• Nenhum resultado encontrado

3 AS POLÍTICAS PÚBLICAS EDUCACIONAIS E A GESTÃO DEMOCRÁTICA DA EDUCAÇÃO: TENSÕES E PERSPECTIVAS A PARTIR DA PARTICIPAÇÃO SOCIAL

A Constituição brasileira, ao incluir a educação como direito fundamental, demonstra a preocupação com a implantação de uma ordem social mais equânime, de modo a aproximar mais da realidade a afirmação de que todos são iguais perante a lei. As transformações ocorridas no universo jurídico do século XX, segundo Bucci, podem ser observadas com as modificações das Constituições que ultrapassaram os limites de estruturação do poder e das liberdades públicas, passando a tratar dos direitos fundamentais em sentido amplo e, mais especificamente, dispondo sobre os direitos sociais24.

Segundo a autora, os direitos sociais “representam uma mudança de paradigma no fenômeno do direito, a modificar a figura abstencionista do Estado para o enfoque prestacional”25. Em outras palavras, os direitos fundamentais sociais exigem que o Estado atue no sentido de promover os direitos sociais, assegurando a sua concretização.

A educação encontra-se assegurada como direito fundamental social no texto constitucional pátrio, juntamente com o direito ao trabalho, à saúde, ao lazer, à previdência social, entre outros26. Nesse sentido, Bucci destaca que os direitos sociais, também chamados de segunda geração, foram “formulados para garantir, em sua plenitude, o gozo dos direitos de primeira geração”27.

Especificamente em relação ao direito social à educação, pode-se dizer que a mesma é determinante para a efetivação dos demais direitos assegurados ao homem.

Para Schulte, a educação engloba “o desenvolvimento cultural da personalidade, a formação profissionalizante, bem como direitos de acesso a pessoas socialmente menos favorecidas a possibilidades de desenvolvimento social e cultural”28. Desse

24 BUCCI, Maria Paula Dallari. O conceito de política pública em direito. In: BUCCI, Maria Paula Dallari (org.). Políticas públicas: reflexões sobre o conceito jurídico. São Paulo: Saraiva, 2006, p. 02.

25 BUCCI, 2006, p. 02.-03.

26 Art. 6o São direitos sociais a educação, a saúde, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição.(Redação dada pela Emenda Constitucional nº 26, de 2000).

27 BUCCI, 2006, p. 03.

28 SCHULTE, Bernd. Direitos Fundamentais, segurança social e proibição de retrocesso. In: SARLET, 2003, p. 303.

modo, a partir da educação é possível acreditar na transformação social e na melhoria da qualidade de vida de todos os cidadãos, pois a mesma se configura em importante ferramenta de garantia de efetivação dos direitos fundamentais.

A garantia de uma educação de qualidade, que prepare para o trabalho e que possibilite o exercício da cidadania, indispensável para a construção de uma sociedade democrática, é disciplinada pelo próprio texto constitucional que estabelece as condições, a organização e a estrutura do sistema educacional, as regras de participação dos entes federados e a elaboração de um plano nacional de educação, elencando os princípios que servirão de base para o ensino (art. 206); a forma através da qual o Estado efetivará o seu dever para com a educação (art. 208);

a forma de elaboração dos sistemas de ensino da União, Estados, Distrito Federal e Municípios (art. 211); a destinação de recursos para o desenvolvimento do ensino (art. 212); e a exigência de elaboração do Plano Nacional de Educação (art. 214).

Em relação à gestão democrática da educação, Cury afirma que a mesma

“implica um ou mais interlocutores com os quais se dialoga pela arte de interrogar e pela paciência em buscar respostas que possam auxiliar no governo da educação, segundo a justiça”29. Partindo desse pressuposto, esse modelo de gestão adquire um caráter mais democrático, pois parte da comunicação e do envolvimento coletivo pelo diálogo, em busca da melhoria da qualidade da educação.

