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Antologias literárias da Índia

Literaturas extraeuropeias em antologia durante o Estado Novo (1933-1974)

3. Antologias literárias da Índia

No período 1935-1974, numa primeira recolha de literatura traduzida, pu- blicada em livro, no âmbito do projeto de investigação em curso Intercultural

Literature in Portugal 1930-1974: a Critical Bibliography foram registados cer-

ca de 18 000 títulos.6 Neste universo, a literatura indiana ocupa uma posição

ínfima. A busca de autores indianos deu os seguintes resultados: nos anos 40 saíram quatro títulos de R. Tagore (1861-1941), mais dois nos anos 50

5 Informação bibliográfica acrescentada.

6 Este projeto é uma parceria entre o CECC – Centro de Estudos de Comunicação e Cultura,

da Universidade Católica Portuguesa e o CEAUL – Centro de Estudos Anglísticos da Universidade de Lisboa.

Misérias e Esplendores da Tradução no Portugal do Estado Novo

e, em 1973, uma nova tradução de A Casa e o Mundo. Em 1962 regista-se outro título, do escritor R. K. Narayan (1906-2001). Pode, portanto, afirmar- -se que, à exceção de Tagore, que foi Prémio Nobel, a literatura indiana era completamente desconhecida em Portugal, pelo que o prefaciador e tradutor da antologia Novos Contos Indianos (1945), Prabhakar Kanekar, tinha toda a razão ao considerá-la uma “literatura nova” a “introduzir num meio literário que a desconhece” (Novos Contos Indianos: IX).7 Dos autores escolhidos por Ka-

nekar apenas sobre um se conseguiu recolher informação: Vishnu Sakharam Khandekar (1898-1976), eminente escritor marathi, uma língua indo-ariana fa- lada oficialmente no estado de Maharashta (Índia ocidental e central). Sobre os restantes três autores: Kamalabahi Tilak, E. G. Joshi e H. Shinolikar, para além das breves notas irrelevantes do tradutor, não se encontrou, por enquanto, nenhum dado, nem em bibliotecas estrangeiras. A edição é de grande deslei- xo, com gralhas abundantes e erros ortográficos e de pontuação. Do prefácio retemos duas ideias fortes: o já referido desconhecimento da literatura indiana por parte do público português, e que o escritor indiano “não chocou com as realidades cruas da vida” e portanto pende para o “romantismo”, em confronto com a “vida intensa” dos escritores norte-americanos.

A imagem da Índia que nos é deixada pelos contos pode aferir-se com clareza pelas personagens femininas. Desde a viúva que se apaixona pelo intelectual e engravida dele que, por isso, a abandona (“Lágrimas de mãe”, de Khandekar), ao marido prepotente que não percebe a candura e a auten- ticidade da mulher (“Pérolas artificiais”, de Khandekar), passando pela jovem recém-casada de Bombaim que vê o marido chegar de Inglaterra, após dois anos de ausência, com uma mulher inglesa, resolvendo afastar-se para que ele viva o seu amor inglês (“Altruísta”, de Tilak, apresentada como “famosa escritora da moderna literatura indiana […] pelo arrojo das concepções […]”),

7 O prefácio de três páginas de Prabhakar Kanekar está datado de 5 de maio de 1945. Ape-

sar de vários esforços desenvolvidos, nomeadamente junto de antigos colaboradores da Editora Portugália, foi impossível encontrar, até à data (verão de 2010; em 2013 também não tivemos sucesso), qualquer identificação deste nome, que consta apenas duas vezes na PORBASE, no contexto deste volume e do próximo a tratar. Em 2018, na preparação deste livro, encontrá- mos no blogue Arquive of Goan Writing in Portuguese, numa recensão à poesia de Vimala Devi (pseudónimo da goesa Teresa de Almeida Seabra), a referência a Prabhakar Kanekar como tendo feito uma crítica elogiosa ao livro de contos Monção (1963) da autora, pelo que poderemos de- duzir tratar-se de um autor goês. http://archiveofgoanwritinginportuguese.blogspot.pt/2013/01/ vimala-devi-poetisa-e-contista1966.html (acedido a 4 de maio de 2018).

