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Livros RTP – Biblioteca Básica Verbo

4. Analisando as coleções

Como iniciativa de alcance popular – e, pode dizer-se, coroada de êxito – “Os Livros RTP – Biblioteca Básica Verbo” (de ora em diante RTP-Verbo) não têm verdadeiramente precursores, dado que a intervenção da TV portuguesa ao nível da promoção foi uma novidade absoluta. Porém, como conjunto or- ganizado de livros, autores e temas, a coleção insere-se, sem dúvida alguma, numa prática interventiva de planificação presente há várias décadas no tecido cultural português e que julgamos responsável, em grande medida, pela di- vulgação da literatura estrangeira no nosso país. A investigação agora [2003] iniciada será certamente morosa. É seu objetivo reunir as principais coleções e bibliotecas que se publicaram durante o Estado Novo, embora nos tenhamos,

11 As considerações de que partimos para caracterizar o colecionador foram recolhidas em

Misérias e Esplendores da Tradução no Portugal do Estado Novo

para já, concentrado naquelas que apresentam afinidades com a RTP-Verbo:12

a “Cosmos”, a “Inquérito”, a “Saber” e a “BAB – Biblioteca Arcádia de Bolso”. Em jeito de excurso introdutório, uma vez que o assunto não integra as nossas preocupações de momento, há a salientar a existência de coleções inteiramente dedicadas ao reconhecimento e divulgação de autores e temas portugueses, também aqui com diversas orientações. Escolhemos nomear cinco: as “Ata Universitatis Conimbrigensis” (cujo 1.º volume sai em 1948), a “Clássicos Sá da Costa”, iniciada em 1937 com direção de Rodrigues Lapa, a “Pelo Império”, começada em 1935, a “Portugália”, lançada em 1962, e as “Publicações do Seminário de Cultura Portuguesa”, dirigidas por José Sebas- tião da Silva Dias, iniciadas em 1972.

Em 1941 Manuel Rodrigues de Oliveira, responsável pelas Edições Cos- mos, e um grupo de amigos que se juntava no café do Chiado “A Brasileira”, lembraram-se de criar uma coleção de divulgação séria que contrariasse o cli- ma opressivo que, também em matéria de cultura, se vivia em Portugal. O pró- prio, em depoimento prestado à Seara Nova em 1963, esclareceu: “A Cosmos nasceu devido à necessidade de expandir, em Portugal, uma cultura científica extensiva às mais largas camadas do povo português.” (Seara Nova 1415: 244-5, 251). A concretização do projeto viria a ser o lançamento da “Biblioteca Cosmos” (1941-1948), que reuniria obras de pequeno formato, abordando temáticas de interesse geral, e com preço acessível. Bento de Jesus Caraça (1901-1948) aceitou o convite para fazer o projeto da coleção, dirigi-la e se- lecionar os colaboradores.13 Integravam a lista nomes tão prestigiados como

Abel Salazar, A. Casais Monteiro, Agostinho da Silva, António Sérgio, Celestino

12 São muitas as dificuldades na recolha de dados fiáveis sobre estas coleções, desde logo

porque uma grande parte das obras não contêm qualquer data. O que aqui apresentamos, resul- tado do que foi possível recolher para o III Colóquio de Estudos de Tradução em Portugal (sobre “A Colecção Livros RTP – Biblioteca Básica Verbo 1971-1972”, 18 e 19 de dezembro de 2003, v. Seruya 2005), tem um carácter provisório, servindo, no entanto, de indicador de tendências. Refira-se ainda que os critérios de seleção foram essencialmente dois: o da semelhança estrutural com a coleção em estudo e o da divulgação e impacto públicos, de acordo com testemunhos orais que reputamos de credíveis. Recorremos, também, à nossa própria memória.

13 Para uma boa apresentação geral de B. J. Caraça ver a entrada respetiva do 1.º volume

do Dicionário de História do Estado Novo, dir. Fernando Rosas e Brandão de Brito (1996). Por sua vez, os leitores interessados na “Biblioteca Cosmos” têm agora à disposição o volume edi- tado pela Fundação Calouste Gulbenkian em novembro de 2001, com um estudo introdutório de J. Moreira Araújo, e que reproduz alguns dos primeiros títulos da coleção (Biblioteca Cosmos 2001). O estudo baseia-se em documentação guardada na Fundação Mário Soares.

Coleções e bibliotecas entre os anos 40 e os anos 70 do século XX

da Costa, Henrique de Barros, Irene Lisboa, Luís Dias Amado, Luís de Freitas Branco, Manuel Alves Correia, P. Brito Aranha, Rodrigues Lapa, Rui Luís Go- mes, Rómulo de Carvalho e tantos outros.