A gestão democrática, que tem entre seus princípios a descentralização, a participação e a transparência, encontra previsão no art. 206, inciso VI, da Constituição Federal, e no art. 3º, inciso VIII, da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, Lei nº. 9.394/1996. A mesma Lei, em seu art. 15, prevê que os sistemas de ensino assegurarão às unidades escolares públicas de educação básica que os integram progressivos graus de autonomia pedagógica e administrativa e de gestão financeira, devendo ser observadas as normas gerais de direito financeiro público.

Tanto a Constituição Federal quanto a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional preveem que a administração, partindo da elaboração e chegando à execução das decisões relativas à gestão da educação, deva ocorrer de forma não hierarquizada. Para isso, a participação de todos os envolvidos no processo escolar é essencial. Do mesmo modo, todas as decisões, assim como todas as ações, devem ser de conhecimento de todos.

O Plano Nacional de Educação, em consonância com a Constituição Federal e a Lei de Diretrizes e Bases da Educação, determina que cada sistema de ensino deva implantar a gestão democrática, observando-se o seguinte: em nível de gestão de sistema na forma de Conselhos de Educação que reúnam competência técnica e representatividade dos diversos setores educacionais; em nível das unidades escolares, por meio da formação de conselhos escolares de que participe a comunidade educacional e por meio de formas de escolha da direção escolar que associem a garantia da competência ao compromisso com a proposta pedagógica

29 CURY, Carlos Roberto Jamil. O principio da Gestão Democrática na Educação. In: Gestão Democrática da Educação. Brasília: Ministério da Educação, 2005, p. 14.

emanada dos conselhos escolares e a representatividade e a liderança dos gestores escolares30.

Entre os objetivos e as prioridades estabelecidos pelo Plano Nacional de Educação está a democratização da gestão do ensino público, nos estabelecimentos oficiais, obedecendo aos princípios da participação dos profissionais da educação na elaboração do projeto pedagógico da escola e a participação das comunidades escolar e local em conselhos escolares ou equivalentes.

Para Bordignon, as diretrizes estabelecidas pela Constituição Federal, Lei de Diretrizes e Bases da Educação e Plano Nacional de Educação tem suas origens na compreensão de que as instituições públicas pertencem ao público, evidenciando-se sua dimensão de “res-publica” e da cidadania como exercício de poder, “superando o paradigma patrimonialista, que considera o bem público como pertencente aos governantes e que dá suporte às políticas centralizadoras e às práticas autoritárias e, ainda, que situa os cidadãos como se fossem súditos”31.

O autor vai além e diz que o novo paradigma constitucional preconiza uma educação democrática, emancipadora e cidadã. Para tanto, é necessário que a comunidade escolar participe efetivamente dos conselhos e da gestão escolar, exercendo o seu poder de cidadania. Em relação aos conselhos, o autor afirma que:

Os conselhos de educação no Brasil foram concebidos como órgãos de Estado, no sentido que falam ao Governo em nome da sociedade e buscam preservar a coerência e a continuidade das políticas públicas. O Estado tem o sentido do permanente e representa, nos regimes republicanos democráticos, o eixo condutor e a continuidade da vontade nacional, em face da transitoriedade dos governos. Assim,

30 Dentre os objetivos e metas da gestão, o Plano Nacional de Educação prevê: aperfeiçoar o regime de colaboração entre os sistemas de ensino com vistas a uma ação coordenada entre entes federativos, compartilhando responsabilidades, a partir das funções constitucionais próprias e supletivas e das metas deste PNE; estimular a colaboração entre as redes e os sistemas de ensino municipais, através de apoio técnico a consórcios intermunicipais e a colegiados regionais consultivos, quando necessários; estimular a criação de Conselhos Municipais de Educação e apoiar tecnicamente os Municípios que optarem por constituir sistemas municipais de ensino; definir, em cada sistema de ensino, normas de gestão democrática do ensino público, com a participação da comunidade; editar pelos sistemas de ensino, normas e diretrizes gerais desburocratizantes e flexíveis, que estimulem a iniciativa e a ação inovadora das instituições escolares; desenvolver padrão de gestão que tenha como elementos a destinação de recursos para as atividades-fim, a descentralização, a autonomia da escola, a equidade, o foco na aprendizagem dos alunos e a participação da comunidade; assegurar a autonomia administrativa e pedagógica das escolas e ampliar sua autonomia financeira, através do repasse de recursos diretamente às escolas para pequenas despesas de manutenção e cumprimento de sua proposta pedagógica; estabelecer, em todos os Estados, com a colaboração dos Municípios e das universidades, programas diversificados de formação continuada e atualização visando à melhoria do desempenho no exercício da função ou do cargo de diretores de escolas; definir padrões mínimos de qualidade da aprendizagem na Educação Básica numa Conferência Nacional de Educação, que envolva a comunidade educacional; instituir, em todos os níveis, Conselhos de Acompanhamento e Controle Social dos recursos destinados à Educação não incluídos no Fundef, qualquer que seja sua origem, nos moldes dos Conselhos de Acompanhamento e Controle Social do Fundef, entre outros.

