a primeira pessoa, índice de pessoas, bem como, através do uso de modalizadores. Já na segunda crônica, percebemos não só o PDV do locutor, mas também, outras fontes enunciativas que podem ser notadas através de marcadores de discurso reportado e elementos gráficos e ortográficos. Nas terceira e quarta crônicas, temos também, além do PDV do locutor, outras fontes enunciativas por meio do uso de verbos de atribuição de fala, diferentes tipos de representação da fala (discurso direto, indireto), marcas de asserção, referidas a terceira pessoa e índices de pessoas.

c) Como contribuições, destacamos que o estudo do gênero discursivo crônica atrelado ao estudo do fenômeno da responsabilidade enunciativa impacta diretamente na formação sócio-cultural-textual-discursiva dos discentes uma vez que: 1) do ponto de vista socio-

cultural, o aluno poderá se tornar mais consciente de seu papel na sociedade, ao perceber que vozes falam em um texto e quais os efeitos de sentido provocados por isso; 2) do ponto de vista textual-discursivo, o aluno poderá se tornar um leitor e um produtor de texto mais eficiente, mais autônomo e mais crítico, consciente dos efeitos que as marcas linguísticas podem promover na construção de sentido do gênero em foco.

Os resultados decorrentes de nosso estudo revelam como o locutor, a partir de várias instâncias enunciativas, constrói a argumentação no gênero crônica, o que nos permite compreender como se configura a (não) assunção da responsabilidade enunciativa nesse gênero discursivo.

Pelo exposto, corroboramos com o que diz Gomes (2014, p. 147) ao afirmar que a (não) assunção da responsabilidade enunciativa configura-se como “mecanismo argumentativo fortemente marcado pelo produtor do texto com vistas a seus propósitos comunicativos” e que “o texto se constrói nesse jogo de assunção e/ou não assunção dos enunciados de acordo com a orientação argumentativa e com os objetivos do produtor do texto” (GOMES, 2014, p. 147).

Nesse sentido, entendemos que esta dissertação cumpriu os objetivos a que se propôs: identificar, descrever, analisar e interpretar que vozes estão presentes no gênero discursivo crônica e quais seus efeitos de sentido, bem como que marcas textuais nos levam a identificar essas vozes. Acrescente-se a isso, a elaboração da sequência didática para o estudo da responsabilidade enunciativa no gênero em questão.

Sobre a contribuição do Programa de Mestrado Profissional em Letras PROFLETRAS, podemos destacar que é dada uma grande oportunidade aos professores da rede pública, do ensino fundamental no ensino de língua portuguesa, ao fornecer ferramentas teórico-metodológicas para uma inovação na sala de aula e, consequentemente, preparando-os para os novos desafios educacionais do Brasil contemporâneo.

Por conseguinte, como contribuição para o ensino de língua portuguesa, entendemos que ao aluno, será possibilitado um olhar diferente sobre a língua materna e os elementos gramaticais que a compõe.

Do contato com o gênero crônica, o aluno poderá discutir sobre diferentes temas, já que o gênero tem por base fatos do nosso cotidiano. Ao proporcionar momentos de discussão, o discente vai ter a oportunidade de apresentar seu ponto de vista, desenvolvendo, assim, suas habilidades linguístico-cognitivas, tornando-se mais crítico e sabendo posicionar-se diante dos questionamentos, bem como, estando mais preparado para produzir textos significativos.

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ANEXO A - CRÔNICA 1: Carta ao Prefeito - Rubem Braga

CRÔNICA 1:

Carta ao Prefeito

Rubem Braga Senhor Prefeito do Distrito Federal:

Eu sou um desses estranhos animais que têm por habitat o Rio de Janeiro; ouvi-me, pois, com o devido respeito.

Sou um monstro de resistência e um técnico em sobrevivência – pois o carioca é, antes de tudo, um forte. Se às vezes saio do Rio por algum tempo para descansar de seus perigos e desconfortos (certa vez inventei até ser correspondente de guerra, para ter um pouco de paz) a verdade é que sempre volto. Acostumei-me, assim, a viver perigosamente. Não sou covarde como esses equilibristas estrangeiros que passeiam sobre fios entre os edifícios. Vejo-os lá em cima, longe, dos ônibus e lotações, atravessando a rua pelos ares e murmuro: eu quero ver é no chão.

Também não sou assustado como esse senhor deputado Tenório Cavalcanti, que mora em Caxias e vive armado; moro bem no paralelo 38, entre Ipanema e Copacabana, e às vezes, nas caladas da noite, percorro desarmado várias boites desta zona e permaneço horas dentro da penumbra entre cadeiras que esvoaçam e garrafas que se partem docemente na cabeça dos fiéis em torno. E estou vivo.

