• Nenhum resultado encontrado

Literaturas extraeuropeias em antologia durante o Estado Novo (1933-1974)

5. Antologias de contos japoneses

Por fim passamos para antologias de literatura japonesa, a mais repre- sentada entre 1935 e 1974, mas mesmo assim não atingindo sequer os 20 títulos. O volume Os Melhores Contos Japoneses (1967?) surge mais de duas décadas depois das antologias dedicadas à Índia e à China e antecedeu de três anos a conhecida obra de Armando Martins Janeira, O Impacte Portu-

guês sobre a Civilização Japonesa (1970). O prefácio a Os Melhores Contos Japoneses, da autoria da ficcionista e dramaturga Alice Sampaio (1927-1983),

não destoa do ponto de vista universalizante dos anteriores conjuntos trata- dos.21 Frisando o “fascínio” que o Oriente exerce na Europa e a sua constan-

te presença aqui, propõe que os contos sirvam para inverter a paixão pelo “exotismo oriental” (igual a uma visão “de fora”) com a adoção da visão “de dentro” que é a fornecida pelos escritores “que vivem a sua [do Japão] história e atualidade” (relembra as palavras supra de Celestino Gomes sobre a visão portuguesa das culturas asiáticas). Mas se julgávamos descortinar um inte- resse verdadeiro pelo diferente, pelo Outro eventualmente estranho, logo nos desiludimos com o discurso da fraternidade universal que se segue: os contos sublinham, segundo Alice Sampaio, que “seja qual for a cor da sua pele ou a forma dos olhos, constituímos uma e mesma humanidade”. Nem a tradução institui qualquer diferença ou fronteira: “seja qual for a língua ou dialecto em que nos exprimimos, estamos a traduzir pensamentos de seres habitantes de um mesmo planeta”.

19 Segundo várias fontes consultadas, Lu Hsun, contista, poeta, tradutor, crítico, ensaísta, é

um dos grandes escritores chineses do século XX, e o fundador da moderna literatura chinesa,

tendo escrito tanto em vernáculo como em chinês clássico. O próprio Mao Tse-Tung foi sempre um admirador da sua obra. Existem numerosas traduções para inglês e francês, dos anos 50 e 60 (embora também anteriores), que poderiam ter servido de textos de partida para o volume em causa.

20 Os primeiros quatro volumes foram reeditados em 1975 pela editora Família 2000, do Porto. 21 As páginas deste prefácio não estão numeradas.

Misérias e Esplendores da Tradução no Portugal do Estado Novo

Não há quaisquer indicações sobre os textos-fonte da antologia. Mas não era nada provável, pela sua biografia, que Alice Sampaio soubesse japonês; os tradutores indicados são desconhecidos. No entanto, não quisemos abando- nar a procura de um original e aí deparámos, sem surpresa, com uma edição francesa, essa sim traduzida diretamente do japonês: “Les portes de L’enfer suivie d’autres nouvelles choisies, présentées et traduites du japonais par le Dr. Ivan Morris [1925-1978], en collaboration avec Mlle A. Rosenblum et Mau- rice Beerbleck”, Paris, Stock, 1957. Os autores incluídos são: Akoutakagawa Ryounosouké (1892-1927), Junichiro Tanizaki (1886-1965), Hayashi Foumi- ko (1903 ou 1904-1951), Nakashima Ton (?-?), Dazai Ozamou (1909-1948), Ibouzé Masouji (1898-1993), Shiga Naoya (1883-1971), Niwa Foumio (1905- -2005).22 Na edição portuguesa, só o primeiro autor não consta, pelo que con-

sideramos alta a probabilidade de ter sido esta a fonte.