O n.º 1, saído em junho de 1941, pertencia à 6.ª Secção (“Epopeias Hu- manas”) e intitulava-se O Homem e o Livro (autor: M. Iline14). A coleção é aqui

apresentada pelas palavras do seu responsável, no que se pode considerar um verdadeiro ato de planificação cultural numa perspetiva bem diferente das conceções do Estado Novo: a cultura, nomeadamente a “cultura geral” é con- siderada um bem para todos, metonimicamente expresso no novo herói que é o homem comum, e faz-se acompanhar, a nível material, da estratégia con- creta do preço acessível, na vertente da forma e conteúdo, da exigência de síntese entre “simplicidade máxima na forma de exprimir, rigor máximo na for- ma de expor.”15 Tratava-se, portanto, e afinal, de dar novo alento e dignificar a

tarefa educativa da “vulgarização” do conhecimento, no que nele pertence ao domínio geral (por oposição ao domínio do especialista). Sublinhe-se ainda o otimismo subjacente: Bento Caraça fala da importância da igualdade de opor- tunidades quando postula que “nada há que não possa ser apreendido pelo comum dos homens”, por outro lado, e numa referência à Guerra, afirma a certeza de que ela passará, impondo-se então a “reconstrução da sociedade” – com um objetivo: o de impedir nova guerra. Encontramos todo um programa condensado na palavra de ordem de um “novo humanismo” na “Cidade Nova” (Biblioteca Cosmos 2001: “O Homem e o Livro”, 6 p. não numeradas).16

A coleção estava dividida em sete domínios genéricos do conhecimento humano (“Secções”), encabeçados pelas Ciências e Técnicas; cada secção subdividia-se em áreas especializadas. A identificação do campo do saber era feita por uma cor, tendo as capas monocromáticas sido concebidas por Carlos Botelho. Além daquela, integravam a coleção as secções Artes e Le- tras, Filosofia e Religiões, Povos e Civilizações, Biografias, Epopeias Humanas

14 Pseudónimo de Il’ya Marshak (1895-1953), engenheiro pelo Instituto Tecnológico de S. Pe-

tersburgo, autor de literatura infantojuvenil e divulgador científico.

15 O preço era de 2$50 (brochado) e 3$50 (cartonado), tendo subido em 1947 para, res-

petivamente, 7$50 e 8$50. J. Moreira Araújo fez as contas ao preço dos livros na moeda atual, concluindo que “os 2$50 de 1941 equivalerão a pouco mais de 300$00 actuais [cerca de 1.50€], e os 7$50 de 47 a cerca de 500$00” (Araújo 2001: 12).

16 A antologia citada, dedicada à “Biblioteca Cosmos”, reproduz vários números fac-similados

(7), mas a Introdução ao primeiro livro, assinada por Bento de Jesus Caraça, que citámos, não tem as páginas numeradas.

Misérias e Esplendores da Tradução no Portugal do Estado Novo

e Problemas do Nosso Tempo.17 Nos sete anos que a coleção durou (1941-

-1948) saíram 145 números, num total de 114 volumes (31 números duplos) de 89 autores. Dos 106 títulos publicados, só 19 foram traduções (Araújo 2001: 14). Pedro Teixeira Mesquita salienta que o predomínio de autores portugue- ses – 67 contra 22 estrangeiros – era “raro” em “grandes projectos editoriais de divulgação”, já que a regra era recorrer à produção estrangeira para suprir a falta de especialistas nacionais (Mesquita 2002: 112). Na verdade, e compa- rando com projetos editoriais subsequentes – a coleção “Saber”, da Europa- -América, começada no início dos anos 50, ou os “Cadernos Inquérito” (com nove secções, das quais a F, “Ciência” está toda preenchida por traduções), ou ainda os “Livros Unibolso”18 ou a “BAB – Biblioteca Arcádia de Bolso” (esta

com secções inteiras ocupadas com traduções: Filosofia, Psicologia, Ciências Puras e Aplicadas, Ciências Sociais) – a “Biblioteca Cosmos” conseguiu reunir um número invulgar de especialistas portugueses em diversas matérias: Mate- mática, Agricultura, Civilizações Remotas, Nutricionismo, Genética, Mineralo- gia, Biologia, Oceanografia, Sexologia e outros.19

Eis um fenómeno que a história da ciência em Portugal não poderá descu- rar: se é certo que tudo aponta para que nessa história tenham lugar de relevo as traduções, por outro lado impõe-se-nos a interrogação por que não preci- sou ou não quis Caraça recorrer a traduções para divulgar a ciência em Portu- gal, e porque é que depois dele quase não encontramos nomes portugueses. A explicação mais imediata e plausível parece ser a “purga” de 1947: 21 figu- ras do maior relevo foram expulsas da Universidade portuguesa, militares e professores atingidos pelas medidas de aposentação ou demissão previstas no Decreto-Lei 25317, de maio de 1935, ao abrigo do qual já nesta data no- mes como Rodrigues Lapa e Abel Salazar haviam sido compulsivamente afas- tados do ensino (cf. Meneses 2010: 176).20 Uma boa parte do escol com que

Portugal contava foi assim dizimado, o que viria a revelar-se catastrófico para a Universidade e a investigação em Portugal, mas benéfico para instituições

17 Parece-nos que esta e outras coleções fornecem material digno de consideração para

estudos históricos epistemológicos sobre a organização do saber em Portugal.