Ainda hoje tenho coragem bastante para tomar um ônibus ou mesmo um lotação e ir dentro dele até o centro da cidade. Vivo assim, dia a dia, noite a noite, isto que os historiadores do futuro, estupefatos, chamarão a Batalha do Rio de Janeiro. Já fiz mesmo várias viagens na Central. Eu sou um bravo, senhor.

Sei também que não me resta nenhum direito terreno; respiro o ar dos escapamentos abertos e me banho até no Leblon, considerado um dos mais lindos esgotos do mundo; aspiro o perfume da curva do Mourisco e a brisa da Lagoa e – sobrevivo. E compreendo que, embora vós administreis à maneira suíça, nós continuaremos a viver à maneira carioca.

Eu é que não me queixo; já me aconteceu escapar de morrer dentro de um táxi em uma tarde de inundação e ter o consolo de, chegando em casa, encontrar a torneira perfeitamente seca.

Prometestes, senhor, acabar em 30 dias com as inundações no Rio de Janeiro; todo o povo é testemunha desta promessa e de seu cumprimento: é que atacaste, senhor, o mal pela raiz, que são as chuvas. Parou de chover, medida excelente e digna de encômios.

Mas não é para dizer isso que vos escrevo. É para agradecer a providência que vossa administração tomou nestas últimas quatro noites, instalando uma esplêndida lua cheia em Copacabana. Não sei se a fizestes adquirir na Suíça para nosso uso permanente, ou se é nacional. Talvez só possamos obter uma lua cheia definitiva reformando a Constituição e libertando Vargas.

Mas a verdade é que o luar sobre as ondas me consolou o peito. E eu andava muito precisado. Obrigado, Senhor.

ANEXO B - CRÔNICA 2: O telefone - Rubem Braga

CRÔNICA 2:

O telefone

Rubem Braga

Honrado Senhor Diretor da Companhia Telefônica:

Quem vos escreve é um desses desagradáveis sujeitos chamados assinantes; e do tipo mais baixo: dos que atingiram essa qualidade depois de uma longa espera na fila.

Não venho, senhor, reclamar nenhum direito. Li o vosso Regulamento e sei que não tenho direito a coisa alguma, a não ser a pagar a conta. Esse Regulamento, impresso na página 1 de vossa interessante Lista (que é meu livro de cabeceira), é mesmo uma leitura que recomendo a todas as almas cristãs que tenham, entretanto, alguma propensão para o orgulho ou soberba. Ele nos ensina a ser humildes; ele nos mostra quanto nós, assinantes, somos desprezíveis e fracos.

Aconteceu por exemplo, senhor, que outro dia um velho amigo deu-me a honra e o extraordinário prazer de me fazer uma visita. Tomamos uma modesta cerveja e falamos coisas antigas – mulheres que brilharam outrora, madrugadas dantanho, flores doutras primaveras. Ia a conversa quente e cordial ainda que algo melancólica, tal soem ser as parolas vadias de cupinchas velhos – quando o telefone tocou. Atendi. Era alguém que queria falar ao meu amigo. Um assinante mais leviano teria chamado o amigo para falar. Sou, entretanto, um severo respeitador do Regulamento; em vista do que, comuniquei ao meu amigo que alguém queria lhe falar, o que infelizmente eu não podia permitir; estava, entretanto, disposto a tomar e transmitir qualquer recado. Irritou-se o amigo, mas fiquei inflexível, mostrando-lhe o artigo 2 do Regulamento, segundo o qual o aparelho instalado em minha casa só pode ser usado “pelo assinante, pessoas de sua família, seus representantes ou empregados”.

Devo dizer que perdi o amigo, mas salvei o Respeito ao Regulamento; “dura lex sed lex”; eu sou assim. Sei também (artigo 4) que se minha casa pegar fogo terei de vos pagar o valor do aparelho – mesmo se esse incêndio (artigo 9) for motivado por algum circuito

organizado pelo empregado da Companhia com o material da Companhia. Sei finalmente (artigo 11) que se, exausto de telefonar do botequim da esquina a essa distinta Companhia. dizer que meu aparelho não funciona, eu vos chamar e vos disser, com lealdade e com as únicas expressões adequadas, o meu pensamento, ficarei eternamente sem telefone, pois “o uso de linguagem obscena constituirá motivo suficiente para a Companhia desligar e retirar o aparelho”.

Enfim, senhor, eu sei tudo; que não tenho direito a nada, que não valho nada, não sou nada. Há dois dias meu telefone não fala, nem ouve, nem toca, nem tuge, nem muge. Isso me trouxe, é certo, um certo sossego ao lar. Porém amo, senhor, a voz humana; sou uma dessas criaturas tristes e sonhadoras que passa a vida esperando que de repente a Rita Hayworth me telefone para dizer que o Ali Khan morreu e ela está ansiosa para gastar com o velho Braga o dinheiro de sua herança, pois me acha muito simpático e insinuante, e confessa que em Paris muitas vezes se escondeu em uma loja defronte do meu hotel só para me ver sair.

