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Literaturas extraeuropeias em antologia durante o Estado Novo (1933-1974)

4. Antologias de contos chineses

Segundo as mesmas fontes referidas no ponto 3, o número de títulos de autores chineses para o mesmo período (1935-1974) não chega sequer à meia dúzia.11 Quanto a antologias, encontrámos quatro de contos chineses:

A mais antiga é da autoria de Cheng Tcheng, A minha mãe e eu… (Tscheng 1942). O prefácio, assinado por A. J. de S., o que provavelmente corresponde ao nome do tradutor (Antonino de Sousa), dá alguma informação biográfica

9 Sobre estes dois autores, Dykshit e Varty, também não se encontraram quaisquer dados. 10 Tem poesia, prosa e ensaio publicados tanto em Portugal (pela Ed. Gleba, pela Junta de

Investigações do Ultramar, por exemplo), mas também em Panjim e Mapusa. Além de Tagore, traduziu ainda Jack London, Gandhi e contos do Hindustão.

11 Há um dado curioso: uma primeira edição de poemas de Mao Tse Tung de 1967, com

tradução de Manuel de Seabra, teve uma 2.ª ed. em 1974. No mesmo ano de 1967 houve dois títulos de Mao proibidos pela Comissão de Censura ao Livro (documentação do SNI): R8049/67, “Écrits militaires de Mao Tse-Toung”, e R8054/67, “Citations du Président Mao Tse-Toung”, ambos apreendidos pela PIDE. Porém, pouco depois, o R8067/67 cancela o despacho de proibição do 8054. Já no ano anterior, 1966, o livro Mao Tse-Tung, o imperador das formigas azuis, de George Paloczi Horvath, foi autorizado por ser “crítica objectiva ao comunismo” (R7785/66). [R= Relatório da Comissão de Censura (à guarda da Torre do Tombo). Os relatórios foram numerados pela própria Comissão. Ao número do Relatório segue-se, após a barra, o ano.]

Literaturas extraeuropeias em antologia durante o Estado Novo (1933-1974) sobre o autor. Cheng Tcheng (1899-1996),12 viajante pela Europa, publicou

parte da sua obra em Paris, onde contactou nomes tão relevantes como Paul Valéry, que escreveu mesmo um prefácio para a sua obra Vers l’unité / Ma

mère, da editora Attinger (Paris 1928).13 Uma vez que o tradutor e prefaciador

cita Valéry, torna-se altamente provável que tenha sido esta a fonte da tradu- ção portuguesa. Mas o significado mais marcante deste texto é o seu propó- sito de não sublinhar uma identidade específica do autor chinês, de não traçar fronteiras entre as culturas oriental e ocidental, subsumindo implicitamente aquela nesta com o argumento do “universal”. Assim, o que se passa com as personagens “podia ter decorrido em qualquer cidade da nossa província” (I), elas não são “representantes da raça chinesa, nem da filosofia oriental […]

mas de certos tipos sociais que a nossa época viu entrar em choque” (II), e o

livro “do jovem Cheng-Tchen” vem desfazer o “mito da impenetrabilidade das raças” (I).

Já os Contos Chineses traduzidos por Silvina de Troya Gomes (Contos Chi-

neses, s. d.) incluem maioritariamente autores do século XVII. Nove dos treze

textos também por ela selecionados são de P’u Sung-Lin, e só um, “O ventre de Nuwa”, é de um autor (Lu Hsun) a quem chama de “um dos maiores es- critores da China contemporânea”, “marcando uma reacção contra as antigas directrizes e crenças e os povos que usam da força contra a China” (da nótula prévia a este conto). O prefácio, igualmente da tradutora, consiste numa curta proposta de história da literatura chinesa, na qual Confúcio é designado de primeira figura. Trata-se de um prefácio onde abundam nomes, títulos e da- tas, sendo os títulos dos livros transcritos no alfabeto europeu e traduzidos. A tradutora dá especial relevo à poesia de mulheres no Cancioneiro: Silvina Gomes reproduz traduções de poemas de bailarinas e imperatrizes. Detém-se também a falar do teatro, transcrevendo um excerto (traduzido) da peça de teatro Transmigração de Yu-Chéu (Contos Chineses s.d.: 13s.). Elogia particu- larmente o género romance por descrever ao vivo as “camadas populares” em “atitudes naturais e ambientes familiares” (15). Assim, já não surpreende que

12 Na Bibliothèque nationale de France (BnF) este autor vem grafado como Cheng Sheng,

sendo Sheng o apelido. O nome regista aqui mais de cem entradas.