18 Os “Livros Unibolso” também foram um projeto inovador que resultou de uma junção de

vários editores associados à Ulisseia.

19 Moreira Araújo conclui o mesmo: “De facto, na Biblioteca Cosmos traduções eram excep-

ção e não a regra – como sucede em tantos outros casos.” (Araújo 2001: 14).

Coleções e bibliotecas entre os anos 40 e os anos 70 do século XX

estrangeiras.21 Justamente os nomes da lista dos expulsos de 1947 perten-

cem praticamente todos à área das ciências.22

Ao avaliar o peso relativo das diversas secções da “Biblioteca Cosmos” verifica-se a aposta na cultura técnico-científica, o que dá ainda mais relevo à capacidade de diagnóstico de Bento Caraça quanto às debilidades culturais portuguesas. Do total de 114 volumes publicados, 54 pertencem às “Ciências e Técnicas”, logo seguidos de 24 títulos de “Problemas do Nosso Tempo”, e 21 de “Artes e Letras”. A área preferencial era, sem dúvida, a mais caren- ciada, vindo, portanto, efetivamente preencher uma lacuna. Os títulos com maior número de edições foram os Conceitos Fundamentais da Matemática, seguidos de O Homem e o Livro e O Problema do Trigo. Foi publicado um total de 793 500 exemplares. No número que se anuncia como o último da coleção (144/145, um volume duplo) temos informação sobre a preparação de futuras edições (a continuidade estava assegurada até 1951), porém tudo parou com a morte do diretor, “porque não queremos continuar com outrem uma obra que foi criação do Prof. Bento de Jesus Caraça”, assim reza a nota editorial do referido volume duplo, publicado em julho de 1948.

A Inquérito teve início em 1938, mantendo-se até hoje [2005], nomeadamen- te por meio da coleção “Clássicos Inquérito”. Do seu “Catálogo Geral”, entre os anos de 1940 e 1956, faziam parte duas séries: “Os melhores romances dos melhores romancistas”, coleção constituída na base de prémios, como o Nobel, o Goncourt e o Femina, com 47 títulos, dos quais apenas dois de au- tores portugueses;23 e “As melhores novelas dos melhores novelistas”, com 53

títulos e também apenas dois portugueses.24 Parece, portanto, que o contributo

português para o que de “melhor” por cá se podia ler era bastante modesto…

21 É o caso do físico nuclear Manuel Valadares que viria a ser diretor do mais importante

laboratório francês de Física Nuclear em Orsay. Agradeço a João Carlos Alvim muita informação relacionada com este caso, que aqui não posso desenvolver, bem como dados sobre a “Biblioteca Cosmos”.

22 Cf. para uma boa informação biográfica sobre investigadores e docentes afastados com-

pulsivamente da Universidade portuguguesa: http://maismemoria.org/mm/2011/11/25/notas- -biograficas-dos-investigadores-e-docentes-alvo-de-depuracao-politica-das-universidades-por- tuguesas-pelo-estado-novo/. Nota acrescentada em 2018.

23 Trata-se de Pântano, de João Gaspar Simões, e O Príncipe de Orelhas de Burro, de José

Régio.

24 Um de Garrett, Joaninha dos Olhos Verdes e a célebre novela de Régio Davam Grandes

Misérias e Esplendores da Tradução no Portugal do Estado Novo

Os “Cadernos Inquérito” apresentavam-se divididos em nove séries, correspon- dentes a áreas de conhecimento nas quais não parecia haver uma presença portuguesa marcante. Por exemplo, no catálogo de 1941, na secção “Economia e Sociologia”, de seis títulos, só um é português; em “Filosofia e Religião” não surge nenhum autor nacional; em “Ciência” todos os autores são estrangeiros. Há apenas uma série, “Crítica e História Literária”, inteiramente preenchida com nomes nacionais. Nesta data, os catálogos da editora listam ainda outras cole- ções como “Documentos e Ideias para a História” (o tema da guerra é aqui do- minante), “Contos Inquérito”, a coleção “Aventura” e várias obras em fascículos. A editora Europa-América publicou, a partir de 1949, a coleção “Saber”, de pequeno formato e a baixo preço, com muitos títulos da congénere francesa “Que sais-je?”.25 Pela observação dos cerca de 80 números publicados até à