Duas histórias ressaltam de uma seleção não particularmente cativante: “Odiosa velhice”, do romancista Niwa Fumio23, história da velha Umé, avó de

85 anos, rabugenta, antipática, cuja vida, totalmente dependente dos vários netos (primeiro na cidade, depois na aldeia, por fim em Tóquio) é apenas um fardo e um estorvo. Trata-se de um retrato impiedoso e terrífico da velhice, sem qualquer amor ou carinho. É certo que os familiares não se recusam a acolher Umé em suas casas, mas o próprio narrador não condena a não- -função da “velha” naquela família, apenas uma peça de mobiliário inútil e que dá despesa, sem qualquer retorno.

“A História de Shunkin (Shunkinsho)” é da autoria de Junichiro Tanizaki, autor frequente no ciberespaço, com obra traduzida para inglês e adaptações várias ao cinema, entre as quais esta, e com mais quatro títulos traduzidos para português nas duas últimas décadas. É a história muito bela e bem con- tada, numa atitude narrativa modernista, da genial artista Shunkin, que cegou muito jovem e teve como guia e companheiro de vida inseparável Sasuke, de- voto absoluto da sua mestra, cuidando dela no dia-a-dia em todos os aspetos.

22 Reproduzo os nomes tal como constam da obra, porém, a grafia não coincide com a vi-

gente noutras fontes, por exemplo na Bibliothèque nationale de France. As datas de nascimento e morte dos autores são da minha responsabilidade.

23 No Ocidente, o seu romance porventura mais conhecido é Bodaiju [A árvore de Buda],

de 1956; o conto mais traduzido (em inglês e francês) é justamente este, “Odiosa velhice” (“The Hateful Age”, “Odieuse Vieillesse”). Na versão inglesa deste texto, o autor vem erradamente escrito como “Foumio”, razão pela qual ali é dito que se não encontraram dados sobre ele.

Literaturas extraeuropeias em antologia durante o Estado Novo (1933-1974) Acaba por se cegar a si próprio quando ela é atacada e fica desfigurada, não querendo que ele olhe para ela. A maneira que Sasuke encontra para, como sempre, satisfazer o desejo de Shunkin é não ver, ficar cego como ela. O tato é o principal sentido que os vai unir ainda mais. O narrador baseia-se em fon- tes várias, em testemunhos, numa biografia, e vai sempre informando o leitor sobre a fiabilidade do que diz sobre Shunkin, interpelando-o e convidando-o a refletir sobre as várias interpretações para episódios, traços de carácter da autoritária e voluntariosa artista instrumental, de grande renome e fascínio, mas igualmente prepotente e impiedosa para com quem a contrariasse ou lhe fizesse frente.

6. Conclusão

Após esta breve passagem pelas antologias estudadas pode concluir-se que o interesse editorial pelas culturas respetivas foi apenas residual, o que terá correspondido à pouca procura da parte do público. P. Baubeta interroga- -se sobre a finalidade das antologias, citando Ton Naaijkens: “A distinction should be made between thematic function, literary or historical-literary func- tion, cultural or cultural-historical function, ideological, political or commercial functions. Naturally, these functions are not exclusive and might even overlap.” (apud Baubeta 2007: 42). Poderíamos responder que estas antologias com- binam uma função temática com uma função histórico-literária, na medida em que pretendem introduzir um conhecimento novo e, a julgar pelos prefácios e pela seleção, a cruzar a história da literatura em língua portuguesa com a das línguas marathi, chinesa e japonesa. Acabam, no entanto, por cum- prir à contrecoeur uma função ideológica, pela visão des-historicizada e ten- dencialmente universalizante, portanto descaracterizante ou, nalguns casos, estereotipada, que dão das respetivas culturas. Na verdade, os textos das nossas antologias não encaixam na definição de orientalismo proposta por E. Said, pois não ilustram qualquer “distribuição de consciência geopolítica”, não se regem por uma “distinção geográfica básica (o mundo é constituído por duas metades desiguais, o Oriente e o Ocidente)”, nem manifestam “von- tade” nem “intenção de compreender, nalguns casos de controlar, manipular ou até incorporar, aquele que é um mundo manifestamente diferente […]” (Said 2004: 14). Quando muito poderíamos interpretar o pendor universalizante das

Misérias e Esplendores da Tradução no Portugal do Estado Novo

intervenções paratextuais (destinadas ao leitor) como tentativa de “incorporar o diferente” para o tornar igual, universal.