Confesso que não acho tal coisa provável: o Ali Khan ainda é moço, e Rita não tem o meu número. Mas é sempre doloroso pensar que se tal coisa acontecesse eu jamais saberia – porque meu aparelho não funciona. Pensai nisso, senhor: pensai em todo potencial tremendo de perspectivas azuis que morre diante de um telefone que dá sempre sinal de ocupado –

cuém, cuém, cuém – quando na verdade está quedo e mudo na minha modesta sala de jantar.

Falar nisso, vou comer; são horas. Vou comer contemplando tristemente o aparelho silencioso, essa esfinge de matéria plástica; é na verdade algo que supera o rádio e a televisão, pois transmite não sons nem imagens, mas sonhos errantes no ar.

Mas batem à porta. Levanto o escuro garfo do magro bife e abro. Céus, é um empregado da Companhia! Estremeço de emoção. Mas ele me estende um papel: é apenas um cobrador. Volto ao bife, curvo a cabeça, mastigo devagar, como se estivesse mastigando meus pensamentos, a longa tristeza de minha humilde vida, as decepções e remorsos. O telefone continuará mudo; não importa: ao menos é certo, senhor, que não vos esquecestes de mim.

ANEXO C - CRÔNICA 3: Glória - Carlos Drummond de Andrade

CRÔNICA 3:

Glória

Carlos Drummond de Andrade

Meu filho é artista de televisão, contando o senhor não acredita. Eu mesmo às vezes penso que é ilusão. Com oitos anos, imagine. Estava brincando na pracinha lá da vila quando passaram uns homens e olharam muito pra ele. Meu filho, não é pra me gabar, mas é uma lindeza de Menino – Jesus, aí um dos homens falou assim pra ele: Quer fazer um teste, ó garoto? O que é teste? ele respondeu. Aí o homem explicou, não sei bem qual é a explicação, levaram ele pra um edifício na cidade, tiraram um bocado de retratos dele, depois falaram assim: Você foi aprovado. Aí ele se espantou: Mas eu não fiz exame, que troço é esse? Não é nada de exame não, eles responderam, você foi aprovado pra fazer um comercial, tá bem? Ele neca de saber o que é um comercial, nem eu, mas agora eu fiquei sabendo, é uma coisa à-toa, a pessoa nem precisa falar, fica só fazendo uma coisa, comendo doce de leite, devagarinho, com uma carinha alegre, quando acaba passa a língua nos beiços, assim, olha, e pisca o olho, ele é tão engraçado, antes de acabar de comer ele já estava fazendo isso, um negócio. Aí mandaram ele de volta pra casa, não, antes falaram assim pra ele: manda seu pai aqui na agência receber o cachet. Ele ficou espantado, falou assim: Que troço é esse? Eles responderam: tutu. Aí ele baixou a cabeça e respondeu baixinho: Eu não tenho pai. E mãe você tem? Ele respondeu que mãe ele tinha, e levantou a cabeça. Então manda ela aqui, mas o garoto é esperto, deu uma de sabido: Eu mesmo não posso receber? se fui eu que fiz tudo sozinho. Não, você não pode,tem que ser sua mãe, diz a ela que venha das 2 às 4, trazendo carteira de identidade. Bonito, e eu que nunca tive carteira, já pelejei pra tirar uma, dei duro, pedi pro compadre Julião me quebrar esse galho, compadre explicou que carece antes tirar certidão de nascimento, essa é muito boa, então a gente tem que provar que nasceu, eu não estou viva com a graça de Deus e forte e trabalhando? O pior é que nem sei se fui registrada lá em Pilão dos Palmares, chão do meu nascimento, não tenho parentes neste mundo, só tenho no outro, e nem a poder de oração consegui até hoje tirar o papel da tal certidão, afinal eu falei assim pro compadre: Deixa pra lá, sem carteira vivi até hoje, sem ela vou viver até Nosso Senhor me fechar os olhos. Vou lá na agência assim mesmo. Larguei meu serviço. Fui. Tinha

um mundão de gente, eu não sabia quem é que podia me atender, andei rolando de uma sala pra outra, até que afinal um cara de bigodão, atrás da parede de vidro com um óculo no meio, falou assim: É comigo, trouxe a carteira? Eu expliquei que carteira eu não tinha, mas sou lavadeira muito acreditada na Zona Norte, muitas madamas da Rua Conde de Bonfim podem atestar que eu sou eu mesma e mãe de meu filho, há 25 anos que trabalho de lavar roupa. Ele