Revolução de Abril, verifica-se a presença de apenas dez autores portugue- ses, entre os quais avulta António José Saraiva, com quatro títulos; a História

da Música Portuguesa é confiada a João de Freitas Branco, a Canção Popular Portuguesa a Fernando Lopes Graça, a História do Teatro Português a Luís

Francisco Rebelo – para além de serem nomes que se estabilizaram nestas áreas, e conhecido que é o perfil político de Francisco Lyon de Castro, também não espanta o posicionamento oposicionista dos quatro autores. Os assuntos abrangidos pela coleção são muito variados, como é de esperar de uma co- leção generalista: técnica, arte, ciência, física, biologia, economia, finanças, psicologia, política, medicina, literatura, oceanografia, eletrónica, vulcanologia, sexualidade, cooperativismo, etc. Tudo são traduções.

A “Biblioteca Arcádia de Bolso” foi lançada em 1962, tendo terminado em 1974. Tal como a “Saber”, tem títulos da “Que sais-je?”, mas propõe ainda uma outra organização do conhecimento (a organização temática da coleção surge logo no n.º 1). Baseando-nos no catálogo que figura no n.º 146, de 1972, verificamos a presença de oito secções: Arte e Literatura, Filosofia e Psicolo- gia, História e Geografia, Ciências Puras e Aplicadas, Ciências Sociais, Ficção, Clássicos, Documentos e Estudos Diversos. A relação entre autores nacionais e estrangeiros continua a pender desproporcionadamente a favor destes. Assim,

25 O n.º 1 da coleção é a História das Técnicas, de Pierre Ducassé, que teve uma primeira

edição em 1949 (s.l., s.d., Tip. Rádio Renascença, sem indicação de tradutor), mas que só en- trou para a coleção, justamente como seu primeiro número, em 1962 (2.ª edição; a 3.ª, de 1978, aparecerá com tradução de Jorge Borges de Macedo). Há, porém, outro título de 1949, que nos permite datar daí o início da coleção, é o volume Os Sonhos, de Jean Lhermitte (4.º título).

Coleções e bibliotecas entre os anos 40 e os anos 70 do século XX

nas secções de Filosofia e Psicologia, Ciências Puras e Aplicadas, Ciências So- ciais e até na de Ficção, com respetivamente 12, 18, 12 e 10 títulos, não figura nenhum contributo português. Aos olhos de hoje [2005], regista-se, não sem alguma surpresa, a publicação de um título sobre a contraceção (na secção de Ciências Puras e Aplicadas!) e a presença, como único contributo portu- guês entre os 10 títulos da secção Documentos e Estudos Diversos, do livro da jornalista Antónia de Sousa sobre O Mercado do Trabalho e a Mulher. Con- firmando a cultura francesa como cultura estrangeira dominante, a secção dos “Clássicos”, de entre os seus 11 títulos, dos quais faz parte apenas um autor português (Camões), apresenta cinco títulos franceses (e ainda três russos, um inglês e um alemão). Uma última nota digna de registo e passível de várias lei- turas prende-se com o núcleo forte de autores dos então chamados países da “Cortina de Ferro” na secção de Ciências Puras e Aplicadas.26

Nota (2018)

A versão original deste texto continha, na conclusão, três anexos: uma lista das editoras e coleções de literatura visitadas, com indicação das datas dos respetivos início e fim (em alguns casos aproximadas, dada a impossibilidade de confirmação); alguns dados sobre autores traduzidos e confronto com os portugueses; uma lista dos autores estrangeiros com mais títulos (até 3), da qual saíam vencedores Pearl Buck, Erskine Caldwell e Somerset Maugham, todos com 28 títulos publicados nas três décadas em análise (1940-1970). Estes anexos não foram agora incluídos porque o estado da recolha de da- dos, à altura da realização do Colóquio onde foram apresentados (2003), foi ultrapassado pelo novo projeto bibliográfico em curso Intercultural Literature

in Portugal 1930-2000: a Critical Bibliography, iniciado em 2008. No entanto,

considero que os dados inicialmente recolhidos mantêm o seu interesse, pelo que remeto o leitor para a publicação deste estudo em livro, referida na primei- ra página deste texto.

26 Neste contexto é justo referir outra iniciativa editorial iniciada nos anos 60, de cultura geral,

e decalcada de um modelo alemão: a Enciclopédia Meridiano Fischer, que dará certamente um interessante resultado em matéria de Estudos de Tradução. Por exemplo, o volume “Antropologia” (1.ª ed. 1967, 4.ª ed. 1979) tem uma equipa de quatro tradutores, um revisor, um supervisor e seis colaboradores universitários.

Capítulo 9

Literaturas extraeuropeias em antologia durante