13 A obra que corresponde exatamente ao título da tradução portuguesa é Ma mère et moi

à travers la première révolution chinoise, também com um prefácio de Paul Valéry, mas a única

edição de que a BnF dispõe data de 1975 (Ed. Entente, Paris), pelo que não se pode ainda con- firmar a existência de uma edição anterior.

Misérias e Esplendores da Tradução no Portugal do Estado Novo

refira positivamente um movimento de princípios do século XX que pretende

substituir a língua literária pela língua popular, e isto com grande aceitação dos “senhores letrados” que apreciam os contistas de rua e o género dos textos selecionados para esta antologia, “como alguns letrados portugueses leem os romances de Max du Veuzit” (16). Esta eloquente comparação reforça a ima- gem da China que Silvina Gomes pretende transmitir, por ser aquela em que se revê: para ela a China é a de Marco Polo e de Fernão Mendes Pinto (17), bem como a dos contos que escolheu – e que são, com uma exceção, dos séculos XVII e XVIII – portanto uma China tradicional, sem história nem política…

Há a registar, a este propósito, que a editora Gleba e a tradutora fazem, antes do prefácio, um agradecimento ao “senhor Lou Che Ngan, primeiro secretário da Legação da China em Portugal” pela sua colaboração neste volume, em termos de “cativantes gentilezas e esclarecimentos”.14

Numa apreciação geral pode dizer-se que estes contos tradicionais mistu- ram elementos habitualmente considerados específicos de tradições chinesas (não distinção entre o real e o sobrenatural, cenários de pagodes, templos budistas, fantasmas de mortos com vida própria, condenações a “morte lenta” ou por esquartejamento, o eremitão sábio que pratica ritos iniciáticos, estig- ma social para mulheres do teatro e das artes, entre outros), com motivos típicos dos contos populares em geral: falsas identidades, provas iniciáticas para ascender à sabedoria, velhas intermediárias e interesseiras, equívocos na avaliação de situações, espadas mágicas, personagens possessas do demó- nio, o ingénuo enganado pelo espertalhão sem escrúpulos, entre outros. Não se podendo avaliar do rigor da tradução, salta à vista o uso de léxico cristão para referir culturemas chineses: assim, no conto “A esposa fantasma”, de P’u Sung-Lin, fala-se em “convento búdico”, “caridade”, “sacristão do convento”, de um homem de conduta “sem mácula”.

A mesma Silvina de Troya Gomes é autora da seleção e tradução da antolo- gia Contos Tradicionais Asiáticos (s.d., provavelmente 1945), que inclui contos de literaturas islâmicas (árabe e turca), persa (iraniana), hindustânica, chinesa e japonesa. O autor do meticuloso prefácio é o médico, pintor, escritor e tradutor João Carlos Celestino Gomes (1899-1960). Ali se refere aos “povos da China,

14 Tentámos, sem sucesso, obter alguma informação sobre este diplomata no Ministério dos

Negócios Estrangeiros. Era certamente enviado do Kuomintang, Partido Nacionalista Chinês, que dominou o governo da China de 1928 até à tomada do poder pelos comunistas em 1949.

Literaturas extraeuropeias em antologia durante o Estado Novo (1933-1974) da Mongólia e da Tartária, da Arábia, Pérsia e Índia […] por onde nossos avós andaram vadiando, amando e sofrendo” (Contos Tradicionais Asiáticos s.d.:

VIII), embora reconheça que esses povos ficaram “para nós apenas como exó-

ticos e maravilhosos sêres quási deshumanos [sic]” (VIII). Na sua opinião, a “arte

literária” pode compensar este desconhecimento, isto é, a literatura é a forma ideal de transmitir aos Portugueses o conhecimento desses povos. Apesar das muitas e diversas línguas, culturas e “raças”, Celestino Gomes descortina aqui um mesmo “fundo humano” (VIII). Eis-nos, portanto, de novo perante a

visão universalizante, quiçá uma forma de contrariar eventuais posições de superioridade rácica, mas que, por outro lado, não o impede de diferenciar cla- ramente os quatro grupos asiáticos de que se ocupa. Na caracterização dos contos populares árabes, industânicos [sic], chineses e japoneses, acentua o que considera serem as formas típicas, temas e personagens das respetivas tradições e refere-se também aos meios de difusão em cada caso. Por exem- plo, nas “literaturas islâmicas” “o contista público, contínuo repetidor das histó- rias tradicionais da alma islâmica, tempera-as sempre de alegria, mímica, bom humor, ironia, para dar mais expressão à sua narrativa e provocar no auditório uma geral embriaguez […]” (IXs.). Já na tradição japonesa “entrecruza-se” “o

