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Análise da Crônica “Glória” – Carlos Drummond de Andrade

5 A RESPONSABILIDADE ENUNCIATIVA NO GÊNERO CRÔNICA

5.3 Análise da Crônica “Glória” – Carlos Drummond de Andrade

Percebemos na crônica analisada várias marcas de (não) assunção da responsabilidade enunciativa, por exemplo: diferentes tipos de representação da fala (discurso direto, indireto); marcas de asserção, quando referidas a terceira pessoa; índices de pessoas; dêiticos espaciais e temporais; verbos de atribuição da fala; conectores.

EXEMPLO 08.

Crônica: Glória Marcas de (não) assunção da

responsabilidade enunciativa

Meu filho é artista de televisão, contando o senhor não acredita. Eu mesmo às vezes penso que é ilusão. Com oitos anos, imagine. Estava brincando na pracinha lá da vila quando passaram uns homens e olharam muito pra ele. Meu filho, não é pra me gabar, mas é uma lindeza de Menino – Jesus, aí um dos homens falou assim pra ele: Quer fazer um teste, ó garoto? O que é teste? ele respondeu. Aí o homem explicou, não sei bem qual é a explicação, levaram ele pra um edifício na cidade, tiraram um bocado de retratos dele, depois falaram assim: Você foi aprovado. Aí ele se espantou: Mas eu não fiz exame, que troço é esse?

- verbos de atribuição da fala;

- diferentes tipos de representação da fala (discurso direto, indireto);

- marcas de asserção, quando referidas a primeira pessoa;

- conectores.

No exemplo 8, as marcas de asserção referidas a primeira pessoa em “Meu filho é artista de televisão, contando o senhor não acredita. Eu mesmo às vezes penso que é ilusão.” apontam que o locutor assume a responsabilidade pelo dizer, ao falar do seu filho.

Os verbos de atribuição de fala, representados por falar e responder, configuram, nos dizeres de Gomes (2014, p. 115) “um PDV mediatizado ou grau zero de responsabilidade enunciativa, ou seja, o locutor não assume a responsabilidade pelo dizer e atribui o PDV a

outra fonte, bem como alguns tipos de representação da fala (discurso direto)” em Quer fazer um teste, ó garoto? O que é teste? ele respondeu., que também são marcas linguísticas que configuram um PDV mediatizado ou grau zero de responsabilidade enunciativa. Podemos perceber que o locutor usa o discurso de outrem para fundamentar a ideia de que seu filho é bonito e talentoso. Com isso, ele preserva sua face e retira a parcialidade que o texto traria, caso fosse a própria mãe falando da criança.

Merece que destaquemos o uso do adversativo “mas” na proposição Meu filho, não é pra me gabar, mas é uma lindeza de Menino – Jesus. Os conectores argumentativos, via de regra, marcam uma oposição, logo, uma mudança de PDV e uma mudança na orientação argumentativa. Nesse caso, mais do que isso, o locutor busca preservar sua face novamente e usa a adversidade como recurso para isso, posto que se a criança não fosse tão linda, a mãe estaria, assim, apenas se gabando.

EXEMPLO 09.

Crônica: Glória Marcas de (não) assunção da

responsabilidade enunciativa

Aí mandaram ele de volta pra casa, não, antes falaram assim pra ele: manda seu pai aqui na agência receber o cachet. Ele ficou espantado, falou assim: Que troço é esse? Eles responderam: tutu. Aí ele baixou a cabeça e respondeu baixinho: Eu não tenho pai. E mãe você tem? Ele respondeu que mãe ele tinha, e levantou a cabeça. Então manda ela aqui, mas o garoto é esperto, deu uma de sabido: Eu mesmo não posso receber? se fui eu que fiz tudo sozinho. Não, você não pode, tem que ser sua mãe, diz a ela que venha das 2 às 4, trazendo carteira de identidade.

- verbos de atribuição da fala;

- marcas de asserção, referidas a terceira pessoa;

- conectores.

O uso dos verbos de atribuição de fala responder e falar cujo emprego configura, nos dizeres de Gomes (2014, p. 115), “um PDV mediatizado ou grau zero da responsabilidade enunciativa”, mais uma vez é encontrado. Assim, o locutor atribui o PDV a outra fonte que não é ele em “Ele ficou espantado, falou assim: Que troço é esse? Eles responderam: tutu.”

EXEMPLO 10.

Crônica: Glória Marcas de (não) assunção da

responsabilidade enunciativa Vou lá na agência assim mesmo. Larguei meu

serviço. Fui. Tinha um mundão de gente, eu não sabia quem é que podia me atender, andei rolando de uma sala pra outra, até que afinal um cara de bigodão, atrás da parede de vidro com um óculo no meio, falou assim: É comigo, trouxe a carteira? Eu expliquei que carteira eu não tinha, mas sou lavadeira muito acreditada na Zona Norte, muitas madamas da Rua Conde de Bonfim podem atestar que eu sou eu mesma e mãe de meu filho, há 25 anos que trabalho de lavar roupa. Ele abanou a cabeça, falou assim: Nada feito, não tenho ordem de pagar sem identidade. Mas o meu filho trabalhou, moço, eles ficaram satisfeitos com o trabalho dele, tanto que prometeram pagar um tal de cachet...

