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4 ANÁLISE JURISPRUDENCIAL DO CONFLITO ENTRE PARTICULARES (APLICAÇÃO DA PROPORCIONALIDADE AO CASO CONCRETO)

Anteriormente, tentou-se demonstrar os fundamentos do raciocínio do presente artigo, o qual conecta os direitos fundamentais, ao direito privado, e, posteriormente, ao princípio da proporcionalidade. No entanto, objetivando uma elucidação integral do tema, seria adequado vislumbrá-lo dentro de uma relação jurídica, motivando uma exemplificação jurisprudencial da aplicação dessa tríade, juntamente com a finalização da explanação e suas possíveis considerações.

Diante do exposto, passa-se a estudar o principal julgado deste estudo, oriundo do Tribunal Constitucional Alemão (TCA), conhecido mundialmente por suas decisões emblemáticas dentro do direito constitucional e por sua busca pela efetividade dos direitos fundamentais. A situação fática é apresentada, segundo a coletânea de Jürgen Schwabe21:

Trata-se de duas Reclamações Constitucionais contra decisões judiciais que indeferiram as respectivas ações de retomada do imóvel para uso próprio, mais precisamente, na terminologia no direito locatício alemão, por necessidade própria (Eigenbedarf). Os reclamantes alegavam violação de seus direitos fundamentais de propriedade (Art. 14 I 1 GG).

O TCF julgou a primeira Reclamação Constitucional improcedente: a reclamante pretendia tão somente ampliar para 250m² sua habitação.

Na ponderação entre o uso privado do seu imóvel locado e seu vínculo ou função social, o TCF decidiu que esse interesse específico não tem o condão de sobrepujar a concretização do vínculo social, consubstanciado na garantia de moradia do locatário. A segunda Reclamação Constitucional foi julgada procedente o locador pretendia mudar-se, em razão de sua elevada idade, para um andar térreo.

Conforme relatado, a questão trata de duas ações em que os autores desejavam retomar a posse de suas propriedades que se encontravam locadas.

Antes de aprofundar o caso, analisando a proporcionalidade no conflito de direitos fundamentais, abordar-se-á, sucintamente, o direito de propriedade e a função social da mesma, tornando mais densa a discussão.

Independente das inúmeras definições de propriedade, reconhece-se ela como um direito, pois diferentemente da posse que se afirma no mundo fático de forma

21 A coletânea contém a íntegra das razões aludidas pelos julgadores. Embora alguns trechos ainda serão comentados, cabe a referência, SCHWABE, Jürgen. Cinquenta anos de jurisprudência do tribunal constitucional federal alemão. Uruguai: Konrad-Adenauer-Stiftung, 2005. p. 760 – 761.

concreta, o mesmo não se aplica à propriedade. Sua importância é reconhecida constitucionalmente nos incisos do artigo 5º, do texto magno22, fazendo dela direito fundamental, o qual recebe a guarida do Estado, bem como a determinação de obedecer além do critério individual, o de uma função social, inerente a sua existência.

Tendo em pauta esta dualidade entre interesses individuais (por vezes escusos) e função social, torna-se difícil para o legislador acompanhar a flexibilização (ou modificações) da leitura privada constitucionalmente orientada. Destarte a recair sobre o julgador (conforme o caso alemão), a responsabilidade por harmonizar os conflitos jurídicos23, seguindo um ideal equitativo (equilibrado) dos direitos fundamentais, torna-se forçosa uma decisão constitucionalmente justa dentro do direito privado.

Ademais os direitos fundamentais não concorrem, uns com os outros; eles cooperam e, nessa rivalização de interesses, não existe superioridade. A proteção da propriedade é necessária dentro de um Estado que se diz democrático, porém nenhum direito é absoluto, e, por isso, a função social funciona como um limitador.

Reconhece-se facilmente o teor da imposição de um limitador ao direito de propriedade (além das questões jurídicas). Primeiramente se poderia citar o aspecto social, já que, em um país que necessita de um reforma agrária, tal ferramenta legal torna-se um trunfo contra o capitalismo acumulativo dos latifundiários (improdutivos).

O aspecto seguinte é ainda mais relevante: a partir de uma ótica global de defesa do meio ambiente, a função social pode servir para contrapor interesses meramente econômicos, tendo em vista a possibilidade de resguardar a qualidade de vida da população e de manter um projeto de desenvolvimento sustentável para o Brasil24.

Assim, verifica-se uma série de razões pelas quais o legislador constituinte preocupou-se com a matéria, dando a ela um enfoque social, vislumbrado, em todo

22 Art. 5º, inciso XXII – é garantido o direito a propriedade; inciso XXIII – a propriedade atenderá a sua função social.

23 VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito civil: direitos reais. 6 ed. Vol. 5. São Paulo: Atlas, 2006. p. 157.

“A justa aplicação do direito de propriedade depende do encontro do ponto de equilíbrio entre o interesse coletivo e o interesse individual. Isso nem sempre é alcançado pelas leis, normas abstratas e frias, ora envelhecidas pelo ranço de antigas concepções, ora falsamente sociais e progressistas, decorrentes de oportunismos e interesses corporativos. Cabe à jurisprudência responder aos anseios da sociedade em cada momento histórico”.