instinto religioso da Índia, sobretudo o espírito budista, a serena sabedoria china e a crueldade sorridente e fria do próprio Japão.” (XVIII). Para além deste

prefácio, os quatro capítulos correspondendo às quatro tradições são antece- didos por curtas notas onde se resumem as respetivas especificidades e se indica a fonte das traduções: no caso dos “contos tradicionais árabes” o texto fonte é francês. Na verdade, aqui se menciona a “transcrição” das histórias feita pelo “Dr. J.-C. Mardrus” – ora, Jean-Charles Mardrus (1868-1949) foi um médico e tradutor francês, nascido no Cairo, que traduziu para francês As Mil

e Uma Noites, de 1898 a 1904, entre muitas outras obras da cultura muçulma-

na, mas também da tradição cristã, como o Cântico dos Cânticos ou o Livro

dos Reis.15 Os contos indianos não mencionam fontes.

Os chineses têm como fonte a seleção feita por Ch’u Ta-kao, um tradutor do chinês para inglês do Tao Te Ching, tradução esta ainda ativa no mercado.16

Pode supor-se que tenha sido esta a fonte. Por fim, os contos japoneses têm

15 A sua tradução de As Mil e Uma Noites continua ativa no mercado livreiro.

16 Esta tradução foi pela primeira vez publicada em 1937: Tao Tê Ching. A new translation by

Misérias e Esplendores da Tradução no Portugal do Estado Novo

como textos fonte a “transcrição” de Lafcadio Hearn (1850-1904), “que as pôs em linguagem ocidental” (Contos Tradicionais Asiáticos s.d.: 167). Segundo a British Library, este autor começou a traduzir literatura japonesa em 1894, tendo publicado muitos volumes de prosa e poesia até à data da antologia portuguesa, pelo que não é possível determinar com exatidão qual a fonte da selecionadora e tradutora portuguesa. De qualquer modo, regista-se a presen- ça de traduções intermédias inglesas e não só francesas, como era mais co- mum na época. Quanto aos contos desta antologia, apresentam sem dúvida uma qualidade literária raramente igualável no nosso corpus. Os enredos não são banais e atingem mesmo um certo grau de elaboração, evidenciando por vezes também algum pendor filosófico, e estão escritos num português corre- to e fluente, nem sempre marca distintiva das traduções na época… Convém sublinhar, no entanto, que os contos populares não veiculam uma imagem atualizada da respetiva cultura, pelo que dificilmente poderiam funcionar como fonte de conhecimento sobre ela (certamente contra as intenções de Celestino Gomes).

Em 1973-4 parece haver um novo interesse pelos contos chineses, com a publicação de seis volumes de Contos Populares Chineses (1973-4).17 Os

tradutores são vários: Maria Serrão, Patrícia Joyce, Maria João Vasconcelos e Daniel Augusto Gonçalves (para os dois últimos).18 O 6.º volume acusa já o

léxico da Revolução de Abril, quando se diz que os contos (escritos na pri- meira metade dos anos 30) “usam a forma das histórias do antigamente para denunciar e fustigar implacavelmente o torvo regime do Kuomintang” e são “notáveis manifestações do realismo socialista aplicado a esse tipo de ficção” (6.ª série 1974: 6s.).

O único autor que há em comum com os Contos Chineses da Gleba é Lu Hsun (1881-1936), considerado da “China contemporânea”, que ocupa todo o sexto volume: indica na página de rosto “Contos Populares recontados por Lu

17 Os seis volumes intitulam-se “6 séries”; o quinto e o sexto já são de 1974. Na Rede Munici-

pal de Bibliotecas estes volumes vêm catalogados como literatura infantil.

18 Daniel Augusto Gonçalves (n. 1921-) é um tradutor reconhecido de autores canónicos

como William Golding, Joseph Conrad, Malraux, Mark Twain, Jack London, John Updike, L. Dur- rell, Cervantes, Kenzaburo Oë e outros. Patricia Joyce, pseudónimo de Dagmar Joyce Damas Mora (1913-1985), foi tradutora, poeta e autora de literatura infantil. Sobre Maria Serrão e Maria João Vasconcelos nada se conseguiu ainda apurar com certeza.

Literaturas extraeuropeias em antologia durante o Estado Novo (1933-1974) Hsun”.19 A tradução é uma “versão portuguesa”, e inclui um prefácio anotado

do autor, datado de 26 de dezembro de 1935.20