31 BORDIGNON, Genuíno. Proposta Pedagógica da Gestão Democrática da Educação. In: Gestão Democrática da Educação. Brasília: Ministério da Educação, 2005, p. 05.

os conselhos, enquanto órgãos de Estado, assumem o caráter da permanência, da garantia da continuidade das políticas públicas.

Neste sentido, os conselhos foram criados como fóruns da vontade plural da sociedade, para situar estrategicamente a formulação das políticas educacionais acima e além da transitoriedade dos mandatos executivos, mas sintonizados com os movimentos das aspirações nacionais32.

A partir desse enfoque, é possível afirmar que os conselhos situam-se entre a sociedade e o governo, exercendo um papel de mediação. No caso dos conselhos escolares, a sua atribuição é “dizer ao governo (da escola) o que a comunidade quer, o que deseja ver feito, deliberando e aconselhando os dirigentes, no que julgarem prudente, sobre as ações a empreender e os meios a utilizar para o alcance dos fins da escola”33. Desse modo, ensejando a solidificação de um modelo de escola que contemple a educação prevista constitucionalmente.

A gestão democrática não é um tema novo na pauta de reflexões sobre a educação. Ele decorre de um processo que vem sendo construído desde a década de 1970, especialmente a partir do fortalecimento dos movimentos de luta pela redemocratização. Entretanto, é a partir da Constituição Federal de 1988 que o processo de gestão democrática na educação pública passa a ser visto a partir de uma nova concepção.

De acordo com Cury, esse processo de gestão democrática passa por quatro momentos aos quais ele chama de tensão. Segundo o autor, o final dos anos 80 e o início dos anos 90 representam a primeira tensão com a qual o país passa a conviver e que diz respeito à afirmação do princípio da igualdade a partir das políticas sociais características do Estado de Bem-Estar Social, quando se espera do Estado Social a execução de políticas públicas “concernentes à superação das crônicas e históricas desigualdades, se afirmará Democrático pelo anseio de participação dos grupos e dos indivíduos nos destinos dos campos relativos aos direitos civis, políticos, sociais e culturais”34.

A segunda tensão se verifica a partir da Constituição Federal:

a tensão entre igualdade social e liberdade individual, entre liberdade de mercado e função social da propriedade, entre dever do Estado.

Esse choque entre uma tendência igualitária distributiva face à dívida social com papel interventor do Estado e a tendência afirmadora da liberdade de mercado teria, justamente, sua face mais aguda nas fontes dos recursos e no modo de administrá-los. Daí a balança pendendo para a face internacional da economia mundial nas quais sobressaem as temáticas de ajuste fiscal, de estabilização econômica

32 BORDIGNON, 2005, p. 07.

33 Ibidem, p. 08.

34 CURY, Carlos Roberto Jamil. Gestão democrática da educação em tempos de contradição In:

http://www.isecure.com.br/anpae, 2007, p. 05.

e do controle da inflação e dos gastos públicos e que são próprias do quadro econômico internacional que se impunha35.

Na sequência, Cury aponta a terceira tensão como sendo decorrente do aumento da participação da sociedade civil no âmbito das políticas sociais. Essa participação envolve a ocupação dos aparatos burocráticos, até então restritos, e amplifica a expectativa de real participação.