24 MORAES, José Diniz de. A função social da propriedade, e a Constituição Federal de 1988. São Paulo: Malheiros, 1999. p. 149. “Além disso, a função econômica e a função social são dois conceitos que não se confundem, embora possam interpenetrar-se. Isto porque o interesse econômico que acompanha a noção de função social só vai até o nível imediatamente inferior a outros interesses superiores, podendo ser muitas vezes – e não são poucas – até preterido. A exemplo do interesse ecológico: uma propriedade que tenha esse potencial, em regra, só não será preservada se o interesse econômico que igualmente é idôneo a satisfazer for de dimensão excepcional, pois do contrário, não havendo compatibilidade entre o interesse econômico e o interesse ecológico, aquele inevitavelmente sucumbir; visto que o interesse social vai valorado com a supremacia do interesse ecológico. E sua proteção pode ser obtida, inclusive, com recurso direto ao Judiaciário, independentemente da existência de uma norma que diga que a referida área é como tal considerada. E, ademais, a Constituição aponta como fim da ordem econômica assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, de modo que num eventual conflito entre os ditames da justiça social e a atividade econômica, esta, indubitavelmente, terá, em regra, de ceder o passo àqueles, já que a fundamenta.

o decorrer da Constituição, essa preocupação de também direcionar os rumos da nação. E, nesse caso de discussão entre interesses privados, verifica-se o acerto do legislador, tendo em vista que perduram na atualidade as disputas envolvendo proprietários e possuidores (ou até usurpadores, por exemplo).

Exposta a importância do conflito envolvendo o direito de propriedade e a sua função social (ideias indissociáveis, dentro da realidade jurídico-brasileira), percebe-se a motivação do pleito em nome da proporcionalidade, para auxiliar o juiz em um conflito entre indivíduos detentores dos mesmos direitos fundamentais. Cabe encaminhar a finalização do raciocínio, demonstrando a dificuldade que sustenta a aplicação desse princípio. Essa dificuldade inicialmente apresentou-se no caso alemão, e será somada a ele a devida elucidação (e algumas outras decisões no sentido de corroborar o entendimento ora defendido).

Retomando o julgado do TCA, percebe-se a igualdade das lides propostas, quanto aos anseios das partes querelantes em reaverem suas propriedades. No entanto, os julgadores entenderam as peculiaridades de cada caso.

No primeiro deles, o interesse em reaver o imóvel era de cunho estritamente superficial, pois se tratava apenas do desejo em estender um imóvel. Se o locatário não desejasse lá permanecer, não haveria qualquer problema, mas a questão é que, diante do seu desejo de permanecer locando aquele imóvel (nos termos contratados), seria completamente desproporcional a restituição do mesmo ao seu dono, com fundamento nessas causas, afrontando também a função social atendida naquele momento pela propriedade. Daí o resultado ter sido negativo para a querelante.

Em contrapartida, o caso concomitante foi atendido, já que o proprietário tinha motivos razoáveis para pleitear a retomada do imóvel, alegando estar em idade avançada e ter recomendações médicas para habitar um andar térreo. Com isso torna-se aceitável a motivação, considerando-se também que não se estaria a ofender os direitos do locador.

Devido aos detalhes envolvendo cada caso, foi necessário aplicar a proporcionalidade, sob pena de, decidindo as duas lides com base puramente na legislação, executar uma decisão manifestamente injusta e consequentemente inconstitucional. Apesar de, no âmbito nacional, ainda não estar difundida essa ideia em todos os tribunais, já é possível encontrar decisões inclinadas nesse sentido25.

25 RIO GRANDE DO SUL. Tribunal de Justiça. Propriedade e proporcionalidade. Recurso Cível Nº 71000567479, Primeira Turma Recursal Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relatora: Marta Lúcia Ramos, Porto Alegre, Julgado em 23 de setembro de 2009. Ementa. Disponível em: <http:// www1.

tjrs.jus.br>. Acesso em 16 de abril 2010. “Ementa: direitos fundamentais: direito ã propriedade e à ampla defesa versus direito ao sossego, à vida e à dignidade, em última análise. relações de vizinhança. condomínio edilício. mau uso da propriedade. manutenção de animal canino na unidade autônoma. barulhos feitos pelo cão e pelo condômino durante o período de repouso noturno. questionamento da multa pela falta de notificação prévia e pelo valor superior ao previsto nas normas condominiais. reincidência do condômino na mesma infração. comprovada a nocividade desses atos em relação aos demais condôminos. teoria da ponderação dos bens.

dentre os valores jurídicos postos em consideração, a vida e a dignidade humana é que devem ser resguardadas. sentença modificada. multa reduzida. recurso parcialmente provido”.

A dificuldade em encontrar decisões manifestas, envolvendo entes privados e a harmonização entre os direitos fundamentais, é no mínimo fonte de instigação para a defesa do raciocínio estabelecido, uma vez que os resultados obtidos com a aplicação do princípio mostraram-se benéficos, objetivando não somente a constitucionalização do direito privado, mas também a eterna busca da decisão mais adequada.

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