A esta luz, duas interpretações, não isentas de alguma especulação, se podem propor:

1) Desde as últimas décadas do século XIX que o interesse português esta-

va voltado para África, isto é, “depois da independência do Brasil (1822) a sal- vação do Império estaria em África. A Oriente procurava-se, tão-só, conservar o que restava do antigo poderio (político e religioso) […]” (Catroga 1999: 211). Porém, o “espírito imperial” promovido pelo Estado Novo “volta a enfatizar o papel do Oriente como campo de manifestação das ‘virtudes da raça’” (Hes- panha 1999: 30). Por outro lado, o luso-tropicalismo de Gilberto Freire será “incorporado e adaptado pelo discurso oficial do salazarismo” (Castelo 1998: 69ss.) e servirá os interesses político-ideológicos da política externa portugue- sa (Ibidem: 61), encontrando eco em pensadores como António Sérgio. Não será que a defesa “do modo português de estar no mundo”, ou seja, a sua “propensão para integrar e se integrar em contextos étnicos e civilizacionais tropicais” (Hespanha 1999: 30) encontra um eco nas escolhas das antologias apresentadas, cuja intencionalidade está longe de querer transmitir a diferença e a estranheza?

2) Mais plausível, porventura, é a leitura baseada na reavaliação que o his- toriador Rui Ramos fez recentemente da falta de sintonia entre a mística im- perial cultivada pelo Estado Novo (“o coração do regime esteve sempre no passado”, no dizer de Eduardo Lourenço, apud Ramos 2007: 444) e o sentir de uma consciência coletiva portuguesa, para a qual, segundo o mesmo pen- sador, “o nosso Império nunca existiu [sublinhado no original]” e, por isso, o seu desaparecimento em 1974 não causou traumas nem originou lutos (apud Ramos 2007: 433), se não nos lembrarmos das histórias dramáticas dos cer- ca de 500 000 retornados de Angola e Moçambique no ano de 1975. Ramos mostra convincentemente como a manutenção do Ultramar (africano, diga- -se) nunca fora objeto de unanimidade na sociedade portuguesa, ao contrário da propaganda do Estado Novo. A minha memória como contemporânea do fenómeno descrito confirma-o claramente. Sobretudo a partir dos anos 50, a existência de colónias parecia isolar Portugal do resto do mundo, e a Europa “oferecia perspectivas mais seguras para o desenvolvimento do país” (Ramos 2007: 441). Esta visão é confirmada pela investigação mais recente sobre o império colonial português: Rogério Martins, conhecido Secretário de Estado

Literaturas extraeuropeias em antologia durante o Estado Novo (1933-1974) da Indústria, já em 1970 discutia o desenvolvimento industrial do país sem qualquer atenção às colónias e seus problemas económicos (Jerónimo 2012: 271).

Assim, a presença tão escassa das literaturas orientais, nomeadamente em antologias, no sistema literário português pode ver-se como um indício da indiferença do público leitor pelas glórias imperiais do passado, ou daquilo que as pudesse evocar. No seu ensaio sobre o orientalismo na literatura portugue- sa até 1961 (ano da ocupação de Goa, Damão e Diu pelas tropas indianas) Pires de Lima observa como “avançando pelo século XX, os caminhos percor-

ridos pelo orientalismo português vão sendo cada vez mais escassos” (1999: 159). À exceção de Camilo Pessanha, a que nos referimos anteriormente, a tradução não parece ter sido parte importante desse fenómeno. Apesar da sua novidade, as antologias em questão não conseguiram contrariar aquele diagnóstico.

Capítulo 10

Tradução e revolução: encontros e desencontros.