Por fim, o autor apresenta a quarta tensão que emerge das anteriores:

uma expectativa muito alta no sentido da superação das várias formas de discriminação, de desigualdade, e de disparidades regionais e a tentação de esvaziar o caráter desses direitos proclamados ao colocá-los como meros discursos declaratórios de princípios em face das pressões internacionais, da crise fiscal e do controle inflacionário36. E é nesse sentido que a interpretação dos dispositivos constitucionais referentes à educação aponta. Especialmente no que concerne à gestão democrática, é necessário ter clareza quanto à necessidade de uma prática que articule a participação de todos com o compromisso sociopolítico. Todos os envolvidos no processo educacional são convocados e devem participar.

A busca por uma educação de qualidade resume as finalidades da gestão democrática. A participação dos diferentes atores da comunidade escolar possibilita a construção de uma educação mais próxima dos ideais de equidade e de redução das desigualdades. Para Libâneo,

A participação é o principal meio de assegurar a gestão democrática da escola, possibilitando o envolvimento de profissionais e usuários no processo de tomada de decisões e no funcionamento da organização escolar. Além disso, proporcionar um melhor conhecimento dos objetivos e metas, da estrutura organizacional e de sua dinâmica das relações da escola com a comunidade, e favorece uma aproximação maior entre professores, alunos e pais37.

De acordo com o autor, as escolas necessitam da liderança de um gestor comprometido com a qualidade da educação. Do mesmo modo, o gestor deve estar atento às transformações sociais e administrar as contradições oriundas da realidade que circunda a escola pública. A escolha dos diretores, por exemplo, representa um avanço significativo para o modelo de gestão escolar. Diferentemente do modelo em que o diretor era indicado pelo governo e que apenas administrava a partir de determinações estabelecidas pelos órgãos centrais superiores, a escolha dos diretores permitiu uma maior proximidade e um maior comprometimento por parte dos mesmos para com os problemas a serem enfrentados pela comunidade escolar

35 CURY, 2007, p. 06.

36 Ibidem, p. 06.

37 LIBÂNEO, J. C. Organização e gestão escolar:teoria e prática. 5. ed. Goiânia: Editora alternativa, 2004, p. 102.

pela qual são responsáveis.

Mas não é apenas a eleição de diretores que caracteriza a gestão democrática.

Tem-se uma maior autonomia escolar, com a descentralização administrativa, financeira e pedagógica; a constituição e o funcionamento dos colegiados; e a participação de toda a comunidade escolar na gestão escolar. Somados, esses fatores contribuem para a melhoria da qualidade da educação pública.

Para Cury, a gestão democrática representa um avanço significativo:

A gestão democrática é um princípio do Estado nas políticas educacionais que espelha o próprio Estado Democrático de Direito e nele se espelha, postulando a presença dos cidadãos no processo e no produto de políticas dos governos. Os cidadãos querem mais do que ser executores de políticas, querem ser ouvidos e ter presença em arenas públicas de elaboração e nos momentos de tomada de decisão. Trata-se de democratizar a própria democracia. Tal é o caso dos múltiplos Conselhos hoje existentes no âmbito de controle e fiscalização de recursos obrigatórios para a educação escolar, da merenda e de outros assuntos. Tal é o caso também dos orçamentos participativos em diversos municípios do país. E neste sentido que a gestão democrática é um princípio constituinte dos Conselhos intraescolares como os Colegiados, o Conselho da Escola, os Conselhos dos Professores e outras formas colegiadas de atuação38. A participação, nesse caso, é condição sine qua non, sem a qual a ideia de gestão democrática não germina. Como lembra Bresser Pereira, a democracia implica, além da liberdade de pensamento e de eleições livres, a prestação de contas por parte da burocracia pública, o que possibilita a participação dos cidadãos no processo político.

Para o autor, a participação está entre os quatro pilares da democracia, juntamente com a liberdade, a representação e a responsabilização39. Diante disso, se conclui que a participação social auxilia na promoção do fortalecimento da cidadania e é indispensável quando se trata de gestão democrática da educação pública.

O exercício da democracia clama pela participação da sociedade na gestão das instituições públicas e, no caso das instituições escolares, a participação é condição essencial para a garantia de uma educação de qualidade, democrática e cidadã.

Outline

Documentos relacionados