- conector;

- índices de pessoas;

- verbos de atribuição da fala;

- diferentes tipos de representação da fala (discurso direto);

- marcas de asserção, quando referidas a terceira pessoa.

O exemplo 10 também traz o conector adversativo “mas” contrapondo ideias e assinalando uma mudança de PDV, (o fato de a senhora não possuir a carteira de identidade x ser lavadeira acreditada na Zona Norte). Nesse sentido, percebemos que com a oposição das ideias em “Eu expliquei que carteira eu não tinha, mas sou lavadeira muito acreditada na Zona Norte, muitas madamas da Rua Conde de Bonfim podem atestar que eu sou eu mesma e mãe de meu filho, há 25 anos que trabalho de lavar roupa”, a lavadeira assume a responsabilidade pelo dizer, e reforça seu PDV ao utilizar-se dos argumentos “Muito acreditada na zona norte” e “Muitas madamas podem atestar”. Ainda sobre o uso do conector adversativo “mas”, em “Ele abanou a cabeça, falou assim: Nada feito, não tenho ordem de pagar sem identidade. Mas o meu filho trabalhou, moço, eles ficaram satisfeitos com o trabalho dele, tanto que prometeram pagar um tal de cachet...”, percebemos que na oposição das ideias (não ter ordem de pagar sem identidade x meu filho trabalhou), a lavadeira também assume a responsabilidade pelo dizer e reforça seu PDV ao enunciar “eles ficaram satisfeitos com o trabalho dele, tanto que prometeram pagar um tal de cachet...” Percebemos ainda nesse exemplo que, a partir da presença de verbos de atribuição da fala em “Ele abanou a cabeça, falou assim...”, o locutor imputa a responsabilidade a outra fonte enunciativa ao afirmar “Não tenho ordem de pagar sem identidade”.

A presença de verbos de atribuição da fala, o uso do conector “mas” e diferentes tipos de representação da fala (discurso direto) em “Ele abanou a cabeça, falou assim: Nada feito, não tenho ordem de pagar sem identidade. Mas o meu filho trabalhou, moço...” configuram um PDV mediatizado ou grau zero da responsabilidade enunciativa. A lavadeira, ao fazer uso do conector “mas”, embora indique oposição, assume a responsabilidade pelo dizer e reforça que o filho precisa receber o cachet porque trabalhou.

EXEMPLO 11.

Crônica: Glória

Marcas de (não)

responsabilidade enunciativa.

Aí, eu não tinha mais vontade de chorar e disse pra ele: Escuta aqui, moço, quanto é que meu filho tem pra receber? Ele respondeu: 50 cruzeiros. Ah, é isso? Respondi. Pode ficar pra agência. Perdi meu dia de trabalho, gastei trem, gastei ônibus, andei a pé neste solão, não vou me chatear por causa dessa micharia. Um cara que estava escutando falou assim: A senhora vai jogar fora esse 50 mangos? E daí? respondi pra ele. Meu filho vale muito mais, a gente não fica mais pobre por causa disso, ele agora é artista, amanhã se Deus e a Virgem Maria ajudar, vai ganhar milhões. Nem precisa ganhar, só o orgulho que eu sinto por ele ter passado no teste! Saí de lá com esse orgulho bonito no coração, meu filho é artista, meu filho é artista, ia repetindo sozinha, na rua me olhavam admirados, mas eu nem dei bola, fui pra casa e ligo a televisão o dia inteiro, trabalho vendo ela, até chegar a hora de meu filho aparecer no comercial comendo doce de coco.

- verbos de atribuição da fala; - diferentes tipos de representação da fala (discurso direto);

- marcas de asserção, quando referidas a primeira pessoa.

No exemplo 11, o locutor também assume a responsabilidade pelo dizer ao usar os verbos na primeira pessoa do singular do indicativo em “Meu filho vale muito mais, a gente não fica mais pobre por causa disso, ele agora é artista, amanhã se Deus e a Virgem Maria ajudar, vai ganhar milhões.” O mesmo acontece em “Meu filho é artista, meu filho é artista, ia repetindo sozinha, na rua me olhavam admirados, mas eu nem dei bola.” No referido exemplo, também observamos a oposição do conector “mas” (... meu filho é artista,

meu filho é artista, ia repetindo sozinha, na rua me olhavam admirados, mas eu nem dei bola, fui pra casa ligo a televisão o dia inteiro...), cujo PDV que prevalece é o da mãe a respeito do

atribuição de fala em “Aí, eu não tinha mais vontade de chorar e disse pra ele: Escuta aqui, moço, quanto é que meu filho tem pra receber?” e “Ele respondeu: 50 cruzeiros. Um cara que estava escutando falou assim: A senhora vai jogar fora esse 50 mangos?”, observamos que o emprego dos verbos “respondeu” e “falou”, configura também um PDV mediatizado ou grau zero de responsabilidade enunciativa, onde o locutor atribui o PDV a uma outra fonte.