Literaturas extraeuropeias em antologia durante o Estado Novo (1933-1974) parece-nos estarmos perante o catálogo de lugares-comuns sobre a mulher próprio da literatura de cordel ocidental. Apenas os nomes são indianos, de resto já conhecemos as mulheres que usam a fraqueza como arma, para que os cavaleiros andantes acorram em defesa da sua dama… (no conto “Pérolas artificiais”). Na verdade, não são apenas estas imagens medievais transpostas para a Índia do século XX que causam desconfiança, o primarismo da elabora-

ção narrativa e duma escrita pejada de erros levam a pensar que esta edição não era para vingar…

E o que é certo, mas também algo misterioso, é que a editora Portugália, praticamente ao mesmo tempo, retoma o projeto para a sua série das “An- tologias Universais”, com modificações substanciais: Agora são Os Melhores

Contos Indianos (s.d.), com o mesmo selecionador, tradutor, prefaciador e au-

tor dos paratextos (Kanekar), mas com uma seleção completamente diferente – só repete o autor Khandekar, embora com quatro textos novos. O prefácio pouco tem a ver com o anterior, tanto em termos de conteúdo como na re- dação do português. Está, porém, datado de 1944, ou seja, é anterior ao da outra edição, o que é inverosímil. Mas o texto é elucidativo para a identificação do tradutor. Quando Kanekar afirma que “aqui em Portugal” a literatura indiana é “completamente ignorada” é porque se trata de um “insider” da vida literária portuguesa. Tal convicção sai confirmada quando lemos, a justificar as “lacu- nas” do prefácio, que se trata de um assunto “cujo estudo só pode ser feito por intermédio de fontes que, por circunstâncias demasiado conhecidas de todos, se encontram fora do alcance [sic]” (Os Melhores Contos Indianos: 18). Gostaríamos de saber que circunstâncias são estas, pois a anexação da cha- mada Índia Portuguesa data, como é sabido, de 1961… Assim, o que Kanekar diz que escreveu baseou-se “na memória de leituras, feitas durante a estadia na Índia […]” (Ibidem: 18s.). Não se trata, portanto, de um autor indiano a quem a Portugália tivesse encomendado a antologia, mas de um português, de origem indiana/goesa, ou com fortes ligações à Índia, que usa um pseudó- nimo indiano como estratégia legitimadora de todo um trabalho antológico que se destina a preencher uma lacuna do sistema literário português.

O novo volume fornece uma imagem mais densa da Índia, ao tratar o pro- blema da fome e da grande miséria (“Pão”, de Khandaliker),8 embora ao gosto

naturalista europeu de finais do século XIX, a guerra e os bombardeamentos

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japoneses a cidades da Índia em 1942 (“Koconor Express”, de Anant Kanekar (1905-1980)), ou o fanatismo religioso que perpassa a hostilidade entre hin- dus e muçulmanos (“Fanáticos”, de Munshi Premchand (1880-1936)). Mas a propensão melodramática não foi abandonada (“A mãe adotiva”, de M. N. Dykshit) e o registo trivial continua aqui bem presente, tal como em “O tio do automóvel”, de A. B. Varty.9 Em suma, podendo embora dizer-se que este

volume está mais cuidado do que o seu “rascunho”, certo é que o nível lite- rário dos textos mantém-se baixo e a pretendida imagem de uma literatura que se quer introduzir, quando comparada com outra literatura traduzida da época, nomeadamente a norte-americana que Kanekar chamara à colação (v. supra) certamente não criou nos leitores apetência para aprofundarem os seus conhecimentos com novas leituras. Esta impressão sai reforçada quan- do comparamos estes textos com a obra de R. Tagore, introduzida na cena literária nos anos 40 pelo tradutor independentista goês Telo de Mascarenhas (1899-1979).10